Japonesas disseram que eu e Helenês éramos negros. Ele riu muito. Viveu e morreu como um homem que jamais deixou de ter a alegria das crianças

Valmir Martins, presidente do Beg, e Helenês Cândido, deputado e governador de Goiás: companheiros da viagem ao Japão | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Março de 1996. Há 25 anos. O governo de Goiás envia uma comitiva a Tóquio, no Japão, para debater com o governo do país a questão do empréstimo para eletrificação rural. Então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (PSDB) também estava lá.

Na comitiva goiana estavam o vice-governador Naphtali Alves (como representante máximo do governador Maguito Vilela, do MDB); o presidente da Assembleia Legislativa, Helenês Cândido (MDB); o presidente do Banco do Estado de Goiás (Beg), Valmir Martins (“o nosso lorde”, dizia Helenês, ao reparar a elegância do banqueiro); o secretário da Indústria e Comércio, Erivan Bueno; o deputado e engenheiro Ricardo Yano; o ex-prefeito de Jataí e ex-deputado estadual Nelson Antônio e, entre outros, Jeremias Lunardelli (da Fazenda Santa Branca).

Saímos de Goiânia, passamos por São Paulo e, de lá, fomos para Los Angeles, nos Estados Unidos. Ficamos algumas horas no aeroporto na cidade, pois havia um problema, sem gravidade, numa turbina do Jumbo da Varig. Helenês, que nada tinha de cândido, divertia a todos — inclusive sobre o medo de alguns. Ao Nelson Antônio, político reservado, perguntava, a sério, mas se divertindo: “Nelsão, você tem medo de morrer?”. O então líder da política do Sudoeste goiano ria, olhava para Helenês, mas nada dizia. Ou melhor, dizia: “Esse Helenês!” Às vezes, olhava, suplicante, para Naphtali Alves, que, conhecendo bem o amigo, dava de ombros, como se dissesse: “Não tem jeito”.

Helenês Cândido foi professor, deputado e governador de Goiás | Foto: Reprodução

Na verdade, Helenês queria melhorar o “clima”, aliviar a tensão. Se não tivesse sido político, poderia ter sido um showman ou ator. Era um comunicador nato. Sabia contar (sem grosseria) piadas e, sobretudo, causos como poucos. Tinha uma memória fabulosa.

De volta ao avião, seguimos para Tóquio. Descemos no Aeroporto de Narita. Helenês se divertindo e divertindo a todos, com suas histórias retiradas da política e da vida. “Demos sorte, o avião não caiu”, disse, com aquele sorriso que se espalhava por todo o rosto — o que, no caso, parecia sinalizar uma felicidade irradiante. Era o oposto de Naphtali Alves, sempre um gentleman circunspecto e tímido. O vice-governador, que depois se tornou governador, fala inglês fluentemente, é um estudioso da língua — e é apaixonado pela arte de resolver problemas complexos de matemática —, mas não faz alarde de suas virtudes.

No hotel, eu e Ricardo Yano, mestre da discrição, dividimos um quarto. À noite, eu trabalhava e enviava reportagens para o Jornal Opção. Era noite no Japão e dia no Brasil. No hotel havia uma sala para repórteres, onde trabalhavam, por exemplo, Ana Paula Padrão, Eliane Cantanhêde e Claudia Safatle.

Erivan Bueno, Dorothea Werneck (ministra do governo FHC) e Naphtali Alves | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Um dia, de manhã, eu meio sonado, Helenês liga no meu quarto, falando um patuá que tentava misturar várias línguas e, a rigor, nenhuma. Percebi, de cara, que era o Helenês, mas disse: “Não estou entendendo”. Ele morreu de rir e, depois, contou para todo mundo que havia me enganado. Ri junto com o Helenês — político (e indivíduo) pelo qual tinha um apreço enorme, e não apenas porque era uma fonte jornalística privilegiada. O que eu admirava em Helenês era o prazer que tinha em viver, em se relacionar bem com as pessoas. Políticos em geral são dados a grandes ou pequenas maldades. Não era o caso do líder de Morrinhos — um homem do bem e de bem.

No hotel, onde havia um pequeno “banco” para os clientes, Helenês e Nelson Antônio tinham dificuldade em trocar dólares por yenes. Então, eu era o encarregado do “escambo” financeiro.

No térreo do hotel, na presença do intérprete Kenji Kawano, Helenês ficou encantado ao saber que o edifício com dezenas de andares tinha “molas” na sua estrutura para suportar tremores de terra. Valmir Martins, ante um Helenês entre atônito e sorridente, contou que, à noite, a cadeira de seu quarto havia “balançado”. “Não vi nada”, disse Helenês.

Jeremias Lunardelli, da Fazenda Santa Branca, e Nelson Antônio, ex-prefeito de Jataí e ex-deputado estadual | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Num encontro com Fernando Henrique Cardoso, Helenês deu um jeito de se aproximar para cumprimentá-lo (cheguei a entrevistar o presidente, noutra ocasião, ainda no Japão). Dado a leituras, por ter sido professor, o deputado me disse: “Eis um homem culto e inebriado pela política”.

No mesmo encontro com FHC, alguns jogadores de futebol, como Dunga e Gilmar, e o técnico Zico compareceram. Dunga mantinha os cabelos “arrepiados”. Ou, como notou Helenês, “espetados”. O deputado não deixou de puxar papo com os dois, inquirindo sobre como era jogar no Japão. Gostou de saber que os atletas brasileiros eram respeitados. E vibrou ao escutar que Zico era admirado por ser um técnico competente e, também, por seu caráter. O brasileiro Alcindo, com seu cabelo “rabo de peixe”, era uma das estrelas do futebol nipônico.

Convidados a visitar a Sony, levados por Kenji Kawano — japonês muito bem relacionado no país de Yukio Mishima e Haruki Murakami —, vimos as novas tecnologias da empresa. Inclusive uma ilha de edição que, segundo um executivo, havia sido adquirida pela TV Globo.

Helenês Cândido (então governador) mostra a Herbert de Moraes, fundador do Jornal Opção, e Euler de França Belém fotografias da viagem ao Japão | Foto: Reprodução

O presidente da Sony quis saber se poderia fazer uma pergunta pessoal ao governador (era apresentado assim) Naphtali Alves. O político goiano disse a Kenji Kawano que responderia “sem problema”. O executivo indagou, mais ou menos assim: “Por que nossos executivos, quando vão para o Brasil, não querem mais voltar, às vezes, se cobrados, preferindo nos deixar?” Feita a tradução, e tendo percebido a hesitação de Naphtali, o intérprete disse que, como japonês que havia trocado a terra de Yasunari Kawabata pela nação de Raduan Nassar, talvez pudesse explicar melhor.

Kenji Kawano relatou que, quando desembarcou a primeira vez no Brasil, foi recebido com beijos no rosto, o que o impressionou. Logo depois, alguém o convidou para uma visita em sua casa. Nas ruas, viu casais de mãos dadas e se beijando. Nada disso é visto no Japão. Por isso o japonês decidiu se mudar de vez para a terra de Elis Regina, Gal Costa, Caetano Veloso e Chico Buarque. Apaixonou-se pela malemolência patropi e se casou com uma brasileira. Não voltou mais ao Japão, exceto a trabalho (hoje, mora nos Estados Unidos).

Helenês ouviu a história, com um sorriso no rosto, e disse: “Mas esta resposta até eu poderia dar”. Ele virou-se e disse para os colegas: “Não vi ninguém se beijando e de braços dados em Tóquio”. Todos rimos, não apenas do fraseado em si, mas da graça da expressão de Helenês — um adulto que jamais perdeu a peraltice da criança que habitava seu ser. O ar zombeteiro, com um sorriso que era palavra, nunca deixou seu semblante ser triste.

Euler de França Belém, Ricardo Yano, Valmir Martins, Beth (intérprete), Erivan Bueno, Naphtali Alves, Nelson Antônio e Helenês Cândido — em Tóquio, em 1996 | Foto: Reprodução

Numa visita à Caterpillar-Mitsubishi, para ver máquinas pesadas, como escavadeiras, Helenês admirou-se com mulheres dirigindo, e muito bem, máquinas gigantes. “Os japoneses querem nos mostrar que as máquinas são feitas para o trabalho pesado, mas podem ser usadas por quaisquer pessoas, porque não se precisa de força física”, resumiu bem Helenês, que era uma espécie de porta-voz informal da equipe.

Na volta ao hotel, Helenês ficava intrigado com um fato: as mulheres japonesas não entravam nos elevadores e nem desciam escadas antes dos homens. “Depois”, pilheriou, “dizem que o Brasil é que é machista”. O deputado não deixou de notar que as japonesas, além de bonitas, se vestem bem. Divertiu-se ao saber que uma fila gigante, basicamente com mulheres, era para ver joias. Numa loja gigante, observou as pessoas comprando roupas chiques produzidas na Europa.

Ao saber que os japoneses dão comida de presente — carne e frutas são muitas caras —, virou-se para o intérprete Manzo Uchigasaki e Nelson Antônio e disse: “Boa ideia. E não é 51”. O educadíssimo Manzo não entendeu o que era 51, pois estava há anos no Japão, como professor de agronomia na Universidade de Tóquio (no momento, estuda nos Estados Unidos). “É cachaça, Manzo. A bebida brasileira por excelência”, explicou, rindo.

Um dia, numa rua, Helenês observou um grupo de japonesas bonitas. E disse para Manzo: “Parece que os japoneses não olham para a gente”. Manzo contrapôs: “Olham, sim. Só que de maneira discreta. Eles são bons observadores”. O intérprete conversou com as japonesas e elas teriam perguntado se éramos “indianos” ou “americanos”. Nada sabiam sobre o Brasil (Burajiro). Numa empresa, ao saber que éramos brasileiros, o diretor disse: “Ah, sim. Terra de Ayrton Senna, Carnaval, futebol, Amazônia e Bossa Nova”. O Brasil era isto para ele e para muitos japoneses.

Num restaurante à beira-mar, com Helenês reclamando dos preços — um pedacinho de salmão e um pouco de arroz grudento a 35 dólares —, ouvimos, admirados, a música “Índia” na voz de Gal Costa. Perguntamos logo, Helenês na comissão de frente, se era uma homenagem a nós, brasileiros. Não era. O dono da empresa era japonês e havia sido apaixonado por uma brasileira, que o deixara para voltar ao Brasil. Restou da paixão o amor pela música da terra de João Gilberto e Nara Leão. “Que japonês legal”, resumiu Helenês, com seu ar arteiro de eterno menino.

Euler de França Belém, Valmir Martins, Nelson Antônio e Manzo Uchigasaki — em Toquio, em 1996 | Foto: Reprodução

Um dia, com Beth (brasileira filha de japoneses) como nossa intérprete, três japonesas fizeram fotos conosco para mostrar para as amigas de escola. Ficamos “surpresos” ao saber que ela queria exibir fotos dos “negros de Buragiro” para as colegas. Sou bisneto de uma mulher negra, Frutuoza Fagundes, mas sou considerado pardo no Brasil. Helenês riu muito, mas, curiosamente, não contou a história para ninguém. “Belém, a moça queria namorar com você, um negro brasileiro”, me disse. Beth corrigiu: “Não é bem assim. Na verdade, elas sabem muito pouco sobre o Brasil e não apreciam namorar estrangeiros”. “Ah, bom!”, disse Helenês, com aquele jeitão esperto que era só seu.

Fomos certa vez, levados por Beth ou Manzo, a um cemitério onde estão enterrados, salvo engano, 48 samurais. Eles tentaram dar um golpe e foram massacrados. São venerados pelos japoneses e o cemitério é um ponto turístico de Tóquio. Perguntei sobre o escritor Mishima, que, depois de um golpe fracassado, se suicidou, praticando o haraquiri. Cortou o ventre e um discípulo cortou sua cabeça. “Para com isso, amigo Euler. Que história triste. Nós vamos almoçar daqui a pouco.”

Nos restaurantes japoneses, Helenês olhava a entrada com atenção. Ao comer uma sopa que parecia chá, Helenês perguntou: “Belém, o que será que estamos comendo?” Eu não sabia, pois não havia entendido as explicações. Mas a “sopa”— com “algas” — estava boa. Comer com pauzinhos não era fácil. Helenês virou-se e disse Nelson Antônio: “Fala a verdade, você está pensando em enfiar as mãos neste arroz e deixar esses pauzinhos de lado”. De fato, a gente tentava “fisgar” o arroz e ele caía. De repente, Helenês enfiou uma mão no prato e comeu tranquilamente — e acabei por imitá-lo. “Belém, eu sou prático.”

O entusiasmo de Helenês cresceu ao frequentar duas churrascarias nas quais trabalhavam alguns brasileiros. Numa delas, a Bakanas, havia Karaokê e pessoas dançando, salvo engano, samba. Todo mundo meio durão, mas tentando se divertir. Fomos acompanhados de executivos de uma empresa, não me lembro se da Sony ou da Mitsubishi. Depois de algum tempo, os japoneses ficaram mais descontraídos, e perderam a fleuma. Helenês percebeu logo que a bebida alcoólica era fator de descontração para eles. De fato, ao entrar na Bakanas eram “uns”, seriíssimos, ao saírem eram “outros”, sorridentes.

Certa noite, fomos a um bar. Helenês ficou impressionado com duas coisas: os japoneses bebiam — e não apenas sakê — e fumavam muito. Conversavam em voz em alta e estavam dizendo “hai, hai, hai” (sim).

Mendigos no terceiro país mais rico do mundo, o Japão | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Perguntei a Manzo sobre os pobres japoneses, e Helenês reparou: “Não vi mendigos nas ruas. Mas notei que há camelôs vendendo máquinas fotográficas, relógios e outros produtos em algumas ruas”. O Japão era, então, o segundo país mais rico do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (agora é o terceiro, depois da China). Mesmo assim, há pobres no país e Manzo me levou para vê-los. Ficam em estações de metrô afastadas e recebem auxílio do governo japonês. Não ficam nas ruas — até porque o frio é intenso. O que ouvi deles, com mediação do intérprete, é que não se adaptam à vida rígida do Japão. Quase não se muda de empregos, falhas raramente são “perdoadas” e se trabalha muito. Quando contei a história, Helenês quase não acreditou. Mas, numa viagem de 12 dias, com tantos compromissos oficiais, acabou não tendo como ver com os próprios olhos os mendigos japoneses. Helenês era assim: apreciava ouvir sobre determinados assuntos — mas sempre queria verificar por si. Tinha uma curiosidade imensa pelo cotidiano das pessoas. Ele gostava de gente e por isso todos gostavam dele.

A visita ao Japão foi melhor por causa da companhia de Helenês — amigo, divertido, solidário. Ele melhorava os ambientes, dotando-os de humor. Erivan Bueno era apressado e objetivo, então ouvia do amigo: “Calma, o mundo não vai acabar hoje”. Erivan Bueno morreu primeiro e bem mais jovem.

Pescarias e Afonso Lopes

Helenês era uma fonte que, aos poucos, se tornou um amigo (e nem sempre é positivo se tornar amigo de políticos). Em frequentes almoços, no Bella Luna e noutros restaurantes, ele divertia a mim, a Afonso Lopes (Helenês admirava o jornalista) e a outras pessoas. Adorava as histórias de pescarias do Afonso e do Lorimá Dionísio (Mazinho). Afonso chegou a pescar na sua fazenda. Um dia, durante um almoço, ele tirou uma caixa de Viagra do bolso e entregou para Afonso Lopes. “Ué, não estou precisando ainda não!”, disse o jornalista. “Bobagem, todo homem velho ou de meia idade diz sempre a mesma coisa: ‘Quando precisar, eu vou tomar, mas ainda não estou precisando’. Ora, se ninguém está tomando e o Viagra é o medicamento que mais vende no Brasil, deve ser o ET de Varginha quem está comprando”. Até o garçom riu da fala de Helenês.

Goiás perdeu um homem doce, gentil, divertido. Era a alegria personificada. A Covid-19 o retirou dos amigos e da família aos 86 anos, na quinta-feira, 18. Sem as complicações derivadas da doença, teria vivido muito mais. Havia um jovem eterno incrustado em sua alma.

Sei que o momento é de tristeza, mas fiz a opção de lembrar do Helenês alegre, divertido, amigo. Porque ele era assim (e a vida de uma pessoa não deve ser “resumida” pela morte). E detalhe: morreu pobre, depois de ter sido deputado e governador. Era um político de grande espírito público de Morrinhos — dita a “Atenas de Goiás” (terra dos notáveis Eurico Barbosa e Alaor Barbosa, dois irmãos intelectuais) — e do Estado.