Ismail Kadaré revolve, em Um Ditador na Linha, a relação entre Mandelstam, Stálin e Pasternak

07 julho 2024 às 00h12

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“Se começássemos a procurar semelhanças entre os povos, a encontraríamos sobretudo do lado dos erros.” — Ismail Kadaré
Poema de Óssip Mandelstam sobre Stálin
[Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra]
Vivemos sem sentir o país sob os pés,
Nem a dez passos ouvimos o que se diz,
E quando chegamos enfim à meia fala
O montanheiro do Krémlin lá vem à baila.
Dedos gordurosos como vérmina gorda,
As palavras certas como pesos de arroba.
Riem-se-lhe os bigodes de barata,
Reluzem-lhe os canos da bota alta.
À volta a escumalha — guias de fino pescoço —
Nas vénias da semigente ele brinca com gozo.
Um assobia, o outro geme, aquele mia,
Só ele trata por tu, escolhe companhia.
Como ferraduras, lei ‘trás de lei ele oferta,
Em cheio na virilha, olho e sobrolho e testa.
Cada morte que faz — crime malino
E o peitaço tem amplo, o ossetino.
O poeta russo Óssip Mandelstam (1891-1938) disse que, na Rússia, se respeitava mais a poesia do que em qualquer outro país. Porque, na terra de Púchkin, “as pessoas são mortas por causa dela”.
De fato, sob Ióssif Stálin, o ditador de bigodes de barata, o comunismo trancafiou e matou poetas e prosadores (Isaac Bábel, por exemplo). Outros, não suportando a pressão do regime totalitário, se mataram — casos de Serguei Iessiênin, Vladímir Maiakóvski e Marina Tsvetáieva.
Poeta livre — os melhores bardos não se submetem à tirania dos poderosos —, Mandelstam decidiu, no poema publicado acima (e abaixo), dessacralizar o político Stálin, um bolchevique da velha guarda, o que assustou seu amigo e admirador Boris Pasternak, um grande poeta que, infelizmente, é conhecido no Brasil muito mais pelo romance “Doutor Jivago”, que não é ruim, mas aquém de sua formidável poética.

No romance “De Mandelstam a Stálin — Um Epigrama Trágico” (Record, 377 páginas, tradução de Mauro Gama), Robert Littell ficciona, por certo, parte dos acontecimentos, sem, porém, falsificar a verdade.
Ao ouvir de Mandelstam uma radiografia poética do monstro da Geórgia, Pasternak teria dito: “Você está cometendo suicídio”.
Pasternak teria acrescentado: “Quando você disse que ia deixar o grito emergir de sua garganta, não imaginei que faria disso uma coisa tão insana”.
Altivo, talvez sonhando que estava em Pasagarda e não na Rússia de Stálin, Mandelstam respondeu: “O que a Rússia precisa é de mais insanidade e de menos bom senso”.

Sem se dar por vencido, Pasternak teria afirmado: “Como você pôde escrever um poema desses? Você, um judeu!”. Assim como Adolf Hitler, do qual foi parça entre 1938 e 1941, Stálin não apreciava judeus.
O chefão do NKVD (precursor do KGB), Guenrick Iagoda, decorou o poeta de Mandelstam e o recitou para Stálin.
Perplexo, talvez estupidificado, Stálin deu uma ordem para Iagoda: “Preserva, mas isola”. A história está num dos melhores livros sobre o ditador: “Stálin — A Corte do Czar Vermelho” (Companhia das Letras, 860 páginas, tradução de Pedro Maia Soares), do historiador britânico Simon Sebag Montefiore.
Preso, Mandelstam foi “sentenciado a três anos de exílio”. No início, acompanhado de sua mulher, a magnífica Nadiejda; mais tarde, sozinho.
Stálin ligou e mentiu para Pasternak: “É Stálin. Quero falar com você a respeito de Mandelstam. Quero que saiba que não autorizei sua prisão”.

Como Pasternak não estava ouvindo muito bem, Stálin repetiu sua fala e acrescentou palavras: “Eu não autorizei a prisão de Mandelstam. Quando fui informado disso, achei uma vergonha. Estou ligando para fazer com que você saiba que o caso de Mandelstam está sendo revisto no mais alto escalão”.
Como tinha respeito pelos poetas, até porque escreveu poesias — de segunda linha, é certo —, Stálin admoestou Pasternak: “Se eu fosse poeta e visse meu amigo poeta em dificuldade, faria tudo para ajudá-lo”. O poeta, titubeando, ouviu do ditador: “Mas ele é um gênio, não é?”.
Inábil, ou talvez acreditando que poderia ter uma conversa sadia com o perverso Stálin, Pasternak redarguiu: “Não é esse o problema”.
Pasternak disse que queria falar pessoalmente com Stálin. O ditador inquiriu: “A respeito do quê você quer falar?” Sonso, o poeta disse: “A respeito da vida, a respeito da morte”.
Stálin, que entendia tudo de morte, desligou o telefone e não atendeu mais Pasternak, que, de acordo com Simon Montefiore, “era fascinado” pelo bolchevique. (Mais tarde, quando sugeriram a prisão de Pasternak, Stálin contrapôs: “Deixem aquele habitante das nuvens em paz”.)

Desesperados, Nadiejda Mandelstam e Pasternak recorreram ao ainda influente Bukhárin (mais tarde foi executado a mando de Stálin).
Bolchevique da velha guarda, respeitado por Lênin, Bukhárin escreveu uma carta para Stálin: Mandelstam era, na sua opinião, “um poeta de primeira linha, mas não muito normal”. Num pós-escrito, acrescentou: “Boris Pasternak está completamente estupefato com a prisão de Mandelstam e ninguém mais sabe nada”. A poeta Anna Akhmátova conversou ao menos com uma pessoa com ligações com Stálin, para tentar salvar o amigo.
Bukhárin mostrou-se ousado ao dizer a Stálin que os “poetas estão sempre certos, a História está do lado deles”. O veterano bolchevique estava certo, pois Mandelstam está, por assim dizer, mais vivo do que Stálin, que, aos poucos, vai ficando menor, como um Gengis Khan mais poderoso e, quem sabe, cruel.
Isolado, quer dizer, preso, Mandelstam morreu, aos 47 anos, num “campo de trânsito”, em dezembro de 1938. Estava doente e faminto. Talvez tenha desistido de viver? É provável. Ele seria enviado para Kolimá.
A questão ética de Boris Pasternak
Com palavras bem colocadas, Pasternak poderia ter salvado o amigo Mandelstam? Há quem postule que deveria ter sido mais incisivo com Stálin, dizendo, de cara, que Mandelstam era uma sumidade, como poeta, e por isso deveria ser mantido vivo e livre.
Estou entre os que sugerem que Pasternak errou ao não se posicionar com firmeza, ante o ditador que se dignou a ouvir sua opinião — ele que não apreciava escutar as pessoas, nem as mais próximas.
Mas equivoca-se aquele que acredita que, ouvindo Pasternak, Stálin “perdoaria” a poderosa diatribe de Mandelstam. Nem mesmo políticos bolcheviques, dos mais categorizados, como Bukhárin, discordavam do ditador — estando em território da União Soviética.

A afronta de Mandelstam, do ponto de vista de Stálin, que nunca era desafiado, sobretudo com a virulência da inteligência certeira, era “imperdoável”. Ao consultar Pasternak, o mais provável é que Stálin apenas queria saber se havia mandado prender um grande criador artístico.
Ao enviar Mandelstam para o exílio — na verdade, uma prisão ligeiramente disfarçada —, Stálin estava dizendo, inclusive a Pasternak e aos seus pares, que podia prender qualquer um. Ele chegou a mandar prender a mulher de Mólotov, Polina Mólotova. Por que era judia? Sim, mas sobretudo para testar a lealdade do aliado, que não contestou a detenção.
Portanto, Pasternak não tem culpa alguma tanto pela prisão quanto pela morte de Mandelstam. Admirado como poeta mas não respeitado como homem por Stálin, o autor de “Doutor Jivago” não podia fazer nada pelo amigo. Mesmo assim, operou para tentar salvá-lo, sem conseguir.
A história de Mandelstam, Stálin e Pasternak volta à baila com a publicação do romance “Um Ditador na Linha”, do prosador albanês Ismail Kadaré, que será publicado pela Companhia das Letras no dia 10 de julho.
A conversa de Pasternak e Stálin, sobre Mandelstam, nunca saiu da cabeça de Ismail Kadaré, que, por isso, decidiu escrever um romance a respeito.
Autor de vários romances, publicados no Brasil pela Editora Companhia das Letras, Ismail Kadaré viveu, durante anos, sob a ditadura de Enver Hoxha, o Stálin da Albânia. Em 1990, exilou-se na França. (A melhor maneira de prestigiar um bom escritor é publicando sua obra e Kadaré é bem editado e traduzido no país de Machado de Assis e Clarice Lispector.)
Ismail Kadaré morreu na segunda-feira, 1º, aos 88 anos, de ataque cardíaco.
A brasileira Noemi Jaffe escreveu um belo romance, “O Que Ela Sussurra” (Companhia das Letras, 155 páginas), sobre Nadiejda e Óssip Mandelstam. A mulher do bardo é responsável pela “preservação” de grande parte de seus poemas, pois, decorando-os, pôde transcrevê-los. Ao menos em alguns — vários, quiçá — poemas, é praticamente uma coautora.
Tradução de Augusto de Campos¹
Vivemos sem sentir o chão nos pés,
A dez passos não se ouve a nossa voz.
Uma palavra a mais e o montanhez²
Do Kremlin vem: chegou a nossa vez.
Seus dedos grossos são vermes obesos.
Suas palavras caem como pesos.
Baratas, seus bigodes dão risotas;
Brilham como um espelho as suas botas.
Cercado de um magote subserviente,
Brinca de gato com essa subgente.
Um mia, outro assobia, um outro geme.
Somente ele troveja e tudo treme.
Forja decretos como ferraduras:
Nos olhos! Nos quadris! Nas dentaduras!
Frui as sentenças como framboesas.
O amigo Urso abraça suas presas.³
Notas
¹ Do livro “Poesia da Recusa” (Perspectiva, 364 páginas), de Augusto de Campos. Edição de 2011. Tradução direta do russo.
² Nota do Jornal Opção: Augusto de Campos prefere “montanhez”, no lugar de montanhês, para rimar com vez? É provável.
³ Nota de Augusto de Campos: a tradução literal desta última linha equivale a: “O largo peito do ossétio” (cidadão da Ossétia, na Geórgia, região de origem de Stálin). Variante literal: “Um abraço de Ossétia às suas presas”.
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