35 livros para entender o golpe de 64 e que nenhuma ditadura vale a pena
31 março 2024 às 12h16
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A direita sustenta que o golpe civil-militar se deu em 31 março de 1964. A esquerda, talvez para conectar com o dia da mentira, sustenta que ocorreu em 1º de abril. O mais adequado é sugerir que o putsch ocorreu entre 31 de março e 1º de abril. A rapidez com que os militares, com o apoio de vivandeiras civis, chegaram ao poder, sem nenhuma resistência consistente, impressiona até os historiadores mais equilibrados.
É extensa a bibliografia sobre o golpe e os governos ditatoriais. Listei 35 livros, mas poderia ter arrolado mais de 50 (planejo ampliar a lista). Algum livro de alta qualidade ficou fora da lista? É provável. Mas listas são sempre lacunares. Poderia ter arrolado, por exemplo, livros de Octávio Ianni (“O Colapso do Populismo no Brasil”), Francisco de Oliveira (“Crítica à Razão Dualista”), Maria da Conceição Tavares (“Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro”), Carlos Castello Branco (“Introdução à Revolução de 1964”) e Francisco Weffort (“O Populismo na Política Brasileira”). Poderia ter citado um livro básico, como “O Governo Goulart e o Golpe de 64” (Brasiliense, 144 páginas), de Caio Navarro de Toledo, ou o terceiro tomo de “O Brasil Republicano”.
Ao refazer a lista, quase dobrando-a, arrolei livros mais recentes de pesquisadores de primeira linha da universidade brasileira, como Marcos Napolitano, Rodrigo Patto, Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Dênis Moraes.
1
1964 — Marcos Napolitano
O livro “1964 — História do Regime Militar Brasileiro” (Contexto, 367 páginas), de Marcos Napolitano, contém uma excelente análise do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar. O professor da USP diz que se costuma considerar o governo do presidente Castello Branco como o mais “liberal” do sistema discricionário. Mas o pesquisador segue por outro caminho, ao afirmar que a estrutura autoritária foi montada pelo governo do líder da Sorbonne militar. O AI-5, que tornou a dita mais dura, só acelerou o autoritarismo. O doutor em História desmonta o mito da “ditabranda”, criado pela “Folha de S. Paulo”, nos tempos do editor Otavinho Frias Filho. Há um capítulo muito bom, “No entanto é preciso cantar: a cultura entre 1964 e 1968”. Nota-se que a cultura vinha com muita força antes de 64, daí a explosão, em seguida, dos festivais, do teatro etc. Não foi a ditadura que tornou os artistas e escritores mais criativos. Havia um processo cultural amplo, anterior ao putsch. Os anos de chumbo, o choque entre a guerrilha e os militares, são bem analisados. Um dos capítulos mais felizes, com uma crítica de primeira linha, é “Nunca fomos tão felizes: o milagre econômico e seus limites”. Milagre para os ricos e a classe média e “excomunhão” para os pobres. “O desenvolvimento sem democracia imposto pela ditadura militar teve um alto custo social. O salário-mínimo teve uma perda real de 25% entre 1964 e 1966 e 15% entre 1967 e 1972.” O pesquisador anota que, “entre 1948 e 1963, o crescimento médio do PIB foi de 6,3%. Entre 1964 e 1985, foi de 6,7”. Falta uma análise detida da oposição democrática à ditadura. O MDB merece ser mais bem analisado.
Contexto, 367 páginas.
2
Passados e Presentes — Rodrigo Patto Sá Motta
O título completo do livro é: “Passados e Presentes — O Golpe de 1964 e a Ditadura Militar”. Trata-se de uma tese de doutorado defendida por Rodrigo Patto Sá Machado na Universidade de São Paulo. É um livro excelente, com a propensão a impor a tese de que Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva não eram assim tão interessados na Abertura. O que é um equívoco. Falta uma análise ampla sobre a importância do MDB, sempre subestimado pela academia, na ditadura. Porém, no geral, há análises muito boas (inclusive críticas certeiras ao quase-ditador Jair Bolsonaro). Na página 62 comenta-se a história da base guerrilheira em Goiás, ainda em 1962, no governo de João Goulart. O pesquisador nota que os homens da ditadura, civis e militares, começaram a apontar que fizeram a “Revolução” — na verdade, golpe — para evitar o “golpe” de João Goulart ou o golpe comunista. Como era tempo da Guerra Fria — os cubanos haviam chegado ao poder em 1959, cinco anos antes —, muitos, inclusive populares, acreditaram que o Brasil caminhava para o comunismo. O que não era verdade. Porém, uma vez no poder, os militares e as vivandeiras mudaram o rumo do discurso: era hora de combater a corrupção. Houve uma espécie de troca de discurso. O outro pretexto não era mais suficiente; afinal, que raio de comunismo era aquele que, sendo tão forte, não conseguiu enfrentar o golpe dos militares? O autor mostra que a corrupção grassou nos tempos autoritários — tanto que um de seus símbolos, Paulo Maluf, era uma das criaturas da ditadura. Vale a pena ler o capítulo do Milagre Econômico, uma invenção do economista civil Delfim Netto — espécie de general sem farda — para dar fôlego à ditadura. Analisa-se também a guerrilha.
Zahar, 335 páginas.
3
O Grande Irmão — Carlos Fico
“O Grande Irmão: Da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo — O Governo dos Estados Unidos e a Ditadura Militar Brasileira”, de Carlos Fico, é um livro muito bem-documentado sobre o golpe de 1964 e o regime civil-militar (1964-1985). A história de um “contragolpe preventivo”, a ser dado por João Goulart, é contestada pelo historiador: “Trata-se de especulação inconsistente não apenas porque é anacrônica. (…) não há nenhuma evidência empírica de que Goulart planejasse um golpe e todos sabemos que um golpe era planejado contra ele”. Carlos Fico nota que civis foram mais presentes na campanha de estabilização do governo de Jango. A participação americana “foi decisiva” para o golpe. “A Operação Brother Sam não foi pouca coisa.” O pesquisador publica vários documentos.
Editora Civilização Brasileira, 334 páginas.
4
Visões do Golpe — Maria Celina D’Araújo
Aos militares são dadas poucas chances de se manifestarem de forma isenta e ampla. O livro “Visões do Golpe — A Memória Militar Sobre 1964” (organizado por Maria Celina D’Araújo, Celso Castro e Gláucio Ary Dillon Soares) contém entrevistas de vários militares que contribuíram para derrubar João Goulart e participaram dos governos ditatoriais. Há depoimentos moderados e radicais, apresentados de maneira integral, sem cortes. É um documento histórico valioso, um maná para pesquisadores. Porque os militares não falam com facilidade. Fica evidente, para citar um exemplo, que os militares não pensavam da mesma maneira, ainda que, claro, todos defendessem a ditadura (que é a régua mais apropriada para avaliá-los). Há distorções? É possível, porém, ao menos, decidiram falar com pesquisadores criteriosos da Fundação Getúlio Vargas. Não é apenas um livro; na verdade, são três — e os demais vão além do golpe em si.
Editora Relume Dumará, 257 páginas.
5
Ilusões Armadas — Elio Gaspari
A história geral mais ampla do golpe de 1964 e sobre os governos da ditadura civil-militar, além da reação da guerrilha, pode ser encontrada nos cinco volumes escritos por Elio Gaspari: “A Ditadura Envergonhada”, “A Ditadura Escancarada”, “A Ditadura Encurralada”, “A Ditadura Derrotada” e “A Ditadura Acabada”. Quem não conhece nada a respeito do regime instalado em 1964, ou conhece pouco, pode consultar, com grande proveito, os cinco livros do jornalista. O pesquisador teve acesso privilegiado aos arquivos de Heitor Aquino Ferreira e Golbery do Couto e Silva e pôde entrevistar o general-presidente Ernesto Geisel. Leitores não familiarizados com pesquisas densas dos acadêmicos certamente ficarão satisfeitos com a prosa precisa e ágil do colunista da “Folha de S. Paulo” e um dos melhores repórteres da história do Brasil. Num dos exemplares, o autor confunde o goiano Athos Magno, que vira Pereira, com Athos Pereira, o irmão do poeta Pedro Tierra.
Editora Intrínseca, 2546 páginas (os cinco volumes).
6
1964: A Conquista do Estado — René Armand Dreifuss
O cientista político uruguaio René Armand Dreifuss, no livro “1964: A Conquista do Estado — Ação Política, Poder e Golpe de Classe”, escreveu o clássico sobre o golpe de Estado sessentaequatriano. A obra foi publicada em 1981, mas, 43 anos depois, sua pesquisa resiste — tal a sua qualidade e a farta documentação que reuniu e explorou com dedicação estrema. Claro que novos documentos foram divulgados, o que, de certo modo, desatualiza parte da pesquisa anterior. René Armand Dreifuss documenta bem a conexão militares e civis, o que prova que o golpe, além de militar, também foi civil. Documenta as ações do Ipes e do Ibad na articulação e financiamento da derrubada do presidente João Goulart.
Editora Vozes, 814 páginas
7
A Esquerda e o Golpe de 1964 — Dênis Moraes
Por que as esquerdas (e os democratas) perderam em 1964 para um projeto político autoritário civil-militarizado? É o que Dênis Moraes tenta responder no seu livro (trata-se de uma edição revista e atualizada) a razão de um projeto conservador ter substituído, via golpe de Estado, um projeto progressista (frise-se que, no período de Jango Goulart, o crescimento não era tão inferior aos do período da ditadura). O pesquisador também mapeia as hostes de direita, que usaram o Ipes (e o Ibad) para vergastar a democracia e conquistar apoio para o golpe de 1964. Uma das melhores partes da obra são os depoimentos de Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Herbert de Souza (Betinho), Janio de Freitas, Leonel Brizola, Marly Vianna, Rui Moreira Lima, Theotonio dos Santos. O prefácio é de José Paulo Netto (um dos maiores estudiosos do marxismo no Brasil). O posfácio é de René Armand Dreifuss. Há um ótimo depoimento do historiador e general Nelson Werneck de Castro, que disse que poucas pessoas acreditavam realmente no poder de resistência do dispositivo militar do general Assis Brasil. Durante o golpe, o “esquema militar” nada fez. Omitiu-se. Talvez nem existisse de verdade.
Num e-mail para o autor, o historiador e cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira disse: “Não deixe de destacar algo muito importante para a nossa história. O governo do presidente João Goulart, ao ser deposto, contava com 76% de aprovação nas pesquisas de opinião pública”.
Civilização Brasileira, 531 páginas.
8
Tanques e Togas — Felipe Recondo
As ditaduras subordinam os poderes ao Poder Executivo. O regime civil-militar de 1964 a 1985, mesmo permitindo a existência do Legislativo e do Judiciário, mantinha-os sob pressão. Felipe Recondo relata como se deu a relação da Justiça com o poder discricionário no livro “Tanques e Togas — O STF na Ditadura Militar”. Trata-se da primeira obra dedicada exclusivamente à ação do Supremo Tribunal Federal sob o sistema autoritário. Em 1964, o presidente da Suprema Corte deu apoio ao putsch, de maneira célere. Atos de exceção substituíram a Constituição e começaram as cassações e prisões políticas, tortura (assim como desaparecimentos e mortes). Os ministros da Corte Suprema não contestaram — pelo menos não de maneira producente —às ilegalidades cometidas pelos governos ditatoriais. Fica a pergunta: tinham condições de resistir? Houve uma resistência mínima? Como se sabe, a ditadura exercia um controle absoluto e podia cassar qualquer um.
Editora Companhia das letras, 328 páginas.
9
A Ditadura que Mudou o Brasil — Daniel Aarão Reis
“A Ditadura Que Mudou o Brasil — 50 Anos do Golpe de 1964”, organizado por Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, contém ensaios de pesquisadores do período, além dos três citados: Francisco Vidal Lula, Herbert S. Klein, Renato Ortiz, Ricardo Antunes, Marcos Aurélio Santana, Anderson da Silva Almeida, Mariana Joffily, Carlos Simone Rodeghero, Janaina Martins Cordeiro, Miriam Hermeto, Miriam Gomes Saraiva e Tullo Vigevani. O livro discute: história e cultura política nacional-estatista; as oposições à ditadura: resistência e integração; a modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência na cultura política; mudanças sociais no período militar (1964-1985); mudanças sociais no período militar; transformações econômicas o período militar; Revisitando o tempo dos militares; para onde foi o “novo sindicalismo”? Caminhos e descaminhos de uma prática sindical; a grande rebelião: os marinheiros de 1964 por outros faróis; o aparato repressivo: da arquitetura ao desmantelamento; a Anistia de 1979 e seus significados, ontem e hoje; por que lembrar? A memória coletiva; o engajamento, entre a intenção e o gesto: o campo teatral brasileiro durante a ditadura militar; política externa do Brasil: continuidade em meio à descontinuidade, de 1961 a 2011. Na apresentação, os organizadores assinalam: “Ao contrário do que muitos têm apregoado, o melhor não é ‘virar a página’ no que se refere ao período da ditadura. Escolha mais adequada é empreender uma apropriação crítica desse passado político recente, tanto para consolidar nossa frágil cidadania quanto para entender a realidade em que vivemos. Para tanto, é fundamental estudar a ditadura que começou há” quase 60 “anos, a fim de compreender a atualidade do seu legado e, assim, criar condições de superá-lo”.
Zahar, 267 páginas.
10
Na Corda Bamba — Daniel Aarão Reis
Daniel Aarão Reis é um dos principais historiadores brasileiros — um especialista na história do período da ditadura civil-militar (e é também biógrafo de Luiz Carlos Prestes). “Na Corda Bamba — Memórias Ficcionais” são suas memórias ficcionadas — uma espécie de roman à clef (ele escreve contos que podem ser lidos como um romance). Conta-se os bastidores do combate ao regime discricionário pela guerrilha da Dissidência da Guanabara, pela Colina, pela ALN, entre outras correntes. Relata-se o distanciamento entre guerrilheiros e sociedade (pobres incluídos). Fala-se da vida nas prisões. Menciona os envolvimentos amorosos — sexo, enfim. Conta-se a respeito do exílio. E há um balanço crítico da guerrilha, o que não equivale a dizer que se trata de uma condenação. É um belo livro (e muito bem-escrito e arquitetado) — não há nada de oba-oba. Com momentos dolorosos e divertidos (pois a vida, mesmo na guerrilha, não é feita apenas de agruras). Trecho da página 104: “Lírio, ao contrário, pedira para sair, não da ação, mas da própria organização revolucionária. Não estava mais acreditando naquela aventura. Não lhe faltava coragem pessoal, tinha-a de sobra, a confiança no futuro é que escasseara, estava desanimado, sentia, com razão, que eles apenas sobreviviam, cada vez mais isolados, com os apoios em queda livre. Aquilo tudo tinha que ser analisado de outra maneira, não dava mais para ficar repetindo, repetindo. Fora enfático: ‘Reiterar o erro não leva a acerto, não leva a nada’”. Há outros trechos semelhantes.
Os leitores não-especialistas gostariam de um “quem é quem” no final do livro? É provável. Há o problema de sempre neste tipo de livro: o que é verdade (tudo?) e o que é ficcional? De qualquer maneira, é uma história viva das mulheres e homens que lutaram contra a ditadura. Não venceram, mas provaram, de certa maneira, que os militares podiam ser enfrentados. As Forças Armadas venceram, mas se assustaram com a resistência da guerrilha.
Editora Record, 476 páginas.
11
Repressão e Resistência — Sandra Reimão
A ditadura civil-militar prendeu e matou pessoas e censurou livros. “Repressão e Resistência — Censura a Livros na Ditadura Militar”, de Sandra Reimão, é um livro muito bom sobre a caçada aos livros que incomodavam os senhores da dita nada branda. O capítulo principal é uma amostragem geral da censura a livros de Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca, Adelaide Carraro, entre outros. Entre as obras censuradas estava o romance “Os Diários de André”, do escritor goiano Brasigóis Felício. A pesquisadora mostra que, paradoxalmente, o período de mais censura aos livros ocorreram já no governo do general Ernesto Geisel, o presidente que deu, com a distensão, o início à Abertura. Há um capítulo a respeito do romance-testemunho “Em Câmara Lenta”, de Renato Tapajós. Em 1977, acusando-o de incentivar a subversão, o governo Geisel prendeu, pela segunda vez, o escritor. Depois, censurou o livro. Sandra Reimão sugere, com razão, que a prisão e a censura foram uma tentativa de impedir, por meio da intimidação, outros escritores de publicarem livros sobre a ditadura. Mas deram com os burros d’água. Em seguida, saíram livros como “O Que é Isso Companheiro?” de Fernando Gabeira, e “Os Carbonários”, de Alfredo Sirkis.
Edusp/Fapesp — 184 páginas.
12
História Indiscreta da Ditadura e da Abertura — Ronaldo Costa Couto
A tese de doutorado de Ronaldo Costa Couto, apresentada na Sorbonne, é um dos melhores livros sobre a ditadura civil-militar. “História Indiscreta da Ditadura e da Abertura — Brasil: 1964-1985” mostra, de maneira didática e analítica, como se deu a Abertura. É uma história minuciosa, que valoriza os políticos democráticos, evidenciando como trabalharam pela Abertura, atuando tanto no MDB quanto na Arena. Indica também a vocação de alguns militares pela redemocratização, casos de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Doutor em História, o ex-ministro conseguiu um feito: entrevistou vários militares, inclusive o fechadíssimo João Figueiredo. Noutro livro, publicou várias entrevistas.
Record, 518 páginas
13
O Girassol Que Nos Tinge — Oscar Pilagallo
A melhor síntese sobre as Diretas Já é da lavra do jornalista Oscar Pilagallo. “O Girassol Que Nos Tinge — Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil” não é um estudo exaustivo, mas é um ótimo exame do que aconteceu entre 1984 e 1985, quando o país se levantou, com quase todas as pernas, para pedir pelo voto livre e direto, ou seja, por democracia. Goiânia, onde ocorreu comício das Diretas Já, é citada várias vezes. “Há quem advogue que tenha sido o comício na capital de Goiás o primeiro com organização centralizada. (…) Oficialmente, a campanha das Diretas é lançada (…) em 15 de junho [de 1984], num comício do PMDB em Goiânia”. Iris Rezende, Henrique Santillo e Aldo Arantes estavam no palanque. Mais de 300 mil compareceram para pedir democracia — estavam com fome de votar. A obra mostra como a TV Globo, na época comandada por Roberto Marinho, boicotou, olimpicamente, os comícios das Diretas Já. Estava sob orientação do governo do presidente-general João Figueiredo. A explicação do título curioso pode ser conferida num manifesto, na página 202.
Fósforo, 413 páginas.
14
Amor, Luta e Luto — Maria do Socorro Diógenes
A literatura de testemunho começou com “Em Câmara Lenta”, de Renato Tapajós. Depois saíram os livros de Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis e, entre outros, Ottoni Fernandes. Os livros-depoimentos, sobretudo quando bem-apurados, são documentos cruciais para as pesquisas dos historiadores. Aquilo que os documentos às vezes não “contam”, dada a secura da burocracia, o indivíduo pode expressar de maneira ampla, humana, perceptiva. “Amor, Luta e Luto no Tempo da Ditadura”, de Maria do Socorro Diógenes (“filha de camponês sem terra”) é dessas preciosidades que, como os pequenos diamantes, está passando despercebido por resenhistas de jornais, mas certamente não por historiadores. Os guerrilheiros Maria do Socorro e Ramires Maranhão do Valle se apaixonaram em plenos anos de chumbo, entre 1969 e 1973. Como militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), lutaram na guerrilha contra a ditadura civil-militar. Ela sobreviveu, daí o luto do título. Ele foi morto, em 27 de outubro de 1973, no Rio de Janeiro, aos 22 anos. Quem contaria a história de Ramires Maranhão e de Maria do Socorro? Talvez ninguém, exceto ela mesma.
Ateliê Editorial, 218
15
O Fantasma da Revolução Brasileira — Marcelo Ridenti
Ao lado de Carlos Fico, Rodrigo Patto, Daniel Aarão Reis e Marcos Napolitano, Marcelo Ridenti é um dos melhores pesquisadores, digamos, da “vida” — cultura, por exemplo — nos tempos da ditadura civil-militar. A apresentação de “O Fantasma da Revolução Brasileira” é de Jacob Gorender, autor do incontornável “Combate nas Trevas”. No prefácio, o historiador assinala: “Desvendar o significado e as raízes sociais da luta dos grupos de esquerda, especialmente dos armados, entre 1964 e 1974: eis a proposta central deste livro”. Para escapar ao vício do anacronismo, o autor sugere que “é preciso entender as utopias passadas no momento em que foram construídas, quando o futuro para os agentes sociais não era um jogo de cartas marcadas, mas campo relativamente indeterminado por onde poderiam ser trilhadas diversas veredas, as mais díspares”. Então, é preciso “encarar” os eventos passados “na riqueza do momento histórico em que se deram”. O analista sublinha que “o fantasma insuperado… é… a revolução frustrada: a não revolução democrática e também a não revolução socialista. Ou, por outra, a revolução às avessas, como a de 1964, para garantir a modernização conservadora da sociedade brasileira, o avanço econômico e tecnológico que só se efetivaria em sua plenitude sob a bota dos militares nos anos 1960 e 1970”. Em seguida, o autor destaca: “O fantasma que a esquerda brasileira tem de superar é o das revoluções projetadas; derrotadas, no entanto, pela força da contrarrevolução”. Ridenti examina, com percuciência, o ideário e as práticas dos vários grupos de esquerda que enfrentaram — mesmo o PCB, que não foi à luta armada — a ditadura. Há crítica. E há a empatia, a do historiador que sabe avaliar projetos políticos, de maneira equilibrada, mais para entender acertos e fracassos do que para incensá-lo ou condená-los.
Editora Unesp, 325 páginas.
16
Além do Golpe — Carlos Fico
“Além do Golpe — Versões e Controvérsias Sobre 1964 e a Ditadura Militar”, do historiador Carlos Fico, examina criticamente as principais obras sobre o golpe e a ditadura. Examina, com rigor, as virtudes e os problemas das obras de outros pesquisadores, como René Armand Dreifuss e Elio Gaspari (talvez seja a crítica mais consistente à pesquisa de jornalista e pesquisador). Pesquisadores ganham um amplo e fundamental guia bibliográfico. No final da obra, Carlos Fico arrola documentos importantes, como a íntegra do AI-5. Por sinal, ele tem feito um trabalho excepcional na divulgação de documentos da ditadura.
Editora Record, 391 páginas.
17
Brasil: de Getúlio a Castello — Thomas Skidmore
O brasilianista Thomas Skidmore é autor de duas histórias gerais de qualidade sobre o Brasil: “Brasil: de Getúlio a Castello — 1930-64” e “Brasil: De Castello a Tancredo: 1964-1985” (Paz e Terra, 608 páginas). Novos livros, como os de Elio Gaspari, Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Marcos Napolitano, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto ampliaram a história do período. Mas as obras de Skidmore permanecem — com erros aqui e ali — como uma narrativa de qualidade. Não estão inteiramente desautorizadas por estudos mais recentes. São clássicos legíveis. Boas sínteses.
Companhia das Letras, 496 páginas.
18
1964 — O Verão do Golpe — Roberto Sander
No livro “1964 — O Verão do Golpe”, o jornalista Roberto Sander construiu uma boa síntese do golpe, com uma leitura atenta da bibliografia, paralelamente faz uma análise da história cultural do período. Em suas páginas desfilam desde João Goulart, Castello Branco até a atriz francesa Brigitte Bardot, a cantora Nara Leão (estrela da Bossa Nova), o músico Jorge Ben Jor e o cineasta Glauber Rocha (o Cinema Novo). Mesmo na crise, o brasileiro estava de bem com a vida. Mas, evidente, a democracia estava golpeada. E nada é pior do que a perda da democracia e a instituição de uma ditadura.
Maquinária, 269 páginas.
19
João Goulart: Uma Biografia — Jorge Ferreira
Uma biografia pode ser uma grata história de um período. É o que mostra o historiador Jorge Ferreira no livro “João Goulart — Uma Biografia” (Civilização Brasileira), de longe, o melhor estudo sobre o presidente deposto em 1964. Jorge Ferreira não pretende criar um novo mito. Pelo contrário, tira a roupa do mito criado pela esquerda e pela direita e vai além da imagem do herói e do vilão. Jango ressurge com cores novas, um político mais articulado do que se tem mostrado e menos pusilânime. Nada tinha de néscio e não era corrupto. E talvez sua indecisão fosse, quem sabe, respeito à democracia, aos jogos dos contraditórios. De quebra, o doutor em História faz uma nova análise do populismo.
20
Cães de Guarda: Jornalistas e Censores — Beatriz Kushnir
Há um livro que as redações de alguns jornais não podem resenhar — nem contra. “Cães de Guarda — Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988”, da historiadora Beatriz Kushnir. A pesquisadora, num estudo alentado, mostra que, além de apoiar o golpe de 1964, a chamada grande imprensa coonestou atos da ditadura. A relação com a censura foi bem menos tensa do que dizem alguns editores e donos de jornais e redes de televisão (todos bravíssimos apocalípticos depois do término da ditadura, quando eram integrados). Alguns veículos colaboraram, de boa vontade, com a ditadura civil-militar. O dono de uma revista teria enviado um profissional para treinar censores. Agora, quando todo mundo se apresenta “contra” o regime militar, o livro se tornou “maldito”. Aqui e ali, há algum excesso? Pode até ser. Mas o livro é fundamentado por documentação.
Editora Boitempo, 408 páginas.
21
Carlos Lacerda: A Vida de Um Lutador — John W. F. Dulles
O brasilianista John W. F. Dulles escreveu uma biografia ampla de Carlos Lacerda, o civil que mais trabalhou para derrubar o presidente João Goulart, em “Carlos Lacerda — A Vida de um Lutador”. Nada escapa do meticuloso John Dulles, desde a história do golpista profissional e do governador eficiente da Guanabara até os casos amorosos com as atrizes Shirley MacLaine e Maria Fernanda Correia Dias (filha da poeta Cecília Meirelles). O ex-governador da Guanabara era homossexual? Talvez não. As mulheres o adoravam. O jornalista Mário Magalhães está preparando uma nova biografia do “demolidor de presidentes”.
Editora Nova Fronteira, 1263 páginas.
22
Brasil: Nunca Mais — Paulo Evaristo Arns e Jaime Wright
Um livro fundamental na historiografia do regime militar é “Brasil: Nunca Mais”, patrocinado por d. Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright. A obra relata como atuava o aparelho repressivo e listou os principais torturadores dos porões da ditadura. Trata-se de uma obra rigorosa e imprescindível. Setores da direita atacam o levantamento, sugerindo que há falhas, mas, no geral, trata-se de uma pesquisa acurada e desapaixonada. Honestino Guimarães e a uruguaia Maria Cristina Uslenghi Rizzi (que, ainda que de esquerda, não era tupamara), que foi casada com Tarzan de Castro, são citados. Honestino Guimarães foi torturado e morto pelos militares. Maria Cristina escapou.
Editora Vozes, 312 páginas.
23
Os Anos do Condor — John Dinges
O livro “Os Anos do Condor — Uma Década de Terrorismo Internacional no Cone Sul”, de John Dinges, mostra a conexão da ditadura brasileira com as ditaduras de outros países sul-americanos, como a chilena do general Augusto Pinochet. John Dinges conta, detalhadamente, como foi formatada a Operação Condor. Na página 215, relata que a brasileira Regina Marcondes foi sequestrada na Argentina, ao lado de Edgardo Enríquez, líder do MIR. As mortes de Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda são mencionadas na página 336.
Editora Companhia das Letras, 445 páginas.
24
Castello: A Marcha Para a Ditadura — Lira Neto
O general-presidente Castello Branco permanecia um homem enigmático. O jornalista Lira Neto contribui para iluminá-lo na biografia “Castello — A Marcha Para a Ditadura”. Ele era uma espécie de Fouché, um homem das sombras, articulado e inteligente. E, sim, queria mesmo devolver o poder aos civis — desde que a um aliado, como Bilac Pinto. Mas, sob pressão da linha dura, aceitou a candidatura de Costa e Silva a presidente. “O que está em jogo é a sagrada unidade das Forças Armadas”, disse Castello aos aliados. “Vamos vender o futuro por uma solução precipitada do presidente”, contestou o general Ernesto Geisel. Ao exonerar Sylvio Frota do Ministério do Exército, anos depois, Geisel não quis ser o Castello Branco 2.
Editora Companhia das Letras, 464 páginas.
25
Ernesto Geisel — Maria Celina D’Araújo e Celso Castro
O livro “Ernesto Geisel”, organizado pelos historiadores Marina Celina D’Araújo e Celso Castro, contém uma longa entrevista do general-presidente que, com o apoio de Golbery do Couto e Silva, matou a ditadura. Ernesto Geisel mostra-se de uma sinceridade impressionante: “Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões”. Garante que o comandante do Exército de São Paulo, Ednardo d’Ávila Melo, era omisso e seus subordinados faziam o que queriam — daí as mortes do jornalista Vladmir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho (militares simularam suicídio dos dois). Admite que Juscelino Kubitschek não era corrupto. E relata como evitou o golpe militar do general Sylvio Frota.
Editora Fundação Getúlio Vargas, 494 páginas.
26
Combate nas Trevas — Jacob Gorender
“Combate nas Trevas”, do historiador Jacob Gorender, publicado há mais de três décadas, permanece o mais importante relato sobre as ações da esquerda contra os governos militares. Embora crítico da ditadura, mostrando os abusos de militares e delegados de polícia, Jacob Gorender não faz uma defesa desbragada e cega da esquerda. Faz críticas, aponta insuficiências de interpretação da realidade brasileira e revela justiçamentos feitos pelos esquerdistas. “A Revolução Impossível — A Esquerda e a Luta Armada no Brasil” (Best Seller, 755 páginas), de Luís Mir, é um bom livro, embora seja criticado por acadêmicos. Ele antecipou, por exemplo, uma história relatada por Gorender: o encontro de Carlos Marighella com o general Albuquerque Lima. Em plena ditadura.
Editora Ática, 294 páginas.
27
Ministério do Silêncio — Lucas Figueiredo
“Como Eles Agiam — Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia Política” (Record, 269 páginas), do historiador Carlos Fico, é excelente. Carlos Fico talvez seja o principal historiador do período ditatorial. Sua história pode ser complementada pelo livro “Ministério do Silêncio — A História do Serviço Secreto Brasileiro de Washington Luís a Lula: 1927-2005”, de Lucas Figueiredo. “O modelo do SNI era mais parecido com o adotado pela ditadura comunista da União Soviética”, escreve Lucas Figueiredo.
Editora Record, 591 páginas.
28
Os Advogados e a Ditadura de 1964 — Fernando Sá
Ser advogado de presos políticos na ditadura não era fácil. Mesmo assim, sob ameaças e pressões, alguns advogados trabalharam para encontrar (as prisões não eram notificadas às famílias) e defender presos políticos. “Os Advogados e a Ditadura de 1964 — A Defesa dos Perseguidos Políticos no Brasil”, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, com prefácio de d. Paulo Evaristo Arns, conta a história de Sobral Pinto, Modesto da Silva, Mário de Passos Simas, Heleno Fragoso, Aírton Soares, Marcello Alencar, Sigmaringa Seixas, George Tavares, Hélio Bicudo, Luiz Eduardo Greenhalgh e, entre outros, Dalmo Dallari.
Editoras PUC-Rio e Vozes, 279 páginas.
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Mata! — O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia — Leonencio Nossa
O jornalismo e, mesmo, a academia ainda não digeriram a qualidade do livro “Mata! O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia”, do jornalista Leonencio Nossa. Como Sebastião Curió é apresentado como uma figura execrável, porque teria contribuído para matar pessoas a sangue frio, um livro que apresenta sua versão acaba por ser malvisto. No entanto, ainda que se mantenha reservas, é provável que a obra deva ser vista sobretudo como um documento histórico. Mais: a pesquisa do repórter vai além das versões do militar. O jornalista Hugo Studart é autor de “A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia” (Geração Editorial, 383 páginas). A guerrilha deixou de ser “propriedade” da esquerda.
Editora Companhia das Letras, 443 páginas.
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Marighella — Mário Magalhães
Vale a pena ler a biografia “Marighella — O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo”, do jornalista e pesquisador Mário Magalhães. O estudo consumiu nove anos e é excelente. É uma história do Brasil vista a partir da perspectiva de um indivíduo. Como não se trata de obra de condenação de Carlos Marighella (líder máximo da Ação Libertadora Nacional, ALN), que evidentemente não era democrata, acabou criticada com aspereza. Entretanto, embora empática, não se trata de obra de exaltação. É rigorosa, precisa. Um magnífico relato do século 20 brasileiro e, por vezes, global. O editor italiano Feltrinelli, para citar um exemplo, apoiou a causa do revolucionário baiano.
Editora Companhia da Letras, 732 páginas.
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Injustiçados — Lucas Ferraz
O jornalista Lucas Ferraz meteu-se num vespeiro, mas sem maiores consequências, ao investigar um fato que a esquerda não aprecia lembrar. Prefere esquecer. Numa luta desigual contra as forças da repressão, os guerrilheiros, a partir de determinado momento, no lugar de atacar, encolheram-se numa defensiva insana. Por isso, uma certa paranoia sobre infiltrados — e, de fato, a esquerda, mesmo a revolucionária, foi amplamente infiltrada, o que resultou em várias quedas e mortes — prevaleceu, na década de 1970. Quatro militantes foram justiçados pelos companheiros: Márcio Leite de Toledo, Carlos Alberto Maciel Cardoso, Francisco Jacques de Alvarenga e Salatiel Teixeira Rolim. Para citar apenas um deles, Márcio Toledo queria apenas deixar a guerrilha, pois não acreditava mais em sua capacidade de derrotar as forças da repressão. Liderado por Carlos Eugênio Coelho Sarmento da Paz, da ALN terminal, um grupo matou o jovem. Lucas Ferraz assinala: “Os quatro foram assassinados pelos companheiros após serem presos e torturados pela repressão. Todos eram inocentes: não tinham cometido os crimes de traição atribuídos a eles nos tribunais revolucionários que os julgaram à revelia. Os quatro nunca foram reconhecidos pelo Estado como vítimas da ditadura”.
Editora Companhia das Letras, 238 páginas.
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Uma Mulher Vestida de Silêncio — Wagner William
Maria Tereza Goulart era uma mulher bela, admirada por brasileiros e estrangeiros. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, não era nenhum bibelô. O líder máximo da Iugoslávia, Broz Tito, ficou encantado com a primeira-dama, chegando a assediá-la, de maneira ostensiva, mas sem nenhuma correspondência. “Uma Mulher Vestida de Silêncio — A Biografia de Maria Thereza Goulart”, de Wagner William, é excelente. Conta-se, com rara felicidade, a vida de Maria Thereza e Jango e, conectado, a história do Brasil. Com a vantagem de que o autor, até por ser jornalista, escreve com o máximo de clareza, sem jargões acadêmicos. No governo de Jango havia o que se chamava de “dispositivo militar” ou “esquema militar”. Entretanto, o dispositivo militar do general Assis Brasil talvez tenha sido a maior ficção do governo de João Goulart. Tanto que, quando o militar decidiu visitar o ex-presidente no exílio, foi recebido com um tapa na cara — muito bem dado por Maria Tereza. Proibido de entrar no apartamento do casal, Assis Brasil disse: “Por que não vou entrar? Vim visitar meu amigo”. A intrépida Maria Thereza respondeu, na bucha: “Que amigo coisa nenhuma! Vou mostrar o que o piá merece”. “Ela então o empurrou e deu-lhe um tapa com a mão esquerda, a canhota proibida, que atingiu o rosto do general. Em seguida, fechou a porta e trancou a fechadura. Tremia, mas sentia-se vingada.” O “esquema” da gaúcha mostrou-se mais poderoso do que o “esquema” do general. Jango riu muito da história.
Record, 643 páginas.
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Borboletas e Lobisomens — Hugo Studart
Um dos feitos do pesquisador e jornalista Hugo Studart, na sua tese de doutorado — “Borboletas e Lobisomens: Vidas, Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia” —, é contar a Guerrilha do Araguaia com os dois (ou mais participantes, incluindo os camponeses). Rastreia-se a história dos guerrilheiros e também a dos militares que os combateram. Pode-se falar que, com este livro, a história da batalha se torna mais inclusiva. Ouvi dizer, por aí, que a obra “serve” aos militares. Não procede. A crueldade dos homens do Exército é evidenciada sem escamoteação. Além disso, como talvez nenhum outro, o doutor pela UnB exibe, de maneira exemplar, a cadeia de comando militar no Araguaia. Pessoas pouco informadas ficam com a impressão, por vezes, que o chefão militar na região, entre Goiás (Tocantins) e Pará, era o major Sebastião de Moura, o Curió. Não era. Studart mostra isto muito bem, abrindo picadas para novos estudos sobre o assunto. Por fim, a narrativa do pesquisador chega a ser épica. Sim: este é um livro muito bom. Um livro aberto, digamos, e um verdadeiro maná como documento histórico.
Editora Francisco Alves, 658 páginas.
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A Casa da Vovó — Marcelo Godoy
Fala-se, comumente na imprensa, que, na ditadura, as pessoas eram torturadas e mortas nos chamados “porões”, como a famosa Casa da Morte de Petrópolis. Porém, a rigor, tais locais, que agasalhavam homens do Estado — militares e policiais civis —, não eram porões. Eram casas oficiais provisórias. Por vezes, vários integrantes da esquerda foram torturados e mortos em locais inteiramente oficiais. Ao criar o DOI-Codi, a repressão deu um passo à frente no combate aos guerrilheiros, tornando-se mais sofisticada e cruenta. O jornalista Marcelo Godoy escreveu um livro exemplar sobre o assunto: “A Casa da Vovó — Uma Biografia do DOI-Codi (1969-1991), o Centro de Sequestro, Tortura e Morte da Ditadura Militar”. Nas páginas 266 e 267, o “biógrafo” conta parte da trajetória dos “cachorros”, os infiltrados na guerrilha. João Henrique Ferreira de Carvalho — codinomes Jair e Jota — era do setor de inteligência da ALN e, ao mesmo tempo, infiltrado pelos militares. Chegou a dividir um apartamento com os goianos Athos Pereira da Silva, Edmilson Souza Lima e Pedro Tierra (que, claro, não tinham envolvimento algum com “cachorradas” do espião). Ele foi um dos principais informantes responsáveis pelo desmonte da Ação Libertadora Nacional. O quinta-coluna chegou a assinar contrato com a repressão.
Editora Alameda, 611 páginas.
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Alma em Fogo — Aldo Arantes
“Alma em Fogo — Memórias de um Militante Político”, de Aldo Arantes, de 85 anos, é um livro valioso para quem se interessa pela história do Brasil recente. Filiado ao PC do B, Aldo Arantes foi presidente da UNE e deputado federal. Num país onde a indecência tira nota dez, o advogado e mestre pela UnB é de uma decência rara. A obra cita Tancredo Neves e João Goulart, com os quais o autor se encontrou, Lúcia Vânia, Henrique Meirelles (são primos), Guerrilha do Araguaia, Machado de Assis (do qual é leitor), Mauro Borges, Henrique Santillo. Menciona uma articulação para matá-lo. Na página 134, conta-se a história dos dólares cubanos repassados para Leonel Brizola. Aldo e Betinho receberam 5 mil dólares para organizar um movimento armado. Mas os dois decidiram usar o dinheiro “na reorganização da AP”. “O dinheiro fazia parte da ajuda dada pelo governo de Cuba a Brizola”. Certa feita, Aldo e o pessoal da AP decidiu devolver dinheiro para os cubanos. Paulo Wright levou o dinheiro e os cubanos ficaram espantados. Era “a primeira vez que aquilo ocorria”.
Fundação Maurício Gabrois/Anita Garibaldi, 489 páginas.