“O jogo vai ficando sensacional no segundo tempo! Túlio, Araújo, perdeu, recuperou…
Marquinhos na boca do gol pro Fernandão, bicicleta… que golaaaaaaaço! que golaaaaaço!
Torcedor do Goiás, saia do estádio, vá lá fora, vá na bilheteria, compre o ingresso! É o gol mais bonito do campeonato até agora! Isso não importa se é Série B, Série A, C, D, E, F, G, H!
Golaço do Fernandão! Ajeitou no peito, lá em cima, na bicicletaaa! A bola vai na gaveta direita! Empaaata o Goiááás! Fer-Fer-Fer-Fer-Fernando, Fernandão! Camiiiisa número noveee!”*

Qualquer entendedor de português e de futebol, deparando com esse parágrafo, saberia se tratar da narração de um gol pelo rádio. Mas somente quem acompanha o esporte em Goiás identificaria, em uma leitura sinestésica que se rapidamente transmutaria em uma espécie de audição visual, seu autor inconfundível: Edson Rodrigues, o Monstro Sagrado, o maior narrador da história no Estado e, sem nenhum segundo de dúvida, um dos maiores do esporte nacional.

Edson morreu na quinta-feira, 26, pegando muita gente de surpresa e desfalcando como ninguém o time da imprensa esportiva. Havia descoberto, no fim do ano, um tumor no pâncreas, a cujas complicações não resistiu. Tinha 79 anos, mas, apesar da idade avançada para um narrador, continuava brilhando como a principal estrela do ofício que passou a amar ainda garoto, quando imaginando-se em um estúdio, no terreno da casa em que vivia em Amanhece – distrito de Araguari, no Triângulo Mineiro – improvisava um programa de auditório e declamava gols imaginários.

“Declamar” não é exagero. O verbo tem como origem, seu “lugar de fala”, a poesia. Mas cabe bem ao que Edson Rodrigues fez durante mais de 60 anos: um corolário de declamação de gols. Como um bom poema serve aos amantes da literatura, a voz que saía dos alto-falantes – fosse do radinho de pilha do torcedor na arquibancada, fosse narrando em um ginásio de escola, como quando foi descoberto em Araguari pelo radialista Ney Montes – fazia arrepiar quem tem o futebol correndo nas veias.

Edson começou a carreira na própria cidade, com 17 anos. Aos 22, já era o narrador mais respeitado da respeitada imprensa anapolina, disputado pelas emissoras – por coincidência – ou não – no ano do único título estadual conquistado por um time da cidade, o Anápolis, em 1965. A concorrência em busca de ter seu talento fez ele ganhar, naquele momento, muito mais do que qualquer radialista da capital, como revelou, ainda em 2012, como entrevistado do programa Tabelando com André Isac, da PUC TV..

Edson Rodrigues não ganhou fama em todo o Brasil? Azar do Brasil

O Monstro Sagrado também passou com competência por grandes emissoras de Uberlândia, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, mas foi em Goiânia que fez sua história pessoal e profissional. E aqui chegamos a uma questão fulcral da existência: ele poderia ter sido um dos nomes mais reconhecidos do jornalismo esportivo no Brasil. Um Galvão Bueno do rádio. Ocorre que Goiás não é Rio nem São Paulo e fazer carreira em um CEP fora do Eixo é se condenar a pagar esse preço.

Não há nada de bairrismo nisso. Profissionais gabaritados de todo o País e que conhecem a fundo o ofício de narrar futebol sempre foram unânimes em dizer que seu talento era único, de ponta. O timbre característico, a potência vocal, o ritmo envolvente, a intensidade contínua, tudo isso mesclado à descrição perfeita da cena em campo: como não ver lirismo genuíno naquilo que ele emitia a plenos pulmões, com a garra de quem tem “coração de bronze”?

Edson Rodrigues não ganhou fama em todo o Brasil? Azar do Brasil. Sorte dos goianos. Por aqui, esmeraldinos, vilanovenses, atleticanos e alvinegros se deleitaram durante mais de meio século com a vibração de seus lances e gols. A gratidão foi expressa em seu funeral: sobre seu caixão, estavam, justapostas, as camisas dos quatro clubes da capital.

Ele nunca disse qual era seu clube de coração, mas todos sabem que Edson não era um narrador imparcial. Muito pelo contrário, era totalmente torcedor ao microfone: vibrava como nunca em cada gol de todos os clubes goianos que estivessem em campo. Ao receber nos ouvidos a emoção que exalava de sua voz, tivesse ele a preferência clubística que tivesse, não teria problema para quem estava do outro lado. Não se conhece alguém que tenha reclamado de alguma narração pouco entusiasmada do Monstro.

Edson Rodrigues, ainda no início de sua carreira | Foto: Reprodução

Por isso, mas não só por isso, ele foi certamente o personagem mais amado da imprensa esportiva em Goiás. Por torcedores, com certeza; e por imensa parte de seus colegas, da mesma forma. Se ao microfone era uma excelência em seu ofício, fora dele sempre fora um gentleman, um “sujeito família” alguém que sempre soube lidar com cada pessoa da melhor e mais respeitosa forma.

Como todo grande narrador, consagrou apelidos para o futebol. O Goiás virou o “Avião Verde” e seu provável principal atleta da história, o atacante Lincoln, o “Leão da Serra”; Fernandinho, craque do Vila Nova, foi rebatizado como “Pequeno Polegar”.

Edson Rodrigues também atuou na política. Foi candidato algumas vezes e, como primeiro suplente pelo PSC, assumiu vaga na Câmara de Goiânia com a morte do vereador Carlos Eurico, em 1993. Também recebeu, merecidamente, títulos de cidadão goianiense, em 2005, e de cidadão goiano, em 2008.

O Monstro Sagrado, mais do que um profissional exemplar, foi um ser humano correto. Daquele tipo que todos nós deveríamos buscar ser. Na cabine, Edson Rodrigues de Oliveira é insubstituível. Já está fazendo falta ouvir aquele “vai buscar lá dentro!”. Um obrigado eterno ao grande poeta da narração esportiva.

* Narração do antológico gol de Fernandão no igualmente antológico jogo Goiás 4 x 4 Bahia, no Estádio Serra Dourada, pela 1ª fase da Série B do Campeonato Brasileiro de 1999. Como homenagem a Edson Rodrigues, o programa Redação Sportv reproduziu o áudio com o vídeo do lance na edição de sexta-feira, 27. Confira abaixo a narração com o vídeo: