“A luta comum me acende o sangue/ e me bate no peito/ como o coice de uma lembrança.” — Ferreira Gullar

Chegou às livrarias uma excelente edição revista e ampliada do livro “A Esquerda e o Golpe de 1964” (Civilização Brasileira, 531 páginas), de Dênis de Moraes, professor da Universidade Federal Fluminense, doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.

As partes anteriores são relevantes, mas o must são os capítulos 4, “Repensando a derrota (depoimentos)”, e 5, “O desafio que ficou para trás”.

São 24 depoimentos — todos valiosos, verdadeiros “documentos”. Mas recomendo vivamente os de Almino Affonso, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Herbert de Souza (Betinho), Leonel Brizola, Marcello Cerqueira, Marly Vianna, Nelson Werneck Sodré (um dos melhores), Rui Moreira Lima, Raul Ryff, Theotonio dos Santos.

O historiador e general Nelson Werneck Sodré sugere, com outras palavras, que o “dispositivo” — ou esquema — “militar” do general Argemiro Assis Brasil, no qual o presidente João Goulart confiou, era uma ficção. “O golpe de 1964 não foi um golpe militar. Foi um golpe político, vitorioso na área política. Isolado o governo, deu-se a operação militar de ocupação. A derrota já existia politicamente. O governo estava politicamente vencido. O traço geral foi a incapacidade de reagir. Não houve reação nos sindicatos, nos partidos, nas forças armadas, no povo.”

João Goulart e seu cunhado, Leonel Brizola | Foto: Reprodução

O texto a seguir trata basicamente das quatro hipóteses a respeito dos motivos pelos quais os democratas, junto com a esquerda — que nem sempre é democrática —, foram derrotados pelo conluio civis e militares de direita. Dênis de Moraes sintetiza os depoimentos.

Primeira hipótese

Dênis de Moraes assinala que, em 1964, “prevalecia a crença de que nada conseguiria deter os setores populares em direção às reformas de base”. João Goulart, o Jango, estava se equilibrando na corda bamba, sugere o pesquisador. Era pressionado pela direita, pelo movimento sindical e pela esquerda radicalizada.

“As pressões desconsideravam as etapas a percorrer rumo às reformas e os dilemas implícitos em cada uma delas, levando-se em conta os conflitos de interesses, o grau de coesão do lado golpista e sua influência ideológica em segmentos da opinião pública.” Alguns aliados queriam que Jango rompesse a conciliação com as elites e apressasse as reformas de base (como a agrária). Suas alianças, de acordo com eles, deveriam se circunscrever aos nacionalistas e à esquerda. “Essas exigências remetem à ilusória ideia de uma supremacia política que não batia com o real atravessado por antagonismos”, pontua Dênis de Moraes.

Sintetizando os depoimentos, o pesquisador sublinha que “a ‘esquerdização’ conduziu a equívocos que ajudaram a enfraquecer a sustentação política de João Goulart, tanto no Congresso como no seio da sociedade civil. Os discursos mais radicais no comício da Central do Brasil assustaram as classes médias urbanas, colocando grande parte delas ao alcance da pregação golpista”. Observe-se, como notou Evandro Lins e Silva, que “o comício se deu em frente ao Ministério da Guerra”. Os generais não aprovaram, assim como não toleravam a quebra da hierarquia: Jango articulava com sargentos, negociando diretamente com eles — atropelando os generais, que não o perdoaram.

Assis Brasil e Tancredo Neves | Foto: Reprodução

Segunda hipótese

“A esquerda não conseguiu unificar-se numa plataforma comum, que englobasse um projeto estratégico definido que se desdobrasse em táticas condizentes e métodos de ação compartilhados”, anota Dênis de Moraes (e insisto que o mestre está sumarizando os depoimentos).

Waldir Pires e Sérgio Magalhães notaram “a incapacidade de elaboração estratégica e aplicação tática como um dos fatores que impediram um melhor entendimento por parte de setores sociais mais amplos em relação às reformas de base”.

Sérgio Magalhães observa que, “em 1964, havia ideologia de esquerda, mas não havia política, no sentido de se atuar para a consecução dos objetivos”.

Theotonio dos Santos postula que a esquerda, “do ponto de vista político, esbarrava num obstáculo: não demonstrava condições de apresentar uma proposta unitária, que superasse suas próprias diferenças: ‘Ou a esquerda fazia uma proposta nacionalista democrático-burguesa, ou então caía numa posição de ultraesquerda’”.

Betinho, Neiva Moreira e Francisco Julião frisam, na síntese de Dênis Moraes, que “as disputas na esquerda derivavam de uma tendência das organizações de colocar suas formulações acima dos interesses gerais da luta por mudanças sociais”.

“As nossas teorias, já em 1964, estavam atrasadas pelo menos uns quinze anos em relação ao que se passava no Brasil”, admite Betinho.

O centro tinha um candidato moderado para a Presidência da República em 1965 — Juscelino Kubitschek. A esquerda tinha Leonel Brizola e Miguel Arraes — como rivais, e não aliados. Os dois, radicalizados, assustavam as elites civis e os militares.

Terceira hipótese

Dênis Morais destaca, a partir dos depoimentos, que “as contradições e ambiguidades entre forças de esquerda impediram que elas colocassem em prática uma direção político-ideológica mais convincente ao bloco nacional-reformista”.

As forças retrógradas estavam unidas, articulando para derrubar João Goulart. Porém, entre esquerda e nacionalistas, “às vezes, a energia se concentrava, excessivamente, em reprovar certas hesitações de Jango na condução do governo, perdendo-se o foco no inimigo primordial: a direita”.

Nelson Werneck Sodré: historiador e general | Foto: Reprodução

José Salles admite: “Nós, erradamente, colocamos como principal objetivo barrar o que chamávamos de vacilações do Jango. Em certa medida, nos combatíamos com mais vigor as oscilações do Jango do que a direita. Isso, com certeza, atrapalhou”.

Frei Betto diz que “a direita fazia uma deseducação política do povo 24 horas por dia, e nós não fazíamos um trabalho consequente de educação política”.

Dênis Morais ressalta que “as concepções de revolução oscilavam entre a opção democrático-burguesa do PCB, o nacionalismo anti-imperialista de Brizola e as teses insurrecionais do PC do B, da Polop e do MRT”.

Os radicais acreditavam que, com o apoio de marinheiros e sargentos do Exército, “poderiam reforçar o poder de fogo de suas reivindicações e engrossar a pressão popular junto ao governo. Porém, agindo assim, deixaram de perceber “que a correlação de forças na sociedade não lhes era favorável”. De alguma maneira, a aliança com os sargentos jogou a cúpula das Forças Armadas contra o governo de Jango e nas mãos da direita golpista.

Quarta hipótese

De acordo com alguns depoimentos, no registro de Dênis Morais, “a responsabilidade maior pela derrota caberia a João Goulart. Ele não teria sido capaz de dirigir o bloco nacional-reformista, com o qual manteve uma relação de calores e esfriamentos, de incompreensões mútuas”.

Para Marcello Cerqueira, Neiva Moreira e Luiz Carlos Prestes, Jango não soube abandonar a política de conciliações, que se revelou infrutífera, no sentido de garantir a democracia. Neiva Moreira enfatiza que faltou uma atitude mais corajosa do presidente.

Discordando do trio acima, Darcy Ribeiro e Raul Ryff “criticam a intolerância de lideranças de esquerda, que não se convenciam acerca do estreito espaço de manobra de que dispunha o presidente numa conjuntura de pressões e contrapressões, dentro e fora do governo”.

Ex-ministro de Jango, Darcy Ribeiro afirma que o esquerdismo impediu “líderes do porte de Brizola de avaliar na devida conta que, apesar das limitações, Jango propunha medidas sociais ‘com uma profundidade que não tinha ocorrido antes na história brasileira’”.

Betinho segue na mesma linha ao indicar que “o movimento popular não soube fazer uma leitura de Goulart como aliado: ‘Muitas vezes, na prática, nós colocávamos o Jango como um obstáculo ao desenvolvimento do processo político. Queríamos avançar, ir muito além do que a realidade realmente tornava possível’”.

As divergências de Brizola com Jango se davam, segundo o primeiro, em dois planos. “Ele [Brizola] pretendia que o ministério fosse integrado por políticos comprometidos com as reformas de base; e achava que o governo deveria ter uma atitude mais firme e decidida contra a ameaça de golpe” (vale ressaltar que a atitude corajosa de Brizola, como governador do Rio Grande do Sul, contribuiu para impedir o golpe contra a posse de Jango, em 1961).

Jango confiou no “dispositivo militar” de Assis Brasil. “O ‘esquema militar’ pode até ter existido nos cálculos de Assis Brasil. Mas, na prática, simplesmente inexistiu ou evaporou quando o golpe foi desencadeado.”

Na época, o coronel Donato Ferreira Machado disse ao jornalista Janio de Freitas: “Não há esquema militar. Levantei todas as designações militares, para onde foram feitas, quem eram os oficiais. Não há esquema militar, não há defesa nenhuma. (…) Estamos ferrados”.

O brigadeiro Rui Moreira Leite foi à casa de Assis Brasil, às vésperas do golpe de 1964. Generais, almirantes e brigadeiros discutiam a situação do país e uma reação ao golpe que se anunciava? Não. Tratava-se de um convescote, com todos bebendo uísque. Uma espécie de baile da Ilha Fiscal da República.

Eduardo Chuahy afirma que “Jango nunca se saiu bem na área militar. Ele achava que poderia ir empurrando”. O presidente não promovia militares aliados, e sim adversários. Contra o parecer de oficiais legalistas, promoveu o general Benjamin Galhardo para o comando do III Exército — deixando de lado o general Ladário Telles. Nomeou também Amaury Kruel para o II Exército. Ou seja, Jango armou o anzol para ser fisgado pelos militares golpistas.

O governo Jango poderia ter reagido ao golpe? Talvez sim. Mas Nelson Werneck Sodré, Francisco Teixeira e Rui Moreira Lima, militares, acreditam que não, dadas “as debilidades políticas do próprio governo e a ausência de uma articulação legalista consistente no interior das forças armadas”.

Duas vertentes interpretativas

Dênis Moraes aponta que há duas vertentes nas interpretações dos que deram depoimentos. Primeiro, “as contradições entre as forças progressistas dificultaram um respaldo sólido e coerente a estratégias voltadas à viabilização das demandas sociais;” e, segundo, “a subestimação do valor da democracia, ao menos entre aqueles que exigiam de Jango medidas contundentes para implementar as reformas de base”.

De acordo com Dênis Moraes, é possível “identificar duas direções confluentes” nos depoimentos: “a que vislumbrava a intensificação da luta pelo socialismo, com distintas estratégias e táticas com viés revolucionário; e a que entendia que a etapa vivida era ainda intermediária, pressupondo alianças mais amplas com forças moderadas, e mesmo fora do âmbito da esquerda, porém receptivas às reformas. (…) A multiplicidade de tendências [político-ideológicas] é sinal de pluralismo. Mas também sugere dificuldades para se alcançar entendimentos duradouros, indispensável à governabilidade”.

O pesquisador acredita “que certas ideias fora de lugar (ainda que legítimas) de algumas correntes de esquerda tenham prejudicado a convergência de programas e ações”. Marcello Cerqueira acrescenta: “As forças populares só se unem no descenso do movimento de massa. No ascenso, prevalecem as contradições”.

“A falta de clareza, por parte de segmentos da esquerda, de que preservar a democracia era o desafio principal em 1964” é a segunda vertente da análise.

Ao menos em certo período, a esquerda tratou a democracia como etapa para alguma coisa, como o comunismo — que não tem a ver com democracia. Carlos Nelson Coutinho dizia, com acerto, que a democracia é um valor universal e não deve ser vista como “passagem”. Hérculos Corrêa, do Partidão, admite: “Democracia, para nós, era um negócio tático. Jogávamos muito com a ideia do quanto pior, melhor”.

Havia “um certo ‘golpismo’ à esquerda”, sugere Dênis Moraes.

Brizola propôs a dissolução do Congresso eleito em 1962 e a convocação de uma Assembleia Constituinte. Ele queria excluir da vida política “as velhas raposas da política tradicional”.

Na democracia plena, no governo de Jango, as Ligas Camponesas organizaram focos guerrilheiros, inspirados em Cuba. Ou seja, eram golpistas e não democráticas.

A quebra da hierarquia e da disciplina nas forças armadas, longe de produzir mais democracia, ao “incluir” marinheiros e a baixa oficialidade, colaborou para ampliar o golpismo entre os oficiais.

João Goulart queria continuar no poder? Talvez quisesse. Mas, numa conversa com o ministro Evandro Lins e Silva, do Supremo Tribunal Federal, “negou taxativamente”.

Manter a democracia em 1964 não era fácil, talvez fosse impossível. Mas deveria ter sido a luta de todos os democratas e mesmo daqueles que, “duvidando” da democracia, não eram favoráveis a um governo ditatorial. Queriam que Jango avançasse mais, porém talvez ele tenha avançado mais do que os aliados tenham percebido. “Esta é a grande lição que devemos tirar de 1964: na ação política, a medida das forças deve ser permanente. Deve-se avançar. Não é em nome da prudência que se deve ficar estático”, disse Almino Affonso.

Dênis Moraes afirma “que a concepção das reformas na lei ou na marra não se coaduna com um contexto no qual o bloco conservador, mesmo fora do governo, influenciava formadores de opinião, ganhava a classe média e tramava o assalto ao poder”. A direita e a extrema-direita “conquistaram” a sociedade, quiçá por ter um discurso “único” e palatável.

Então, postula Dênis Moraes, “as forças progressistas e de esquerda não tiveram clareza sobre a correlação de forças real na sociedade brasileira, nem a unidade exigida na diversidade, muito menos planos de voos sólidos e articulados para enfrentar a batalha das ideias pela hegemonia política e cultural”.

Ainda assim, ressalva Dênis Moraes, é “importante não perder de vida que estavam em curso mobilizações sociais e medidas governamentais (ainda que parciais) voltadas para uma efetiva democratização da vida social, econômica, política e cultural do país”.

Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, vislumbrou: “Uma derrota não significa a falência de nossas convicções, mas sim a fragilidade de nossos planos de ataque. Então, é preciso aprimorá-los”.

A historiadora Marly Vianna enfatiza: “É preciso, é imprescindível não desqualificar as ações políticas simplesmente porque foram derrotadas. É preciso lembrar, passados quarenta anos [2004], todos aqueles que lutaram pela liberdade, por um Brasil melhor; aqueles que lutaram pela democracia e contra a corrupção, que deram suas vidas nessa luta, perdidas às vezes da forma mais cruel. É preciso não esquecer, ‘pela honra, pelos princípios’”.

O que falta ao livro de Dênis Moraes? Uma análise ampliada do autoritarismo da esquerda, que, com a ditadura, ao passo que a combatia, também pretendia instalar no país um regime comunista, quer dizer, de matiz autoritário.

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