Livro de Felipe Neto, best-seller antes de ser lançado, é um “manual” contra o discurso do ódio

14 julho 2024 às 00h00

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Sabe por qual motivo o Brasil deu certo, até muito certo? Porque o país deu ao mundo escritores como Machado de Assis, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Bernardo Élis, Lygia Fagundes Telles, Yêda Schmaltz, Gabriel Nascente e, entre tantos outros, Adélia Prado.

A terra patropi ofertou aos cidadãos globais intelectuais relevantes como Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Octávio Ianni, José Guilherme Merquior, Emília Viotti, Antônio Risério, Antonio Candido, Roberto Schwartz, Leyla Perrone-Moisés, Leda Tenório da Motta, Flora Sussekind, Alfredo Bosi, Davi Arrigucci Neto, Kathrin Holzermayr Lerrer Rosenfield (austríaca que se tornou, por adoção, brasileira — e é admirável), Luís Augusto Fischer.

Filósofos de alta qualidade se destacaram no país, e alguns deles se tornaram referências em outras plagas: José Arthur Giannotti, Bento Prado Júnior, Marilena Chaui (não se está falando da militante), Roberto Romano, Roberto Salinas, Newton da Costa, Rubens Rodrigues Torres, Ruy Fausto, Gonçalo Palácios Armijos, Ricardo Musse, Denis Lerrer Rosenfield, Olgária Matos e Scarlett Marton.
Os nomes citados formam, por assim dizer, uma Atenas nos trópicos, uma Biblioteca de Alexandria, uma civilização incontornável. Ressalvando que muita gente boa ficou de fora. Ou seja, há intelectuais de sobra no Bananão de Ivan Lessa.
Na década em que vivemos, desde o confronto acirrado entre esquerda e extrema-direita — que tomou o lugar da direita liberal —, surgiram dois livros de intelectuais respeitados: João Cezar de Castro Rocha e Idelber Avelar.
João Cezar é autor do livro “Bolsonarismo: Da Guerra Cultural ao Terrorismo Doméstico — Retórica do Ódio e Dissonância Cognitiva Coletiva” (Autêntica, 192 páginas). O autor era visto como crítico literário, mas, neste livro, o que ressalta é o filósofo (ou sociólogo) com uma poderosa, e não dogmática, interpretação da história (e da linguagem) recente do país. A obra é uma interpretação detida do bolsonarismo — que é visto, não como maluquice, e sim com um fenômeno articulado. O bolsonarismo pode ser pobre intelectualmente, até torpe, mas não é uma coisa aleatória. É, por assim dizer, um certo refinamento da barbárie — tanto que convenceu muita gente a seguir por seus sendeiros.
Há quem perceba o livro de João Cezar tão-somente como uma “arma” de combate. De fato, a obra é combatente. Mas é, igualmente, uma interpretação aguda do país e suas excrescências, de como surgem e se consolidam, ganhando seguidores radicalizados.
“Eles em Nós — Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século XXI” (Record, 322 páginas), de Idelber Avelar, é outra grande interpretação do Brasil recente, do período petista e bolsonarista. Há reflexões a respeito do lulismo e bolsonarismo — os contrários que se atraem e não permitem a ressurreição do centro (e não, óbvio, do Centrão), que às vezes possibilita um equilíbrio relativo.

Como Enfrentar o Ódio, de Felipe Neto
O que terá o youtuber Felipe Neto a dizer no livro “Como Enfrentar o Ódio”, que será lançado em setembro pela Editora Companhia das Letras, mas já pode ser encomendado nos sites das livrarias? Mesmo antes da publicação, já figura entre os mais vendidos e deve se tornar um dos maiores best-sellers de 2024.
Ao mencionar intelectuais que pensaram o Brasil de maneira profunda, como Sérgio Buarque de Holanda, e também João Cezar e Idelber Avelar, não estou dizendo que Felipe Neto não tem capacidade de discutir a questão do ódio na política e nas redes sociais do Brasil. Mas é claro que estou enfatizando que há obras importantes, reflexivas, tanto sobre o povo brasileiro, com sua diversidade, e a respeito das políticas correntes de ódio.

Vítima do discurso do ódio, atacado com virulência pelo bolsonarismo, Felipe Neto sempre soube se defender, às vezes com precisão milimétrica. Nas discussões de ódio, contendas entre esquerdas e direitas, argumentos não são importantes, e sim a coragem de agredir e vilipendiar os adversários com as maiores baixarias. Ao ser vergastado, longe de fugir da guerra, o youtuber se defendia atacando, que é o único caminho possível. Porque, quando não há argumentos em jogo, do tipo que possibilite o diálogo, a saída é o xingamento. O jovem, que entende bem como funciona a lógica das redes sociais, é mais refinado do que os bolsonaristas, mas sabe esgrimir palavras-arietes contra adversários que, a rigor, são inimigos.
Então, apesar de certamente não ter a profundidade dos livros de João Cezar e Idelber Avelar, a obra de Felipe Neto talvez seja instrutiva para muitos leitores que possivelmente ainda não tiveram acesso a argumentos mais sofisticados sobre a crise política e, até, de linguagem.
Felipe Neto provavelmente apresentará caminhos que facilitem não driblar o discurso do ódio — porque isto é impossível, exceto se a pessoa se excluir das redes sociais e do debate público, tornando-se uma ermitã —, e sim enfrentá-lo com argúcia e, mesmo, técnica. Portanto, se for assim, seu livro será útil. Mas não se deve considerá-lo, desde já, como um intérprete do Brasil…