Tolstói criticou Shakespeare e se tornou o Rei Lear

11 abril 2019 às 12h01

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Russo disse que “Rei Lear” é uma peça loquaz, artificial, ininteligível, vulgar e repleta de acontecimentos inverossímeis, ‘devaneios absurdos’” e seria um plágio
O escritor e crítico literário russo Vladimir Nabokov disse, no ensaio “Kariênina”, um dos melhores do livro “Curso de Literatura Russa” (RBA Livros, 485 páginas, tradução de María Luisa Balseiro Fernández-Campoamor, inédito em português¹): “Tolstói é o maior escritor russo de ficção em prosa. À parte seus predecessores Púchkin e Liérmontov, poderíamos enumerar assim aos maiores artistas da prosa russa: primeiro, Tolstói; segundo, Gógol; terceiro, Tchekhov; quarto, Turguêniev” (página 225).
O romance “Anna Kariênina” (Cosac Naify², 816 páginas, tradução de Rubens Figueiredo) “é imortal”, avaliza Nabokov, o brilhante autor dos romances “Ada” e “Fogo Pálido”. Como o autor de “Lolita”, Liev Tolstói (1828-1910) também se dedicava, eventualmente, a explicar as obras de outros escritores, não raro para tentar diminuir sua importância. O poeta e dramaturgo britânico William Shakespeare, tido por Harold Bloom como “o cânone ocidental” e “inventor” do homem moderno, era sua vítima mais frequente.
Não há ninguém que duvide da genialidade do bardo inglês. Ninguém, vírgula. Tolstói o abominava e escreveu ensaios — como “Shakespeare e o Teatro” (ou “Shakespeare e a Arte Dramática”), de 1906 — com o propósito de desancá-lo. A história está contada, parcial ou amplamente, em vários livros, como “Dentro da Baleia e Outros Ensaios” (Companhia das Letras, 227 páginas, tradução de José Antônio Arantes), de George Orwell; “O Cânone Ocidental — Os Livros e a Escola do Tempo” (Objetiva, 552 páginas, tradução de Marcos Santarrita) e “Gênio — Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura” (Objetiva, 828 páginas, tradução de José Roberto O’Shea), ambos de Harold Bloom; “Shakespeare” (Jorge Zahar Editor, 146 páginas, tradução de Barbara Heliodora), de Germaine Greer; “Pensadores Russos” (Companhia das Letras, 318 páginas, tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura), de Isaiah Berlin, e “A Última Estação — Os Últimos Dias de Tolstói” (Rocco, 308 páginas, tradução de Sonia Coutinho), de Jay Parini.

No ensaio “Lear, Tolstói e o Bobo” (22 páginas), incluído no livro citado no parágrafo anterior, Orwell tenta explicar o “ódio racional” do escritor russo por seu par inglês. Shakespeare despertava em Tolstói “uma repulsa e um tédio irresistíveis”. Aos 75 anos, releu a obra do autor de “Hamlet” e “Rei Lear” e escreveu: “Tive as mesmas sensações com uma força ainda maior — desta vez, porém, não é de perplexidade, mas de convicções firme e indubitável de que a glória inquestionável de grande gênio que Shakespeare desfruta, e que impele escritores de nossa época a imitarem-no, e leitores e espectadores a descobrirem nele méritos inexistentes, desvirtuando desse modo seu entendimento ético e estético, é um grande mal e uma inverdade total”. Harold Bloom (“Cânone Ocidental”) recolhe outro ataque: “O tema das peças de Shakespeare, como se vê pelas demonstrações de seus maiores admiradores, é aquela visão mais inferior, mais vulgar da vida, que encara a elevação externa dos senhores do mundo como uma verdadeira distinção, despreza a multidão, ou seja, a classe operária, repudia não apenas todas as religiões, mas também todos os esforços humanitários voltados para a melhoria da ordem existente”.
A peça “Rei Lear”, considerada uma das mais importantes de Shakespeare, é a mais criticada. Orwell traça um resumo da interpretação de Tolstói, não é, portanto, sua opinião: “A peça é boba, loquaz, artificial, ininteligível, bombástica, vulgar, tediosa e repleta de acontecimentos inverossímeis, ‘devaneios absurdos’, ‘piadas sem graça’, anacronismos, irrelevâncias, obscenidades, convenções teatrais batidas e outros defeitos morais e estéticos. ‘Lear’ é, em todo caso, plágio de uma peça anterior e muito melhor, ‘King Leir’, de autor desconhecido, que Shakespeare roubou e depois arruinou”.
No seu veredicto, Tolstói assinala (as palavras são de Orwell) que “nenhum espectador não hipnotizado poderia” ler a peça “até o fim com outra sensação que não a de ‘aversão e enfado’”.

Numa acusação mais geral, não apenas a “Rei Lear”, Tolstói diz que Shakespeare (a síntese é de Orwell) “não tem capacidade para delinear um personagem ou fazer palavras e ações brotarem com naturalidade de situações; a linguagem é uniformemente exagerada e ridícula; ele com frequência coloca os próprios pensamentos aleatórios na boca de qualquer personagem conveniente; mostra uma ‘ausência total de sentimento estético’; e as palavras ‘nada têm em comum com arte e poesia’”.
Tolstói afirma (as palavras são inteiramente suas) que “Shakespeare pode ter sido o que quer que se queira, contudo não foi um artista”. E não tem “opiniões originais nem interessantes, e apresenta uma tendência para ‘o mais baixo e o mais imoral’. (…) Como Shakespeare tem um ponto de vista decadente, é desleixado na execução e incapaz de ser sincero por um momento sequer, evidentemente é condenado. (…) As peças de Shakespeare continuaram a ser admiradas por um longo período porque ‘correspondem à disposição de espírito irreligiosa e imoral das classes mais altas do seu e do nosso tempo’”. Por linhas tortas, Tolstói acertou, julga Bloom: “Shakespeare, como dramaturgo, não é cristão nem moralista” (“Cânone Ocidental”).
Depois de expor a crítica de Tolstói, que sugeria que Shakespeare passaria, como Balzac (que não passou), segundo Madame de Stäel, Orwell diz: “Não existe nenhuma verificação de mérito literário exceto a sobrevivência, que em si mesma é apenas uma indicação da opinião da maioria”.
A crítica de Tolstói é de profunda má-fé, acha Orwell, que se pergunta sobre os motivos de, entre mais de 30 peças, o russo ter implicado com “Rei Lear”: “Não seria possível que alimentasse um ódio em relação a essa peça por ser sabedor, consciente ou inconscientemente, da semelhança entre a história de Lear e sua própria história?” (encanecido, Tolstói morreu brigado com sua mulher, fugindo dela, numa estação de trem). Harold Bloom (“Cânone Ocidental”) avaliza Orwell: “Grande parte do ensaio de Tolstói é dedicado a ridicularizar ‘Rei Lear’, uma triste ironia, pois Tolstói, ao chegar à ultima estação de sua cruz, se transformou involuntariamente no Rei Lear”.
Embora admire apaixonadamente o autor de “Khadji-Murat”, Harold Bloom não hesita: “O ensaio de Tolstói é um desastre, suscitando a séria pergunta de como um tão grande escritor pode se enganar tanto”. O bardo britânico nada tinha de simplório ou de puramente elitista: “Shakespeare, como Tolstói recusava a ver, é praticamente único no manifestar simultaneamente a arte difícil e a popular”. O russo era, a um só tempo, “aristocrata e populista”. Segundo o filósofo Isaiah Berlin, tinha uma visão de mundo mais ampla e menos estreita do que a de Fiódor Dostoiévski (com quem Nabokov, por sinal, não simpatiza).
No “Cânone Ocidental”, Bloom afirma: “Sua [de Tolstói] personagem mais forte, Anna Kariênina, tem profundos veios de Shakespeare, pelos quais Tolstói, que a ama, não a perdoará. (…) Khadji-Murat é a história mais shakespeariana de Tolstói em sua galeria de ricas caracterizações, na extraordinária gama de suas simpatias dramáticas, acima de tudo na representação da mudança em seu protagonista central. Como Shakespeare, o Tolstói que narra a história de Khadji-Murat é ao mesmo tempo todo mundo e ninguém, interessado e desinteressado, profundamente comovido mas desapaixonado. Tolstói aprendeu com Shakespeare (embora o tenha negado) a arte de justapor cenas muitíssimo diversas a fim de conseguir continuidade mais complexas do que poderia proporcionar uma simples progressão. (…) ‘Khadji-Murat’ é minha pedra de toque pessoal para o sublime da prosa de ficção, para mim a melhor história do mundo que já li”.
Por que Shakespeare incomodava tanto Tolstói? Bloom, em “Gênio”, oferece uma explicação perspicaz: “Shakespeare perturbava Tolstói porque o distanciamento deste, como autor, assemelha-se ao de Shakespeare e, nos momentos em que a arte suprema se afirma, o moralismo exacerbado cessa. (…) Tolstói percebia que Shakespeare era o seu grande rival, como ficcionista. (…) Tolstói não perdoava Shakespeare, por este ter chegado antes dele”.
Orwell observa que, ao contrário de Tolstói, que era religioso (um religioso talvez bem particular, pois não queria seguir, e sim ser seguido) e queria se tornar uma espécie de Jesus, tanto que o tolstoísmo tinha seguidores fanáticos, Shakespeare tem uma visão mais elástica de mundo. Na sua obra, “o vício é punido, porém a virtude não é recompensada. Não há indicações de um ‘outro mundo’ em que tudo será consertado”, escreve Orwell. Shakespeare percebeu que o homem comum “não deseja o reino dos céus: deseja que a vida continue”. Sobre o escritor, ao contrário do que “pregou” Tolstói, Orwell diz que “ele nos cativa sobretudo pela linguagem. Shakespeare tinha um profundo fascínio pela melodia das palavras”.
História que poderia inspirar Chico Buarque
“De quanta terra precisa um homem?”, de Liev Tolstói, é a melhor história de todos os tempos, segundo o escritor irlandês James Joyce.
Um trecho do conto: “Ah, que sujeito extraordinário! — exclamou o chefe. — Foi agraciado com muita terra! O empregado de Pahóm chegou, correndo, e tentou erguê-lo, mas viu que o sangue lhe jorrava da boca. Pahóm estava morto! Os bashkir estalaram a língua, demonstrando compaixão. O criado pegou a pá e cavou uma sepultura suficientemente longa para conter o corpo de Pahóm, e ali o enterrou. Um metro e oitenta e cinco, dos pés à cabeça, era tudo o que ele precisava”. A tradução é de José Roberto O’Shea, possivelmente do inglês.
O conto está publicado integralmente no terceiro volume dos contos completos de Tolstói (a edição russa contém 90 volumes; a brasileira, três), da Editora Nova Aguilar, com tradução de João Gaspar Simões, Natália Nunes, Oscar Mendes e Milton Amado. Com título ligeiramente diferente, com “o” no lugar de “um”, “De quanta terra precisa o homem?”, o conto exibe a história de Pahóm ou, na versão da Aguilar, Pakome³.
Camponês, Pakome tinha a obsessão de adquirir mais e mais terras. Um dia, disse: “Se tivéssemos todas as [terras] que desejamos, nem ao diabo temeríamos”. O diabo, que estava próximo, dispôs-se a “ajudar” Pakome. O personagem não faz o pacto de modo tão explícito, como em “Fausto”, de Goethe, “Doutor Fausto” (no qual, sabe-se, Mefistófeles é o nazismo), de Thomas Mann, e “Grande Sertão: Veredas” (há nuances e imprecisões propositadas), de Guimarães Rosa. Trata-se de um pacto indireto.
Pakome começa a ser avisado, por desconhecidos (lúcifer, certamente), que, em algumas aldeias, as terras são fartas, férteis e baratas. Acaba por se tornar uma espécie de viajante, saltando de aldeia em aldeia, produzindo trigo e ganhando dinheiro. Ao chegar à terra dos Bachkiros, instigado pelo demônio, que não deixa o cheiro de enxofre no ar, Pankome recebe uma proposta fantástica, de seu ponto de vista. Por uma ninharia, receberia terras a perder de vista. Mas deveria demarcá-las e voltar ao ponto de partida, ao encontro dos bachkiros, antes do crepúsculo. Num só dia.
Como era ambicioso, Pakome demarcou terras muito longínquas e teve de correr muito para chegar a tempo. Chegou, mas não como esperava. Transcrevo o final do conto (que tem 11 páginas, no formato da Aguilar, em papel-bíblia e quase nenhum entrelinhamento — mal se consegue grifar; recomendo o uso de marca-texto), com uma tradução ligeiramente diferente, e menos precisa (no sentido de clareza) do que a de O’Shea: “És um valente! Quanta terra abarcaste! — disse o starchina [chefe dos bachkiros, habitantes da Bachkiria].
“O criado correu, a fim de levantá-lo. Mas Pakome sangrava pela boca. Estava morto.
“Os bachkiros estalaram a língua, para demonstrar que sentiam a morte de Pakome. O criado cavou um fosso de três archines aproximadamente do comprimento do cadáver, e enterrou seu amo”. Archine é uma medida de superfície, equivalente aproximadamente a 71 centímetros.
“Funeral de um lavrador”, a bela e dolorida música de um lavrador, parece (mas não deve ser) inspirada na história de Tolstói.
Funeral de um lavrador
Chico Buarque
Esta cova em que estás, com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho, nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida
É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo
Estarás mais ancho que estavas no mundo
É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo te sentirás largo
Porém mais que no mundo te sentirás largo
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas à terra dada, não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a terra que querias ver dividida
Estarás mais ancho que estavas no mundo
Mas à terra dada, não se abre a boca
Notas
¹ O livro saiu em português pela Editora Três Estrelas com o título de “Lições de Literatura Russa” (400 páginas, tradução de Jorio Dauster).
² Com o fechamento da Cosac Naify, a mesma edição saiu pela Editora Companhia das Letras.
³ O conto pode ser lido, em tradução direta do russo, por Rubens Figueiredo, no livro “Contos Completos” (Companhia das Letras, 1304 páginas), de Liev Tolstói.