Jorge, o mais Amado escritor brasileiro

O escritor mais traduzido do Brasil confessa que Bóris, o Vermelho, personagem do seu novo romance, está lhe escapando

Jorge Amado, um dos autores que mais venderam livros literários no Brasil | Foto: Reprodução

 Entrevista concedida ao Jornal Opção e publicada na edição de 14 a 20 de setembro de 1997

“É fácil ou é difícil conciliar teoria e vida, o que se aprende nos livros e a vida que se vive a cada instante?” É provável que, para o escritor Jorge Amado, essa pergunta não admita resposta — propõe ação. E, no seu caso, a ação é o ato de escrever, tarefa que desempenha há mais de 70 anos, desde que o padre Gonzaga Cabral, um orador sacro português, elogiou uma redação que compusera sobre o mar e predisse seu futuro de grande escritor. Ele tinha 11 anos, e estudava no Colégio Antônio Vieira, um rígido internato. No ano seguinte, cansado da disciplina sem tréguas, pediu ao pai para tirá-lo do colégio, mas o pai não lhe deu ouvidos. Resolveu fugir, atravessando, sozinho, léguas de sertão, até chegar em Sergipe, onde morava o avô. Era a resposta para uma pergunta que só formularia meio século depois, por intermédio de Pedro Arcanjo, um de seus personagens.

É por isso que Zélia Gattai costuma dizer que Pedro Arcanjo é o mais autobiográfico personagem de Jorge Amado. “Até aquela frase famosa de Jorge, ‘meu materialismo não me limita’, ele botou na boca do Pedro”, acrescenta Zélia, que além de estar casado com Jorge Amado há 52 anos, é também escritora e leitora privilegiada de suas obras. Tão privilegiada que sugere emendas nos personagens do marido e exerce direito de se espantar com as cenas mais picantes. “Ela sugere mudanças nos meus livros. Sou difícil de aceitar, mas às vezes…”. Jorge Amado nem conclui; Zélia corta: “Ele nunca aceita”. E com uma alegria travessa, que torna inacreditáveis seus 81 anos, Zélia Gattai se põe a falar do dia em que quis ser dentista de Tereza Batista, aquela, cansada de guerra.

Entrevista concedida por Jorge Amado ao Jornal Opção, há quase 22 anos | Foto: Jornal Opção

Mas essa é uma história que é mais bem contada pela própria Zélia na entrevista que se segue. Até porque na manhã de quinta-feira, 11, no Castro’s Hotel, quando Jorge Amado recebeu os jornalistas Euler de França Belém e José Maria e Silva, acompanhados do advogado e escritor Pedro Sérgio dos Santos, para uma entrevista, foi Zélia quem melhor revelou o homem Jorge Amado. O escritor, esse já é mais conhecido do mundo e, de tão traduzido, pode até lembrar-se das grandes navegações espaciais e repetir Camões — “e se mais mundos houvera, lá chegara”. Porque as traduções das obras de Jorge Amado se contam às dezenas, em línguas as mais distantes, como o hebraico, o chinês ou o finlandês.

Membro do Partido Comunista nos conturbados anos de Vargas, chegou a ser preso, no início de 1936, em decorrência da Intentona Comunista do ano anterior. A exemplo de Graciliano Ramos quando foi preso, por sinal na mesma leva, Jorge Amado também já tinha livro publicado — em 1931, lançara seu primeiro romance, “O País do Carnaval”. “Disseram que Getúlio Vargas lia minhas obras”, lembra Jorge Amado, sem muita convicção. “Mas estou muito convencido disso não. Getúlio disse que lia tudo. Eu acredito porque ele era um homem muito interessante, muito cheio de interesse pelo conhecimento. Dizem que ele lia e gostava. O que não o impedia de me meter na cadeia”, brinca. Jorge Amado não diz o mesmo de João Goulart, ideologicamente muito mais próximo dele: “O Goulart era simpático, mas era muito simples. O Juscelino, sim, esse era um homem sedutor”.

Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Opção, Jorge Amado e Zélia Gattai não se esquivaram de nenhum assunto. Da consulta de olhos que trouxe o escritor ao médico Marcos Ávila, ao personagem “Boris”, que Jorge Amado vem criando ao longo dos últimos anos até a eleição de Bernardo Élis para a Academias Brasileira de Letras, tudo foi tema da entrevista que durou quase duas horas. As lutas do velho PC também estiveram em pauta. E ante as legendárias figuras do comunismo brasileiro que o jornalista Euler de França Belém citava, durante a entrevista e ao sair do hotel, a brincalhona Zélia Gattai não resistiu. E relembrando os tempos em que ser comunista era correr o risco de ser preso, baixou a voz, fingindo uma conspiração: “Ah! Você é comuna?”

Jorge Amado: “Não vou para a máquina senão depois de ter tido na minha cabeça o tema que vou tratar” | Foto: Reprodução

Euler de França Belém — O que sr. está escrevendo no momento?

Jorge Amado — Nada. No momento exato, não estou fazendo nada. Estou com ideias, pensando, amadurecendo. Quando a gente vai para a máquina, é porque amadureceu uma ideia e, então, chegou o momento de ir para a máquina. No meu caso, ainda não chegou esse momento.

Euler de França Belém — Seu livro “Boris, o Vermelho”¹, ainda está parado também?

Jorge Amado — É exatamente esse que estou amadurecendo. “Boris, O Vermelho” é uma história um pouco complicada, cheia de detalhes. Não estou querendo ir para a máquina sem tê-lo completamente claro para mim.

José Maria e Silva — Esse é um método costumeiro em seu processo criativo ou uma exceção?

Jorge Amado — É um processo costumeiro. Não vou para a máquina senão depois de ter tido na minha cabeça o tema que vou tratar. Se vou tratar de um tema, então penso sobre ele, reflito antes de ir para a máquina.

Euler de França Belém — Inicialmente, sua obra foi amada pelas pessoas comuns, pelos leitores, sendo muito bem vendida no Brasil e no mundo. Mas, nas universidades, existia uma resistência muito grande a ela. Diziam que o sr. era um autor engajado, preso a uma fórmula. Hoje, a própria universidade está repensando esse julgamento de sua obra. Como avalia essa mudança da crítica?

Jorge Amado, com Zélia Gattai, é entrevistado pelos jornalistas José Maria e Silva e Euler de França Belém e pelo advogado Pedro Sérgio dos Santos | Foto: Jornal Opção

Jorge Amado — Acho que houve uma evolução. E isso é bom. Repensar é sempre necessário.

Euler de França Belém — Antonio Candido e Wilson Martins são dois grandes críticos. Eles entenderam bem a sua obra?

Jorge Amado — São críticos importantes, sem dúvida. E sou grato a eles por terem trabalhado sobre a minha obra.

José Maria e Silva — A sua obra surgiu em meio à efervescência da literatura nordestina, que produziu grandes romancistas, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

Jorge Amado — Aquele foi um momento importante para a literatura brasileira. Sem momentos como aquele, do romance de 30, não haveria uma continuidade, por consequência, não haveria obra. Eu acho que eles são fundamentais.

José Maria e Silva — Em sua obra, sobressaem os personagens, os tipos humanos. Como o sr. avalia a literatura experimental, que matou o personagem, especialmente a partir da década de 60?

Jorge Amado — É uma questão de reflexão. Primeiro se negou tudo, toda espécie de personagem. Houve uma tentativa de negação completa. Depois, com maior reflexão, se viu que não era bem assim.

José Maria e Silva — O sr. é o Jorge bem/mal Amado da literatura brasileira. Aliás, há uma obra² que trata do sr. com esse título. Mas, hoje, parece que é mais bem que mal amado, não?

Jorge Amado — Acho que continuo sendo bem/mal amado. Mas, realmente, sou mais em amado, porque o povo compreendeu a minha obra. Ela alcançou uma compreensão popular ampla.

Euler de França Belém — Para o sr., o que significa um escritor como Mario Vargas Llosa declarar que é apaixonado por sua obra?

Jorge Amado — Fico muito honrado com isso. Se o meu trabalho tem interessado um escritor tão importante como o Vargas Llosa, só posso ser grato. Fora eu vaidoso, diria que meu sentimento é de extrema vaidade.

Euler de França Belém — Há pouco se falou em personagens. Na sua obra, os personagens têm vida, como Gabriela, Quincas Berro D’água. Qual a sua sensação de ver esses personagens se transformando em carne e osso?

Jorge Amado — Acho que isso significa que eles existem, que não são inventados. Eles são uma criação, cada um dele é uma criação, baseada numa realidade que o autor conhece e aprofunda.

Euler de França Belém — O jornalista Fernando Moraes vai biografar o senador Antonio Carlos Magalhães. E ele disse que, vasculhando os arquivos, está descobrindo um personagem mais rico do que comumente se julga, que não é só um coronel da Bahia. Antonio Carlos Magalhães daria literatura?

Jorge Amado — Acho que sim. Acho que ele é a literatura dele mesmo. Ele tem uma presença na vida baiana que afeta a todos. Sua vida, inclusive, é literatura. Antonio Carlos Magalhães tem muitas qualidades e naturalmente é muito discutido, dá lugar a muito debate. Mas eu tenho a impressão que ele é muito válido na sua presença baiana.

Ao término da entrevista, Jorge Amado e Zélia Gattai com os jornalistas Euler de França Belém e José Maria e Silva e o advogado e escritor Pedro Sérgio dos Santos | Foto: Reprodução

José Maria e Silva — Para o resto do país, Antonio Carlos Magalhães tem a fama de caudilho. No entanto, ele é um político que se relaciona muito com a intelectualidade baiana. O que explica isso?

Jorge Amado — Não é tão simples, assim, definir alguém como caudilho. Não acho que ele seja caudilho. Ele é uma personalidade viva, que representa uma realidade e que ocupa um espaço na vida baiana.

Pedro Sérgio dos Santos — Convivendo com alguns juristas de Recife, eles me despertaram para o fato de que, antes que os criminalistas entendessem cientificamente alguns criminosos, os homens da literatura já tinham feito isso com muito mais competência. E citam escritores como Dostoiévski ou Shakespeare. Hoje, começo a lecionar direito penal com uma introdução retirada da literatura, começando por alguns escritores estrangeiros até chegar em sua obra. Como o sr. vê a utilização da sua obra em outras áreas? A literatura também aplicada em outras áreas?

Jorge Amado — Eu me sinto contente, quando vejo que o meu trabalho é aproveitado em outras áreas, além da literatura. Mas isso não é fundamental para mim.

José Maria e Silva —A função da literatura é eminentemente estética?

Jorge Amado — Acho que é eminentemente estética. Porém, não só estética. A literatura tem que ter uma amplitude maior.

Zélia Gattai — A literatura deve ensinar divertindo, inculcando no leitor o prazer de ler. Percebo que as pessoas seguem muitos exemplos do que Jorge diz. Ele fica assim, quase como uma bússola.

Euler de França Belém — A gente nota que há muita harmonia entre vocês. Mas a literatura da sra. é diferente da dele. E até mais leve, mais flutuante. Por quê?

Zélia Gattai — Porque ele é Jorge Amado, e sou Zélia Gattai [fala, com um sorriso maroto]. Cada um é como é. Ele é o grande escritor — desculpe eu dizer, sendo a mulher dele —, mas eu sou leitora dele há mais de 50 anos. Sou casada com ele há 52 anos. Só que, muito antes de nos casarmos, eu já admirava a literatura de Jorge Amado. Não somente a literatura dele, como o homem corajoso que ele é. O homem que não tinha medo de ir para a cadeia, dizendo o que ele dizia, naquela época. Não tinha medo de ver os seus livros queimados pelo fogo, em praça pública, com ata do Exército. Mas, voltando à questão das nossas diferenças literárias, quero lembrar que comecei falando do Jorge como leitora, não como mulher dele. Acho que Jorge Amado é um mestre da literatura. Ele sabe o que escreve, cada palavra para ele tem seu valor. E eu, Zélia Gattai, sou uma aprendiz de escritora. Essa é a diferença.

Euler de França Belém — Quais são os escritores preferidos, seus modelos literários, além do próprio Jorge Amado, que a sra. já citou?

Zélia Gattai — Antes de começar a ler Jorge Amado, li muito Erico Verissimo. Depois Jorge Amado. Aí, despertei para os romancistas do Nordeste. Sou de São Paulo, então, para mim, tudo era novo, era poesia, era força. Então comecei a ler Jorge Amado, Graciliano Ramos, Lins do Rego, José Américo de Almeida e muitos outros escritores.

Euler de França Belém — E o sr., Jorge Amado, quais são os autores que ainda o apaixonam?

Jorge Amado — Gosto muito do Zé Américo [José Américo de Almeida]. Eu acho o seguinte: “A Bagaceira” é um grande livro. Acho que sem “A Bagaceira” não seria possível toda ebulição da literatura nordestina. De “A Bagaceira” nasce toda uma ramificação. Tenho uma grande admiração por este livro. E creio que ele é um livro inicial. É fundamental falar dele.

Euler de França Belém — Como é o método de trabalho do sr.? É muito rigoroso? Refaz muito? Parece que muda muito, reformula.

Jorge Amado — Acho que sim, mas não escrevendo — pensando. “Boris, o Vermelho” é um exemplo. Aliás, esse livro é engraçado, seu título é excelente. Então esse título pegou, começaram a falar dele e, de repente, eu me vi diante de uma obrigação. E a gente não deve ter obrigação de escrever. Isso me dificultou a escrita do Boris. E tem me dificultado até hoje.

Euler de França Belém — O Boris está quase escapando do sr.?

Jorge Amado — Já escapou [risos].

José Maria e Silva — O sr. deve ser muito fluente na hora de escrever, creio que mozartiano até. Porque disse que muda muito na cabeça, mas no papel não.

Jorge Amado — Sim, sim. Quando eu começo a escrever é porque as coisas já estão suficientemente claras para mim. O que facilita que a escrita saia, vamos dizer, saia fluente. Mas eu vou e venho, de qualquer maneira, algumas vezes.

José Maria e Silva — O sr. escreve a mão, a máquina?

Jorge Amado — A máquina.

José Maria e Silva — O sr. não quis aderir ao computador?

Jorge Amado — De computador não entendo, não sei. Ele é uma coisa muito recente, e eu sou velho. Parei na máquina de escrever, e daí em diante não passei. Agora a Zélia, por exemplo, usa computador. Guardo uma distância conveniente desse aparelho.

Pedro Sérgio dos Santos — Sua literatura foi sempre um enfrentamento com o Estado. Suas obras foram queimadas em praça pública, como lembrou Zélia. Como o sr. coloca sua literatura, hoje, diante desse governo neoliberal do presidente Fernando Henrique? A sua literatura ainda incomoda?

Jorge Amado — Creio que incomoda, sim, porque não houve uma mudança de fundo, uma mudança real. Mudou-se de estilo, a maneira de ver, apenas. Por isso, creio que continua existindo o interesse por uma literatura contestadora.

José Maria e Silva — Machado de Assis tinha muito pudor de mostrar seus originais antes da publicação. O único livro que permitiu que os amigos lessem, antes da publicado, foi “Memorial de Aires”, por se sentir próximo da morte. E o senhor, costuma dar seus originais para amigos lerem?

Jorge Amado — Não. Eu não me sujeito a uma crítica anterior. Deixo que a crítica se processe a posteriori da publicação. Zélia lê antes.

Zélia Gattai — Sou eu quem passo a limpo os originais dele.

José Maria e Silva — E é intelectualmente pacífica, essa convivência de dois escritores dentro de casa? Não há muitas discussões?

Jorge Amado — Às vezes, ela sugere coisas. Acontece que eu aceito, às vezes, mas dificilmente.

Zélia Gattai — Só aceitou uma única vez. Mas declarou que se arrependeu amargamente de ter aceito. Foi quando ele estava escrevendo “Tereza Batista Cansada de Guerra”. No começo da história, ela, em uma briga, leva um soco na boca e cai um dente da frente. O que o Jorge faz? Ele a leva no dentista e manda sapecar um dentão de ouro na frente. Quando eu, passando a limpo o texto, percebo aquilo e digo para o Jorge: “Jorge, que horror!”. Ele disse: “Horror o quê?” Eu disse: “É que você botou um dente de ouro na frente de Tereza Batista”. Ele falou: “É que ela gosta de dente de ouro”. Eu retruquei: “Gosta o quê! Qual é a moça que gosta de ter um dente de ouro assim? É horrível!”. Ele insistiu: “Mas ela gosta. Ela quer ter um dente de ouro”. Aí eu sugeri: “Então, se ela quer um dente de ouro, você me faça um favor, eu lhe peço por tudo. Remova esse dente mais para o lado, para que não se veja tanto, que não fique uma coisa tão acintosa”. Foi a única vez que ele me ouviu. Fiquei toda contente. Mas olha só: outro dia, contanto essa história, ele disse que se arrependia amargamente.

Jorge Amado — Na realidade, o dente de ouro de Tereza Batista era de frente mesmo. A gente olhava, e ela ficava contente.

Euler de França Belém — Como é construir um personagem feminino com muitos detalhes. É muito difícil?

Jorge Amado — Mais ou menos. É preciso sentir como uma mulher. Mas não é muito difícil não.

Euler Belém — O senhor costuma ler livros de sexologia, como o Relatório Hite?

Jorge Amado — Não. Geralmente, parto da minha percepção, da minha sensibilidade. Acho fácil entender o que mulher pensa.

José Maria e Silva — Nas suas obras, o sexo é uma presença muito forte, tanto que seus livros eram proibidos, como pornográficos, até um certo tempo. Hoje eles poderiam ser lidos até em igrejas, levando em conta a liberalização dos costumes que ocorreu nos últimos anos. Como o senhor avalia essa liberação sexual?

Jorge Amado — Antes estávamos capados. Havia uma castração em relação ao sexo, que era considerado horrível. Mas o sexo é uma realidade. Como se vai viver sem ele? É uma coisa vital na vida, na existência de cada um de nós. Como é que se vai viver sem sexo?

Zélia Gattai — Hoje em dia, comparando com o que há por aí, inclusive na televisão, nos horários de crianças até, a literatura de Jorge virou quase que água de rosa. Quando Jorge estava escrevendo “Tieta do Agreste”, e eu ficava passando a limpo os originais, deparei com um diálogo forte. Eu parei de passar a limpo. Estávamos sentados um em frente ao outro. Aí ele disse: “Você parou por quê?” Eu falei: “Porque fiquei um pouco chocada com essas palavras. Acho que você exagerou”. Ele disse: “Não, eu não exagerei. Isso é diálogo, não sou eu quem está dizendo, quem está dizendo é a personagem”. Insisti: “Mesmo assim, acho que poderia ser um pouquinho mais suave”. Ele disse: “Não, é assim mesmo, pode continuar”. Continuei. Umas três páginas adiante encontrei um parêntesis dele, autor, dizendo: “Tenho um amigo, que é a única pessoa que lê meus originais, e é muito severo, vive dando conselhos, me recriminando. Esse amigo ficou horrorizado com o que escrevi atrás. Achou que eu exagerei, mas não exagerei não. É assim mesmo que tem que ser, é coisa da vida, as pessoas falam assim mesmo, e eu não posso mudar”. Quer dizer, ele já sabia que ia reclamar, então botou essa observação depois. Caí na gargalhada. Então, ele perguntou: “Do que é que você está rindo?” E eu disse a ele: “Estou rindo porque você não presta”.

Euler de França Belém — Muitas de suas obras foram adaptadas para a televisão e para o cinema. Como é sua relação com os adaptadores? O sr. reclama muito?

Jorge Amado — Toda adaptação, seja qual ela for, por melhor que seja, é sempre uma traição ao autor. Quem adapta está criando também. É uma recriação da obra. Então, nunca reclamo. É uma coisa muito pessoal minha. Podem adaptar à vontade, fazerem o que quiser. Não quero nem saber. Não quero ver nem ler. Porque se não vejo nem leio, não fico marcado pela indigência da modificação ou daquilo que for necessário mudar. Eu acho que o adaptador tem o direito de criar, ele é um novo criador. Se ele não fizer uma nova criação a adaptação não presta.

Euler de França Belém — O sr. gosta de alguma adaptação de sua obra, em especial, ou de alguma atriz que tenha correspondido bem ao seu personagem?

Jorge Amado — Olho todos da mesma maneira. Não tenho preferência por nenhuma. Uma coisa é a criação inicial; outra é tudo que vem ao redor dela. Porque ela permite que exista aquela possibilidade de existir.

Pedro Sérgio dos Santos — A literatura brasileira se caracteriza pela variedade. A globalização, que tende a impor uma cultura internacionalizada, não tende a acabar a sacrificar a variedade dos valores nacionais, achatando os trabalhos dos nossos autores?

Bernardo Élis, autor de “Ermos e Gerais”, “O Tronco’ e “Veranico de Janeiro”, foi membro da Academia Brasileira de Letras| Foto: Reprodução

Jorge Amado — Creio que não. Não se pode comparar, por exemplo, o Erico Verissimo e o Bernardo Élis. Eles são vários, são múltiplos, são diferentes. O Erico é o Sul, com toda a retórica que o Sul significa, enquanto o Bernardo é Goiás, despido de toda retórica. São totalmente diferentes. Agora, são homens brasileiros, autênticos, e é dessa soma de diferentes que se forma o valor brasileiro, que dá uma conceituação do brasileiro. Não há globalização possa dizer: isso é o Brasil. Por isso, não creio que possa existir um fenômeno de massificação da literatura brasileira, que uniformize nossos escritores.

Euler de França Belém — Em seu livro “Navegação de Cabotagem”, o sr. fala do Bernardo Élis, da eleição dele para a Academia Brasileira de Letras. Houve, de fato, pressão dos militares para que Juscelino Kubitschek não fosse eleito? Austregésilo de Athayde comentou isso com o sr.?

Jorge Amado — Acho que houve essa pressão, sim. Mas o Austregésilo não comentaria nada com ninguém sobre um assunto desses. Ele morria de medo dos militares. Era um homem que gostava de conciliação. Mas acho que houve uma pressão muito grande, uma tentativa real de afastar o Juscelino. Na época, o objetivo dos militares era liquidar Juscelino, destruí-lo. O Juscelino incomodava muito o regime.

Carmo Bernardes, autor o romance “Jurubatuba”

Euler de França Belém — O sr. de alguma tentativa de Golbery do Couto e Silva para influir na derrota de Juscelino?

Jorge Amado — Não posso lhe afirmar nada. Sei que o Golbery teve um papel importante na distensão do regime. Trouxe alguma coisa que veio melhorar aquela situação.

Euler de França Belém — Independentemente do apoio militar, é preciso reconhecer que Bernardo Élis merecia uma vaga na Academia muito mais que Juscelino Kubitschek. Bernardo tem uma obra. Juscelino não deixou nenhuma. Ele via a Academia apenas como uma projeção política. Por que o sr. votou em Juscelino e não em Bernardo?

Jorge Amado — O meu voto foi político. Se eu fosse dar um voto literário, evidentemente daria meu voto para o Bernardo, que tem uma grande obra, sem dúvida. O problema é que eu apostava num voto político para ver se mexia um pouco com o regime, se forçava a abertura. O Juscelino significava uma força que o Bernardo não significava. Bernardo era apenas a grande literatura dele. Juscelino era a pouca literatura, porém tinha um poder político muito maior.

Euler de França Belém — O sr. gosta da obra de Bernardo Élis?

Jorge Amado — Gosto. A obra dele é muito bem-feita, repleta da realidade local, com grande força. A obra dele tem profundidade.

Euler de França Belém — O sr. conhece a obra de Carmo Bernardes?

Jorge Amado — Conheço. Carmo é uma espécie de Guimarães Rosa. Acho que é correto dizer assim. Ele não é Guimarães Rosa. São duas personalidades muito distintas, e às vezes até opostas, caso se repare bem. Mas o fenômeno é o mesmo. O que produziu Guimarães Rosa e o que produziu Carmo Bernardes.

Hugo de Carvalho Ramos e seu livro “Tropas e Boiadas”

José Maria e Silva — Como o sr. avalia a contribuição de Hugo de Carvalho Ramos para o regionalismo?

Jorge Amado — Hugo é importante. Houve um momento em que não havia ninguém fazendo o tipo de literatura que ele fazia. Isso confere importância ao seu trabalho.

Pedro Sérgio dos Santos — O escritor Ariano Suassuna, secretário de cultura em Pernambuco, tem tomado algumas decisões importantes. Ele, por exemplo, não financia roqueiros e se posiciona contra os enlatados norte-americanos. O que o sr. acha da posição de Ariano Suassuna?

Jorge Amado — O Ariano tem toda razão. É necessário impedir que a cultura brasileira desapareça assim. Aliás, eu acho que o Ariano é um dos mais inteligentes desse país. Ele é um homem que sabe as coisas. Ariano não é de muito falar nem é de muito aparecer. Mas, quando ele faz e aparece, é para dizer coisas importantes.

Euler de França Belém — Se um estrangeiro chegar ao Brasil, hoje, e pegar os quatro cadernos culturais dos principais jornais do país, jamais vai imaginar que está no Brasil. Nesses cadernos quase não se fala de literatura brasileira, só estrangeira. Por outro lado, os rodapés acabaram na imprensa. Como o sr. avalia esse depauperamento da cultura brasileira?

Jorge Amado — A literatura brasileira existe, continua forte. Nem tudo é estrangeiro. Então, se ela não aparece nos jornais como a estrangeira, fica a impressão de que ninguém está dando a menor importância ao que é feito aqui. No entanto, acho que a tendência é a verdadeira realidade se firmar.

Euler de França Belém — Penso que a cultura está sendo tratada como se fosse carro importado. O autor estrangeiro é tratado como se valesse mais que os autores brasileiros?

Paloma Amado [filha de Jorge Amado e Zélia Gattai] — Vamos discutir cultura ou literatura? Porque o cinema tem recebido um imenso apoio da imprensa.

José Maria e Silva — O sr. é traduzido em praticamente todas as principais línguas do mundo. A tradução o preocupa?

Jorge Amado — Não, depois que meu livro é publicado procuro deixá-lo livre para seguir seu próprio caminho. [Risos]

Zélia Gattai — Mesmo porque, como ele é traduzido até em chinês, coreano, islandês, como é que ele poderia avaliar as traduções da sua obra?

José Maria e Silva — Paulo Coelho é o novo Jorge Amado brasileiro em termos de número de traduções. Recentemente, ele o elogiou, alegando que o sr. nunca teve preconceito em relação à obra dele?

Jorge Amado — Não tenho preconceito em relação à obra de ninguém. Acho que o Paulo Coelho é vítima do sucesso que faz. Uma pessoa pode estar ou não de acordo com a literatura de Paulo Coelho. Mas se Paulo Coelho não tivesse o sucesso que tem, ninguém iria atacar sua literatura. Paulo Coelho é um homem que trouxe milhões de leitores para a nossa língua. Isso é muito importante. As pessoas que, hoje, leem Paulo Coelho, amanhã lerão outros autores.

Paloma Amado — Em Paris, vi três ou quatro pessoas, franceses, lendo um livro de Paulo Coelho, traduzido para o francês. Lendo no mesmo dia, no mesmo momento, no mesmo local. Isso é muito importante, é preciso respeitar esse homem.

Pedro Sérgio dos Santos com os escritores Jorge Amado e Zélia Gattai, no saguão do Castro’s Hotel, em Goiânia | Foto: Jornal Opção

Euler de França Belém — O sr. acha que nós temos a cultura da fracassomania?

Jorge Amado — Um pouco, sim. No caso da literatura, por exemplo, acho que temos pouca confiança em nossa literatura, menos do que deveríamos ter. Porque nós olhamos sempre com uma certa desconfiança aquilo que se faz aqui. O que vem de fora é sempre mais respeitado.

José Maria e Silva — Sobre isso que o sr. diz, eu me lembro do que disse Woody Allen sobre Machado de Assis, numa entrevista à “Folha de S. Paulo”. Ele disse que ficou surpreso de ver que Machado antecipava em 100 anos conquistas da literatura. Outro dia, no “Le Monde”, Salman Rushdie, que costuma se dizer um discípulo de Machado, declarava: “Antes de García Márquez, Borges; antes de Borges, o princípio de tudo, Machado de Assis”. Entretanto, eu nunca ouvi, na escola brasileira, um professor um livro que fizesse um elogio desse a Machado de Assis. Vende-se a ideia de que o brasileiro só é bom em futebol e carnaval.

Jorge Amado — De fato, fala-se em Machado no Brasil como se ele fosse um escritor secundário no mundo. O futebol e o carnaval são importantes, mas não são tudo.

Charles Dickens, escritor inglês

Euler de França Belém — Muitos escritores afirmam que, depois de uma certa idade, entram na fase das releituras. O sr. tem relido muito?

Jorge Amado — Alguns autores, sim. Já a minha obra não costumo reler.

José Maria e Silva — Entre suas releituras, o sr. tem relido Dickens? Ele parece ser uma grande influência em sua obra?

Jorge Amado — Dickens releio sempre. Ele exerceu uma influência muito grande em minha obra. Influenciou muito toda minha literatura.

Euler de França Belém — O sr. militou no Partido Comunista. Como o sr. vê o stalinismo hoje? Ele é um fenômeno datado?

Jorge Amado — Stálin foi muito importante, teve uma influência predominante e dominante. E ninguém se atrevia a ser contra Stálin. Agora, se foi bom? Não, não foi. Não foi, porque impediu muita coisa. O stalinismo é ruim como toda e qualquer outra forma de autoritarismo

Euler de França Belém — Diógenes Arruda é chamado de o Stálin brasileiro. Uma vez, conta-se que ele deu uma grande gravata no Drummond para que Drummond mudasse um poema. O sr. foi censurado alguma vez pelo Partido Comunista?

Jorge Amado — Muitas vezes. Praticamente todas as minhas obras, mas nenhuma profundamente. Eu sempre fui muito rebelde e não aceitava censuras.

Euler de França Belém — O senhor escreveria, hoje, “O Cavaleiro Esperança”, que conta a trajetória de Luiz Carlos Prestes? O sr. o escreveria com o mesmo enfoque? 

Jorge Amado — Talvez com outro, mas escreveria. Só tenho razões para me orgulhar desse livro, inclusive as condições que ele foi escrito, e publicado, e divulgado.

Euler de França Belém — O jornalista e empresário Assis Chateaubriand foi ressuscitado pela biografia do Fernando Morais (“Chatô — O Rei do Brasil”). O Brasil não está devendo uma grande biografia de Getúlio Vargas?³

 Jorge Amado — Concordo. Não existe nada sobre Vargas, a não ser os estudos da época, pouco importantes, que dão uma falsa ideia da importância e da presença dele.

Euler de França Belém — O século 20, no Brasil, é o século de Vargas?

Jorge Amado — É difícil responder. Eu não sei.

José Maria e Silva — Fernando Henrique é um excelente homem político. Há muito tempo que nós não temos (e, talvez, nós não tivéssemos tido ainda) um presidente com as qualidades que ele tem.

Euler de França Belém — O senhor é ateu?

Jorge Amado — Não tenho nenhum segmento religioso. Não creio nessa ou naquela religião. Agora, tenho um imenso respeito por toda e qualquer pessoa, ou todo e qualquer sentimento religioso.

Euler de França Belém — Zélia, o que a sra. está escrevendo?

Zélia Gattai — Comecei, agora, a escrever um outro livro de memórias. Escrevi primeiro os cinco de livros de memória. Depois escrevi um romance. Imagina que atrevimento meu escrever um romance na minha idade — aos 80 anos. Eu escrevi “Anarquistas, Graças a Deus” quando tinha 63 anos. Depois de 30 anos de manusear os livros dele, de estar ao seu lado quando ele escreve. Foi um atrevimento muito grande da minha parte. Agora, neste livro que estou escrevendo, vou descrever a nossa mudança do Rio para a Bahia.

Euler de França Belém — A que horas vocês escrevem?

Zélia Gattai — Escrevo nos intervalos. Quando tenho um tempinho, corro para o meu computador, que é uma mão na roda. Mas Jorge quando começa a escrever, aí ele faz uma disciplina de trabalho.

José Maria e Silva — Ele costuma se isolar dentro de casas alugadas com esse objetivo?

Zélia Gattai — Aí é que está. Jorge tem escritório, tem um estúdio no fundo do jardim. Mas ele quer trabalhar na sala de jantar, na ponta da mesa de jantar, onde ele ouve a campainha, ouve o telefone, e fica querendo saber tudo.

Pedro Sérgio dos Santos — Jorge Amado é muito assediado também fora do Brasil?

Zélia Gattai — Muito, principalmente em países como Portugal, Espanha, Itália. Às vezes, as pessoas choram quando o veem. Certa vez, estávamos na Finlândia, num lançamento de um livro dele. No dia seguinte, resolvemos sair pelas ruas da cidade. Vinha uma moça em nossa direção, com uma porção de pacotes. Ela chegou, olhou, soltou os pacotes no chão. Agarrou Jorge e começou a chorar. Uma finlandesa que falava inglês e francês. Ela disse: “O sr. é o meu escritor preferido, eu o vi na televisão”. Outra vez, no Ceilão, estávamos num hotel muito grande, um hotel inglês, onde só tinha uma pessoa no restaurante jantando. Depois do jantar, saímos para passear um pouco, andar. Estava lá o rapaz sentado num banco. Resolvemos puxar conversa com o rapaz. Quando soube que éramos brasileiros, o rapaz perguntou se não conhecíamos um escritor chamado Jorge Amado. Ficamos sem fala. Era um jornalista islandês que estava fazendo uma reportagem, e estava lendo “Mar Morto”. Depois no hotel ele foi buscar “Mar Morto”, em islandês, que Jorge autografou. Mas, a coincidência, em toda parte ele encontra gente. Em Roma, tomamos um táxi e o taxista nos reconheceu. Tinha lido toda obra de Jorge, faltava só “Navegação de Cabotagem”, que ele lhe deu de presente.

Euler de França Belém — Antes de “Boris, O Vermelho”, qual o livro que lhe deu mais trabalho?

Jorge Amado — Acho que foi o último, porque o último é sempre o pior.

Zélia Gattai — Quando ele termina de escrever um livro, está com os dedos em sangue, enrolado em esparadrapo, porque fere. Ele bate só com esses dois dedos e com muita força.

Euler de França Belém — Como vai se chamar o novo livro da sra.?

Zélia Gattai — Meu livro vai se chamar “Casa do Rio Vermelho”. Vou falar da nossa casa, dos sapos. O Jorge é louco por sapos. Sapos de cerâmica, de ferro…

Jorge Amado — E de verdade também. Sapos!

José Maria e Silva — Sapos!?

Zélia Gattai — É verdade. Jorge gosta tanto de sapo que, no momento de comprar um automóvel, ele escolheu um com cara de sapo. Era um Citröen, que tinha assim dois faróis grandes, achatado, parecia um sapo. Ele viu e disse que queria logo aquele com cara de sapo.

Euler de França Belém — O sr. não tem nojo, medo de sapo?

Jorge Amado — Não. Sempre foi o bicho da minha predileção.

Notas

¹ Jorge Amado não concluiu “Boris, o Vermelho”.

² “Jorge Bem/Mal Amado”, de Jean Roche.

³ A grande biografia saiu mais tarde, escrita pelo jornalista e pesquisador Lira Neto, publicada, em três volumes, pela Companhia das Letras.

4 Jorge Amado morreu em 2001, aos 88 anos. Zélia Gattai faleceu em 2008, aos 91 anos.