“East of Sumatra” virou “Ao Sul de Sumatra”. “O tradutor deve ter ganhado sua bússola numa rifa. ‘East’”, como se sabe em Sumatra mas não no Brasil, é ‘leste’”

Livro do jornalista Ruy Castro contém sessenta artigos deliciosos sobre cinema. A obra mostra que artigos de jornal não são necessariamente datados e superficiais | Foto: Jornal Opção

No Brasil, país no qual se adora o bandeirante, o que vem de fora, o “inglês” Ivan Lessa era (e é, por certo) visto como gênio. A rigor, não deixou nada que prove sua genialidade (até sua tradução de “A Sangue Frio”, romance de não-ficção de Truman Capote, é inferior à de Sergio Flaksman, este menos celebrado. Lessa chega a confundir psiquiatra com psicanalista). Mas se têm em jornais patropis, Ruy Castro na “Folha de S. Paulo” e Sérgio Augusto no “Estadão”, dois jornalistas escrevendo com alta qualidade sobre cultura. Castro está levando seus artigos de jornal para livros — o que prova que os textos, se não superficiais, sobrevivem ao dia seguinte. “Um Filme É Para Sempre” (Companhia das Letras, 430 páginas) contém 60 artigos sobre cinema.

Por que os artigos de Castro permanecem vivos? Porque, além de escrever com graça, como se estivesse se divertindo e com a intenção de nos divertir, é muito bem informado e, sobretudo, examina os filmes, apesar do amparo da bibliografia, com seus próprios olhos. Suas sacadas, por assim dizer, são quase sempre deliciosas. Um dos melhores artigos é “Assim tropeça a humanidade — E outros títulos de filmes em português”, de 2006.

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Cartaz do filme ‘Annie Hall” ou, no Brasil, numa tradução caótica e absolutamente imprecisa, “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, filme do diretor americano Woody Allen

Castro comenta títulos de filmes feitos por brasileiros e portugueses. Os títulos portugueses se tornaram piada corrente nas redes sociais. Conta-se que “Psycho” (no Brasil, “Psicose”) foi traduzido na terra de Camões e Lobo Antunes como “O Filho Que Era Mãe” — o que entrega, de cara, o ouro… ao cinéfilo. Castro diz que, na verdade, em Portugal o título do filme é “Psico”. “Singin’ in the Rain”, entre nós “Cantando na Chuva”, teria se tornado, no país de Eça de Queiroz, “A Cantar Sob o Aguaceiro”. O jornalista corrige: o título é “Serenata à Chuva”. Pode não ter nenhuma excelência, mas é menos pior do que “A Cantar Sob o Aguaceiro”. “Plein Soleil”, sucesso com Alain Delon, virou entre nós “O Sol Por Tes­temunha” (o título “Sol Pleno”, versão literal, não é nada bom e não é utilizado). Em Portugal, segundo a maledicência, seria “O Cadáver Atado ao Barco”. O título entre os portugas é outro: “Sol a Pino”. “Só não posso negar que, por lá, o Gordo e o Magro são o Bucha e o Estica” (sim, leitor, pode rir, não muito, é claro, para não ganhar rugas extras) e “os Três Patetas são os Três Estarolas; e os Irmãos Marx são os Quatro Aldrabões”. Cômico, não? Pois é, mas nós, brasileiros, cometemos gafes parecidas, talvez piores.

Castro diz que “um bom título deve ser aquele que transmita a ideia do título de origem e, se possível, tenha alguma semelhança com ele, nem que seja para permitir a adaptação ou reprodução da arte original no material publicitário”. Claro que um título não pode “entregar” o filme. Embora Castro não siga por este caminho: o que tem a ver “Giant” com “Assim Caminha a Humanidade”? O filme de George Stevens, com Rock Hudson, Elizabeth Taylor e James Dean, no auge de suas carreiras (o terceiro se tornou mais famoso, o Che Guevara do cinema, pós-morte), tem a ver mais com os Estados Unidos, algo específico, do que com a humanidade. Embora, de fato, os conflitos (por exemplo as batalhas geradas pela ambição) expostos no filme sejam universais.

“Se você der a um tradutor brasileiro a chance de fazer asneira, ele a fará”, afirma Castro. Dois casos são “Stuart Little” e “Chicken Little”. “Os tradutores não quiseram correr riscos e, aqui, esses filminhos se tornaram ‘O Pequeno Stuart Little’ e ‘O Galinho Chicken Little’.” O jornalista nem precisa ressaltar a redundância, porque óbvia, mas ironiza: “Anti­gamente, brincava-se de chamar os Marx Brothers de Irmãos Brothers — hoje, pelo visto, essa infame piada é feita a sério, e o sujeito é pago para fazê-la”.

Ruy Castro: “Se você der a um tradutor brasileiro a chance de fazer asneira, ele a fará” | Foto: Reprodução

Num tempo em que o sensacional é o que vale, dada a quantidade imensa de informações julga-se que é preciso “chocar”, as distribuidoras exigem títulos mais chamativos. Por isso há títulos que nada têm a ver com os filmes. “Ninguém jamais entendeu por que ‘Blow-Up’, de Antonioni, se tornou no Brasil ‘Depois Daquele Beijo’. Princi­palmente porque, no filme, não acontece nada de importante depois daquele beijo, e mesmo o dito beijo não tem a menor importância na história.” Em seguida, a verve acesíssima de Castro: “Dizem que o próprio Antonioni, ao saber do título de ‘Blow-Up’ em português, reviu o filme e não conseguiu achar sequer o beijo”.

“The Deer Hunter”, de Michael Cimino, ganhou o título de “O Franco-Atirador”. É bem diferente do original, mas Castro diz entender os motivos do tradutor e, sobretudo, da distribuidora. “Se tivesse traduzido ao pé da letra, seria ‘O Caçador de Veados’, o que poderia deixar os fãs de Robert De Niro com uma pulga atrás da orelha.”

Se perdoa o tradutor do título do filme de Cimino, Castro não faz concessão para outra versão, mas não sugere pena de morte nem prisão perpétua. “East of Sumatra”, com Jeff Chandler e Anthony Quinn, “transformou-se em ‘Ao Sul de Sumatra’”. O sorriso raivoso de Castro é justificável: “O tradutor deve ter ganhado sua bússola numa rifa”. “East”, como se sabe em Sumatra mas não no Brasil, é “leste”.

Mas os abacaxis às vezes estão na origem americana, nota Castro. “Abbot & Costello em Marte” (“Abbot & Costello go Mars”) é uma tradução literal, pois “Mars” é, de fato, Marte. Mas, nota o jornalista, “os dois comerciantes” vão a Vênus, não a Marte. O motivo da troca? Os americanos, como os brasileiros, têm mais apreço por Marte. E, nas brincadeiras, costuma-se dizer que se vai à Lua ou a Marte. Há outro problema, que, sendo do original, o tradutor brasileiro decidiu não corrigir. No filme “A Coragem de Lassie” (“Courage of Lassie”), com Eli­zabeth Taylor, “o astro canino não é” Lassie, “mas um cachorro chamado Bill”. Lassie? A cadela “nem aparecia na história”. Sim, o filme nem é sobre espiritismo.

Castro diz que não defende traduções literais, até porque algumas podem ficar sem sentido. “O tradutor que metamorfoseou ‘After Hours’, de Martin Scorsese, em ‘Depois de Horas’, deve ter matado a aula do Yázigi onde se ensinou que essa expressão significa apenas ‘Tarde da Noite’.”

Há outra tradução genial: “The Day After Tomorrow” — nada mais do que o prosaico “Depois de Amanhã” — ganhou um título mais pomposo, maior e redundante: “O Dia Depois de Amanhã”. Mas, se os tradutores querem ser literais, ressalva Castro, “temos de ser radicalmente literais. ‘Fahrenheit 451’, de François Truffaut, teria de se chamar no Brasil ‘171º Centígrados e Alguns Quebrados’. No caso de ‘A Man is Ten Feet Tall’, um bom filme de Martin Ritt, com John Cassavetes e Sydney Poitier, o tradutor quase acertou ao chamá-lo de ‘Um Homem Tem Três Metros de Altura’. Mas, se quisesse ser exato, o certo seria traduzi-lo por ‘Um Homem Tem 3,47 metros de Altura’, e ainda ficaria devendo alguns milímetros”.

Há o caso em que o tradutor e a distribuidora não viram o filme, insinua Castro. “The General”, de Buster Keaton, deveria ser ‘A General”, e não “O General”. “Porque qualquer criança brasileira de nariz escorrendo e pé no chão sabe que a General a que se refere o título é a locomotiva pilotada por Buster.”

“The Front”, com Wood Allen, ganhou o título de “Testa-de-Ferro Por Acaso”. Questiona Castro: “Testa-de-ferro, tudo bem, porque é exatamente isso o que ‘front’ significa. Mas por que ‘por acaso’? No filme, o personagem de Woody sabe muito bem o que está fazendo, ao emprestar seu nome para os roteiristas perseguidos pelo macarthismo”. Castro não diz, mas seriam os tradutores e distribuidores sobretudo grandes gozadores?

Woody Allen é vítima frequente dos tradutores patropis. Castro garante que há “quem defenda a tese de que seu filme ‘O Dorminhoco’ deveria se chamar ‘A Dorminhoca’. Embora Woody realmente comece o filme como um sujeito que acorda duzentos anos depois de ter sido acidentalmente posto para hibernar, todo o sonambulismo da história fica por conta da personagem de Diane Keaton”. Assim, em português, “A Dorminhoca” faz mais sentido.

O cérebro de quem transformou “Annie Hall” em “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” deve ser examinado com urgência pelo neurologista António Damásio, português consagrado nos Estados Unidos. “O dito cérebro deve conter neurônios desconhecidos da ciência. Nesse filme, Diane Keaton não é a pilha de nervos que o título insinua nem Woody está mais neurótico do que o habitual. E, o que é pior, os dois nem são noivos, mas namorados.” Na dúvida, a plateia prefere chamar o filme de “Annie Hall”, sugere Castro. Pela minha experiência, ouço falar: “Ah, sim, aquele filme de Woody Allen cujo título não tem nada a ver com o original e com a história”.

“My Fair Lady”, com Audrey Hepburn e Rex Harrison, recebeu o pomposo título de “Minha Bela Dama”. Resultou que o público prefere o título em inglês. “The Maltese Falcon”, de John Huston, com Humphrey Bogart, virou “Relíquia Macabra” — título, poderiam criticar os portugueses, que pode ser visto como “pai” de “O Filho Que Era a Mãe”. Porém, na imprensa e nas ruas, todo mundo diz, pelo menos de 1940 (quando foi feito o filme) até março de 2014, “O Falcão Maltês”.

“Aleksandr Nevskii”, do russo-letão Sergei Eisenstein, recebeu o título, quem sabe ligeiramente inspirado em Stálin, de “Os Cavaleiros de Ferro”. Resultado, segundo Castro: todos, ao menos os “iniciados”, o chamam de “Aleksandr Nevskii”.

Traduzir “Dr. Strangelove, or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb” deu um nó no cérebro elástico do tradutor brasileiro. Entre nós o filme de Stanley Kubrick se tornou “Dr. Fantástico, ou: Como Parei de me Preocupar com a Bomba e Passei a Gostar Dela”. Praticado o crime, o que fez o tradutor? “Cruzou os dedos”, diz, quem sabe rindo, Castro. “A plateia encarregou-se de tratar o filme de apenas ‘Dr. Fantástico’, na maior intimidade, e foi assim que ele ficou conhecido.”

Outro profissional traduziu “Oh, Dad, Poor Dad, Mama’s Hung You in the Closet and I’m Feeling so Sad” como “Coitadinho do Papai, Mamãe Pendurou Você no Armário e Eu Estou Muito Triste”. Antes da versão, o filme era de Richard Quine, poderia ter sugerido Castro, agora é, avacalhadamente, brasileiríssimo.

“Everything You Always Wanted to Know About Sex* (*But Were Afraid to Ask)”, com dois asteriscos, foi adaptado como “Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo”. O resto do título foi condenado “ao esquecimento, inclusive os asteriscos”. Castro diz que, “até hoje”, os cinéfilos preferem dizer apenas que se trata daquele “filme do Woody Allen sobre sexo”.

“O Preço da Solidão”, com Paul Newman, desconsidera integralmente o título original “The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds”.

E assim, diria George Stevens, caminha a humanidade. Paulo Francis pedia pena de morte exclusivamente para revisores, quem sabe, com alguma razão. Uma vez escrevi, num artigo, “Os filhos do manual”, mas, quando li o jornal no dia seguinte, estava, soberbo, tão impávido quanto o hino nacional do Brasil: “Os filhos do Manuel”. O revisor não era português, francês, americano, inglês, japonês, chinês ou alemão. Era ou é brasileiro. Castro felizmente não pede pena de morte para os tradutores de títulos de filmes. É um humanista.