A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, tem o poder de provocar separações…inclusive a de Sandy e Lucas Lima?

08 outubro 2023 às 00h01


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“Dizer que a gente vai amar uma pessoa a vida toda é como dizer que uma vela continuará a queimar enquanto vivermos.” — “A Sonata a Kreutzer”, de Liev Tolstói.
Liev Tolstói (1828-1910) era tão poderoso, como escritor, que desafiou nada menos do que William Shakespeare. O russo não apreciava o britânico. Detestava-o e escreveu contra o autor de “Rei Lear”. O criador de “Anna Kariênina” e “Guerra e Paz” abominava a história do dramaturgo e bardo inglês (mas, quando dividiu seus bens, recomendou aos filhos que a lessem).
O crítico Harold Bloom, em “Gênio — Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura” (Objetiva, 832 páginas, tradução de José Roberto O’Shea), afirma que Tolstói percebia, em Shakespeare, um rival à sua altura. Por isso decidiu depreciá-lo. (Confira abaixo link que apresenta a questão de maneira mais ampla.)
Recentemente, a imprensa divulgou que o músico Lucas Lima se separou da cantora Sandy depois da leitura de “A Morte de Ivan Ilitch” (Editora 34, 96 páginas, tradução de Boris Schnaiderman). Por que esta novela e não “A Sonata a Kreutzer” (Editora 34, 120 páginas, tradução de Boris Schnaiderman) — um drama de traição amorosa? Não sei.
De fato, “A Morte de Ivan Ilitch” mostra um casamento ruim — entre Ivan Ilitch Golovin, juiz do foro criminal, e Praskóvia Fiódorovna Golovina — e relata a história de vidas, digamos, insípidas. Vidas mal vividas, e não apenas as do casal, por certo.


Afinal, o casamento de Sandy e Lucas Lima era ruim? Não parecia. Mas o que se pode saber realmente dos escaninhos dos amores e desamores alheios? Em “A Sonata a Kreutzer”, há um trecho clássico sobre a “durabilidade” do amor: “Dizer que a gente vai amar uma pessoa a vida toda é como dizer que uma vela continuará a queimar enquanto vivermos”.
Vladimir Nabokov é autor de um texto relevante sobre “A Morte de Ivan Ilitch”, publicado no livro “Lições de Literatura Russa” (Três Estrelas, 399 páginas, tradução de Jorio Dauster), no qual diz: “… não se trata da história da morte de Ivan, e sim da vida”.
Crônica de uma morte anunciada
Vejamos, a partir de agora, o que Tolstói conta na novela — uma de suas melhores obras. Uma poderosa reflexão — sem dó nem piedade — sobre a vida e a morte e a respeito do que o indivíduo pode fazer com sua vida.
A história começa com uma reunião entre juízes e um promotor. De repente, Piotr Ivánovitch, que estava lendo um jornal, noticia a morte de Ivan Ilitch, ocorrida em 4 de fevereiro de 1882. “Todos gostavam dele”, porém, mesmo assim, começaram a especular sobre “transferências” e “promoções” — que seriam desencadeadas com o falecimento do magistrado. Fiódor Vassílievitch já pensa que, além de subir um posto, terá “um aumento de 800 rublos”.
“O próprio fato da morte de um conhecido tão próximo despertou como de costume, em cada um que dela teve conhecimento, um sentimento de alegria pelo fato de que morrera um outro e não ele”, relata o narrador. “‘Aí está, morreu.; e eu não’, pensou ou sentiu cada um.” Os colegas do defunto estavam mais interessados numa partida de uíste.


No velório, ao se encontrar com a viúva Praskóvia, “mulher baixa e gorda”, Piotr Ivánovitch ouviu que, nos últimos dias, Ivan Ilitch havia sofrido muito. “Ele não parou de gritar. Gritou sem cessar três dias seguidos.”
À beira da morte, Ivan Ilitch não perdeu a consciência, de acordo com Praskóvia. “Despediu-se de nós um quarto de hora antes de morrer.”
O juiz ainda estava “quente” no caixão, mas, demonstrando pragmatismo, Praskóvia quis saber, de Piotr Ivánovitch, “como obter dinheiro do Tesouro, em consequência da morte do marido”. Na verdade, ela já sabia sobre seus direitos. “Ela queria saber se não era possível de algum modo abocanhar ainda mais.” Interesseira ou sensata? Talvez as duas coisas.
Piotr Ivánovitch, ao perguntar se tinha “pena”, recebe uma resposta direta do criado Guerássim: “É a vontade de Deus. Iremos todos para lá”. O realismo do mujique impressionou o magistrado.
Juiz do foro criminal, Ivan Ilitch morreu aos 45 anos. Tolstói, depois de começar pela morte, retoma a história da vida do magistrado.
Filho de um funcionário público “inútil” (“de diversas repartições desnecessárias”) de São Petersburgo, Ivan Ilitch é “le phénix de la famille” — “uma pessoa inteligente, viva, agradável… brilhava nos estudos”.

Filho de uma família de classe média, pendurada no setor público, Ivan Ilitch não era um “adulador”. Porém, segundo o narrador, “desde a idade mais tenra, era atraído, como a mosca pela luz, pelas pessoas altamente colocadas na sociedade, assimilava as suas maneiras, a sua visão de vida, e estabelecia relações amistosas com elas”. Era, na linguagem do nosso tempo, um alpinista social. Na Faculdade de Direito, ele aderiu às ideias do liberalismo, moderadamente.
No setor público, começou auxiliando um governador. O emprego foi arranjado pelo pai, Iliá Iefímovitch Golovin. Deu-se bem na província, como tantos burocratas — vivendo de maneira insípida, mas divertindo-se à larga. “Prestava serviços, fazia carreira e, ao mesmo tempo, divertia-se agradável e decentemente.” Ao menos financeiramente, era honesto.
Depois de cinco anos como funcionário subalterno, sem nenhuma importância, Ivan Ilitch foi promovido. Ganhou o cargo de juiz de instrução. “Decente, capaz de separar as obrigações funcionais e a vida particular”, era “uma pessoa que inspirava consideração geral”.
Como juiz, Ivan Ilitch não abusava de sua autoridade. “Mas a consciência dessa autoridade e a possibilidade de atenuá-la constituíam para ele o interesse principal e a atração do seu novo cargo. (…) Ele foi um dos primeiros homens que elaboraram na prática a aplicação dos decretos de 1864” (que liberalizaram, ao menos em parte, a Rússia).
Mulher bonitinha e direita
O juiz Ivan Ilitch não era recluso e participava de festas, nas quais dançava, e bem. Numa delas, conheceu Praskóvia Fiódorovna Michel — “a moça mais atraente, brilhante e inteligente do círculo de relações” do magistrado.

De família fidalga (“havia uma pecuniazinha”), Praskóvia apaixonou-se por Ivan Ilitch, que não parecia entusiasmado com o casamento. Entretanto, ante a paixão da jovem, ele pensou: “Por que, realmente, não casar?” Afinal, a garota era “uma mulher simpática, bonitinha, direita”.
Adicto às normas da sociedade, Ivan Ilitch pensava numa “vida leve, agradável, alegre e sempre decente e aprovada pela sociedade”. O casamento fazia parte deste ideário.
O casamento desandou desde o início. Primeiro, Praskóvia mostra-se enciumada. Depois, começou a destratar o marido (frise-se que o narrador parece preso ao ponto de vista do juiz, raramente dando voz à “oponente”. Porque Ivan Ilitch a desagradava, não se fica sabendo. Não havia amor, o sexo era ruim? O narrador nada esclarece).
Para se livrar dos xingamentos de Praskóvia, Ivan Ilitch dedicou-se ainda mais ao trabalho e aos jogos com os amigos. Criou “para si um mundo fora da família”. “Na medida em que sua mulher se tornava mais irritadiça e exigente, ele transferia cada vez mais para o serviço o centro de gravidade da sua vida. Passou a gostar mais do serviço e tornou-se mais ambicioso.”
Funcionário competente, Ivan Ilitch se tornou “suplente de promotor”. “As novas obrigações, a importância destas, a possibilidade de processar e fazer encarcerar qualquer um, o êxito que tinha, tudo isto atraía-o ainda mais para a sua vida funcional.”


O nascimento dos filhos não melhorou o relacionamento entre Ivan Ilitch e Praskóvia. Esta “ficava cada dia mais resmungona e zangada”. Mas o marido vivia em dois mundos — o da família, em que era uma presença-ausência, e naquele que havia criado para se “proteger” psiquicamente.
Enviado para outra cidade, para trabalhar como promotor, Ivan Ilitch passou a ganhar mais. Porém, o dinheiro era insuficiente para uma vida confortável, burguesa, digamos. A morte de dois filhos abalou o marido, e, de novo, não sabemos como reagiu Praskóvia. “Sobravam apenas uns raros períodos de paixão, que às vezes assaltavam os esposos, mas que duravam pouco. Eram ilhotas.” Prevalecia uma hostilidade acentuada entre o casal.
Cada vez mais, Ivan Ilitch passava menos tempo com a família. “O principal era o fato de existir a sua vida de funcionário. Todo o interesse da existência concentrou-se para ele no mundo judiciário. E esse interesse absorvia-o.” Era um mestre na condução dos casos criminais. Sentia-se poderoso.
A vida, na visão de Ivan Ilitch, era “adequada: agradável” e “decente”. Ele no seu canto e Praskóvia no canto dela. “Assim viveu Ivan Ilitch 17 anos de casado.” E a voz de Praskóvia? Quase não a temos.


Na “disputa” pelo cargo de juiz-presidente numa cidade universitária, Ivan Ilitch deu-se mal. Não conseguiu o cargo e se indispôs com os colegas. Corria o ano de 1880.
A crise acentuou-se porque “o ordenado” de Ivan Ilitch “era insuficiente para viver”. Ele recebia 3.500 rublos. Passou a contrair dívidas para manter o padrão de vida. A mulher e os dois filhos (um deles adolescente) não tinham vencimentos e a família mantinha funcionários.
Dada a crise financeira, Ivan Ilitch viajou para Petersburgo. Na cidade, sob proteção dos amigos, ganhou o ambicionado cargo e 5 mil rublos de salário, com “uma ajuda de custo de 3.500 rublos”. Praskóvia ficou contente.
Feliz com a promoção, Ivan Ilitch alugou um imóvel e o mobiliou, sem a assessoria de Praskóvia. Ao “ensinar” a um profissional como queria o forro da parede, ele caiu, chocando-se “com o ressalto de uma moldura”. A dor passou e ele a esqueceu (mas o corpo, adiante, “cobrou” dele).
Antecipando-se a Chico Buarque, ao registrar o cotidiano da vida de um casal, o narrador assinala: “A vida de Ivan Ilitch correu da maneira pela qual, segundo a sua concepção, devia correr: leve, agradável e decentemente. Levantava-se às nove, tomava café, lia o jornal, depois vestia o uniforme e ia para o tribunal”. Em suma, uma vida insossa, trivial. (O casamento de Lucas Lima e Sandy se tornou modorrento? Talvez, como muitos outros.) O juiz apreciava fumar, tomar chá e conversar “um pouco sobre política”. Num ambiente pré-revolucionário, não tinha opiniões sólidas sobre o assunto. “Lia às vezes algum livro muito falado, de noite sentava-se para estudar os seus casos”.


Assim era o magistrado no trabalho: “Ivan Ilitch possuía no mais alto grau esta capacidade de isolar o lado funcional, não o confundindo com sua vida verdadeira, e, graças a uma prática prolongada e talento, cultivou essa capacidade a tal ponto que, até como um virtuose, permitia-se às vezes como que misturar, brincando, as relações humana e funcional. Permitia-se isto porque sentia em si forças suficientes, sempre que lhe era necessário destacar apenas o funcional e repetir o humano”.
As relações com Praskóvia voltaram ao “normal”. Numa recepção, na casa deles, ela o chamou de “imbecil, pamonha”. Ivan Ilitch chegou a falar em divórcio, mas não foi além da intenção. A verdadeira alegria do magistrado? Jogar cartas — o uíste. A filha, Lisanka, começou a namorar Pietrichtchov, um bom partido.
A terrível doença do juiz Ivan Ilitch
Com pouco mais de 40 anos, Ivan Ilitch começou a sentir um “gosto esquisito na boca e certa sensação desagradável no lado esquerdo do estômago”. O narrador não explicita qual era a doença. Vladimir Nabokov sugere “câncer num rim”.
O narrador faz uma concessão a Praskóvia, ao admitir que, quando ela dizia que Ivan Ilitch “tinha um gênio difícil”, não era sem fundamento. “É verdade que era ele quem iniciava, agora, as brigas.”
Praskóvia “odiava” o marido. “Passou a desejar que ele morresse, mas não podia desejá-lo, pois, se isto acontecesse, não havia mais ordenado.”


Pressionado pela mulher, Ivan Ilitch começou a consultar médicos, inclusive um homeopata. Um deles, ante a pergunta se a situação era grave, dissertou sobre “rim móvel, catarro crônico e afecção no ceco”. (Colho na Wikipédia: “O ceco, que se localiza no início o cólon ascendente, é o ponto no qual o intestino delgado se une ao intestino grosso”.)
Ao sair do consultório, “nas ruas, tudo lhe pareceu triste”. A dor, surda e abafada, continuava. Tomou uma infinidade de remédios, mas a dor não cedia. Tornou-se raivoso. “Sentia que” o “enfurecimento o estava matando, mas não podia privar-se dele”.
“A dor do lado não cessava de atormentá-lo, parecia cada vez mais forte, tornava-se permanente, o gosto na boca era cada vez mais esquisito, estava com a impressão de ter hálito asqueroso, e cada vez mais tinha menos apetite, menos forças.” Ivan Ilitch quase não dormia.
Impaciente, Praskóvia culpava o marido pela doença. Era, sugeria, “um novo dissabor que ele” lhe “causava”.
Talvez paranoico, Ivan Ilitch começou a notar que, quando o viam no tribunal, os colegas já começavam a pensar na sua cobiçada vaga.
A doença parece que gera um certo “despertar”. Quando está sozinho, Ivan Ilitch demonstra ter consciência “de que sua vida está envenenada, que ela envenena a vida dos demais e que este veneno não se enfraquece, mas penetra cada vez mais todo o seu ser. (…) E sozinho tinha que viver assim à beira da perdição, sem nenhuma pessoa que o compreendesse e se apiedasse ele”.


Depois de se olhar no espelho, percebendo o rosto em frangalho, “ficou mais negro que a noite”.
Escondido atrás de uma porta, ouviu o cunhado dizer a Praskóvia: “Ele é um homem morto, veja seus olhos. Não têm luz”.
“Mas o que é que tem?”, pergunta o irmão de Praskóvia. Ivan Ilitch pensa: “Rim, um rim móvel” (talvez por causa da pancada descrita acima). Ou poderia ser um problema no ceco. Ele pegou um romance do escritor francês Émile Zola, “mas não leu”. “De repente, sentiu a dor conhecida, abafada, surda, insistente, quieta, séria.” A boca ficou amarga.
O “problema” de Ivan Ilitch não era “apenas” físico. Ele próprio atesta: “O caso não está no ceco, nem no rim, mas na vida e… na morte. Sim, a vida existiu, mais eis que está indo embora, embora, e eu não posso detê-la. Para que vou enganar-me? Não é evidente para todos, com exceção de mim, que estou morrendo. (…) Existiu luz, e agora é a treva. (…) Eu não existirei mais, o que existirá então? Não existirá nada. Onde estarei então, quando não existir mais? Será realmente a morte? Não, não quero”.
Apesar de certo grau de consciência, de que a vida estava indo embora, Ivan Ilitch resiste. E os demais: amigos e parentes? “Para eles, tanto faz, mas também eles hão de morrer. Bobalhões. Eu vou primeiro, eles depois; hão de passar pelo mesmo que eu.” Em seguida, admite: “Não tenho mais luz nos olhos”.
Praskóvia pergunta: “O que tem você, Jean?” (ela às vezes chama Ivan Ilitch de Jean). A mulher o beija, o que o irrita. “Ele a odiava de todo o coração, nos momentos em que ela o beijava, e fez um esforço para não a repelir.”


O narrador, como uma espécie de analista, pontua: “Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, mas simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo”.
“‘E não pode ser que eu tenha de morrer. Seria demasiadamente terrível’. Era assim que” Ivan Ilitch “sentia”.
No terceiro mês da doença, Ivan Ilitch estava um caco, um sofrimento só. “A mulher, a filha, o filho, os criados, os conhecidos, os médicos, e sobretudo ele mesmo, souberam que todo o interesse que ele apresentava para os demais consistia unicamente em indagar se não demoraria muito a desocupar finalmente o seu lugar, a livrar os vivos da opressão causada pela sua presença, e a livrar-se ele mesmo dos seus sofrimentos.”
Na tentativa de se livrar da dor tenaz, Ivan Ilitch tomava ópio. Os médicos aplicavam morfina. O alívio era temporário no corpo. Mas a angústia, derivada de que sabia que estava morrendo, era a “dor” mais insuportável.
O mujique Guerássim cuidava de sua higiene e o mudava da cama para o divã e vice-versa. Um dia, constrangido, Ivan Ilitch disse: “Isto é desagradável para você. Desculpe. Eu não posso”. O copeiro faz-tudo respondeu: “Que é isso? Por que não me esforçar? O seu caso é de doença”. O juiz ficou comovido com a humanidade do criado.
O sofrimento, a mentira e a impotência
De acordo com o narrador, “o sofrimento maior de Ivan Ilitch provinha da mentira, aquela mentira aceita por algum motivo por todos, no sentido de que ele estava apenas doente e não moribundo”. Além disso, o obrigavam “a tomar também parte nessa mentira”. A rigor, ele queria viver. Então, a mentira também resultava disso. Tanto que quis denunciar a mentira, “mas nunca teve ânimo de fazê-lo”. Só Guerássim parecia compreendê-lo.


Apesar de suas contradições — exigindo a verdade e, ao mesmo tempo, apostando na mentira (chegou a acreditar que sobreviveria) —, Ivan Ilitch “queria, mais que tudo, por mais que se envergonhasse de confessá-lo, que alguém se apiedasse dele como de uma criança doente. Queria ser acarinhado, beijado, que chorassem sobre ele”. O fato é que a mentira às vezes é piedosa… e necessária. “A morte, a treva. Não, não. Tudo é melhor que a morte!” Era assim que, realmente, pensava o juiz.
Quando o criado Piotr entrou no seu quarto, Ivan Ilitch não o reconheceu, parecendo delirar. As dores eram intensas, assim como a angústia. “Ora brilha uma gota de esperança, ora tumultua um mar de desespero, e sempre a dor, sempre a dor, sempre a angústia, é sempre o mesmo. Sozinho, sente uma angústia terrível, dá vontade de chamar alguém, mas sabe de antemão que, em presença de outras pessoas, é pior ainda.”
Um médico famoso disse que não podia garantir a “cura”, mas que “era possível”. Ivan Ilitch gemeu e, após uma injeção, “perdeu a consciência”.
Quando os familiares foram ao teatro, para ver Sarah Bernhardt, Ivan Ilitch “teve pena de si mesmo. Esperou apenas que Guerássim saísse para o quarto vizinho, e deixou então de se conter e chorou como uma criança. Chorava a sua impotência, a sua terrível solidão, a crueldade dos homens, a crueldade de Deus, a ausência de Deus”.
“Para que fizeste tudo isto? Para que me trouxeste aqui? Para quê, para que me torturas tão horrivelmente?”, perguntou-se Ivan Ilitch. “Não havia nem podia haver uma resposta.” A dor era intensa. Ele não queria sofrer, e sim viver.

Ao examinar a história de sua vida, Ivan Ilitch começa a consolidar uma outra visão. A vida não tinha sido tão agradável, na fase adulta. Havia uma certa farsa. Mas “lá, na infância, existia algo realmente agradável, e com que se poderia viver, se aquilo voltasse. Mas não existia mais o homem que tivera aquela experiência agradável: era como que a recordação sobre alguma outra pessoa”. (Será que Lucas Lima, saudável nos seus 40 anos, ficou impactado pela retrospectiva da vida da personagem de Tolstói? O juiz morreu aos 45 anos, frise-se.)
“E quanto mais longe da infância, quanto mais perto do presente, tanto mais insignificantes e duvidosas as alegrias. (…) O matrimônio… tão involuntário, e a decepção, o mau hálito da mulher, a sensualidade, o fingimento! E aquele trabalho morto, e as preocupações de pecúnia. (…) E quanto mais avançava a existência, mais morto era tudo. ‘Como se eu caminhasse pausadamente, descendo a montanha, e imaginasse que a estava subindo. Foi assim mesmo. Segundo a opinião pública, eu subia a montanha, e na mesma medida a vida saía de mim… E agora, pronto, morre!’.”
Ivan Ilitch questiona ou conclui: “Talvez eu não tenha vivido como se deve”. Alguém vive realmente como se deve? Talvez não. Porque a vida de um indivíduo não depende apenas dele, e sim de sua interação com os demais.

Sozinho, às vezes apenas na companhia dos criados, “Ivan Ilitch vivia apenas no passado, graças à imaginação. (…) Quanto mais voltava para trás, mais vida havia”. Adiante, nada — só a morte.
Ao examinar o rosto saudável de Guerássim, Ivan Ilitch pensou: “E o que será se realmente toda a minha vida, a minha vida consciente, tiver sido ‘outra coisa’?” À beira da morte, é uma reflexão interessantíssima. O juiz não era um mero burocrata, um imbecil da rotina. Tolstói o auxilia a refletir sobre si mesmo, quiçá com a morte sendo um guia — o que torna Ivan Ilitch uma grande personagem literária. (É provável que este tipo de pensamento possa ter comovido Lucas Lima.)
Após a reflexão, sobre uma vida não muito rica, Ivan Ilitch sentiu, de repente, “toda fraqueza daquilo que defendia. E não havia o que defender”.
“E se isto é assim, e eu parto da vida com a consciência de que destruí tudo o que me foi dado, se não se pode mais corrigi-lo, que fazer então?” (Ivan Ilitch, com a morte à espreita, não tinha como corrigir mais nada. Lucas Lima entendeu que, sadio, poderia seguir outro caminho, enriquecendo o pedaço já vivido e o pedaço a viver? A descoberta da literatura de Tolstói em si é uma mudança de rota e revela bom gosto literário. Os russos dão muito valor aos seus escritores e poetas — como Púchkin, Gógol, Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev, Tchékhov, Maiakóvski, Óssip Mandelstam, Isaac Bábel, Marina Tsvetáieva, Anna Akhmátova, Boris Pasternak — e acreditam que as obras que criaram podem mudar suas vidas. Lucas Lima seria tão dramático quantos os russos? Há quem diga que nós, brasileiros, somos os russos dos trópicos.)

Ao observar a mulher, o criado, o médico e a filha, Ivan Ilitch viu “neles a si mesmo, tudo aquilo de que vivera, e via claramente que tudo aquilo era não o que deveria ser, mas um embuste horrível, descomunal, que oculta tanto a vida como a morte. A consciência disso aumentou, decuplicou os seus sofrimentos físicos”. Deram-lhe ópio.
Sugeriram uma cirurgia, e, mesmo sabendo que não tinha salvação, Ivan Ilitch dizia para si mesmo: “Viver, quero viver”.
Praskóvia mantinha-se próxima, o que irritava Ivan Ilitch, porque, na sua opinião, ela fazia parte da suposta farsa que havia sido sua vida. “Tudo aquilo de que viveste e de que vives é uma mentira, um embuste, que oculta de ti a vida e a morte.” Ao pensar isto, adquiriu uma consciência profunda de “sua perdição próxima, inevitável”. E gritou: “Vão embora, vão embora, deixem-me!” E, de fato, quem estava indo embora era Ivan Ilitch.
Durante três dias, Ivan Ilitch delirou e gritou. Eram gritos terríveis. “Não quero!”, dizia. Ao olhar os parentes, que mal via, pensou que precisava “libertá-los” com sua morte. “Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia. Em lugar da morte, havia luz.”
Alguém disse: “Acabou!” Ainda vivo, Ivan Ilitch disse para si: “A morte acabou. Não existe mais”. Então morreu. O que é a morte senão um pedacinho da vida — poderia se dizer a respeito do magistrado russo.
(Uma curiosidade: numa carta para Tolstói, Turguêniev escreveu: “Os médicos sequer sabem como chamar minha doença. Não consigo andar, não posso comer, nem dormir, mas e daí?” A história está contada, entre as páginas 380 e 381, no livro “Tolstói — A Biografia”, de Rosamund Bartlett, Biblioteca Azul, 639 páginas, tradução de Renato Marques.)