Renato Lemos apresenta um retrato equilibrado do militar e político que foi líder do PSD e da Arena. Americano traça estudo supostamente mais contundente

Livro do brasilianista R. S. Rose sugere que Filinto Müller era um chefe de polícia brutal, de matiz fascista; ele teria ordenado a tortura e assassinato de presos políticos e cidadãos inocentes

O presidente Getúlio Vargas, os generais Eurico Dutra e Góis Monteiro e o chefe de polícia do Distrito Federal, Filinto Müller (1900-1973), tinham simpatia pelo nazismo — ao contrário do notável Osvaldo Aranha, que era pró-americano. Quando perceberam que a Alemanha de Adolf Hitler não era um “bom” negócio, os líderes patropis decidiram ficar com os Aliados, notadamente os Estados Unidos. Dos quatro, logicamente, o mais estudado é o político que governou o Brasil de 1930 a 1945 e, no período democrático, de 1951 a 1954, quando se matou. O polêmico político de Cuiabá, Mato Grosso, citado em vários livros, ganha um estudo exaustivo “O Homem Mais Perigoso do País — Biografia de Filinto Müller (Civilização Brasileira, 406 páginas), do pesquisador americano R. S. Rose, doutor em Sociologia pela Universidade de Estocolmo e autor do excelente “Johnny — A Vida do Espião Que Delatou a Rebelião Comunista de 1935” (em parceria com Gordon D. Scott).

O jornalista David Nasser escreveu uma série de artigos, coligidos em livro, com o título de “Falta Alguém em Nuremberg”, no qual apresenta Filinto Müller como um nazista brasileiro, extremamente cruel, por isso deveria ter sido julgado como os nazistas que torturaram e mataram — além dos 6 milhões de judeus — socialdemocratas, comunistas, ciganos e homossexuais. Exagero? Talvez. O livro de R. S. Rose chega às livrarias este mês e, por isso, ainda não o li. A editora informa, em release enviado às redações, que o autor consultou mais de 66 mil documentos, 500 recortes de jornais e a bibliografia, “além de 165 itens audiovisuais pertencentes ao acervo da Fundação Getúlio Vargas”.

O texto enviado pela Civilização Brasileira informa que “Filinto Müller serviu a quatro diferentes ditadores na história do Brasil, mandando torturar e matar suspeitos e adversários”. Nascido em Mato Grosso, em 1900, descendentes de alemães, o militar e político morreu, em 1973, num acidente de avião, em Paris. Na época, era presidente do Senado. O livro de R. S. Rose sublinha que “Filinto Müller era conservador, nacionalista e imperturbável em seu apoio a duas ditaduras [a de Getúlio Vargas e a dos miliares pós-1964], em guerra com um adversário persistente, seu adversário, a chamada ameaça comunista. Ele foi um representante da geração de tenentes que pensava que eles, e somente eles, sabiam o que era melhor para o país. Sua receita para um Brasil melhor não incluía o comunismo de Luiz Carlos Prestes, mas sim a ditadura dos militares ‘sabichões’. Müller serviu aos governos autoritários de Vargas, Castello Branco, Costa e Silva e Médici com entusiasmos diferentes — mas os serviu”. O leitor, por certo, estranhará o uso da palavra “sabichões” num livro de história, que talvez tenha sido dita pelo político.

Ao apresentar o livro de R. S. Rose, a doutora em História Anita Leocádia Prestes — filha de Luiz Carlos Prestes e Olga Benario (que Getúlio Vargas e Filinto Müller entregaram aos nazistas) — afirma que “ajuda a conhecer a trajetória de Filinto Müller: o oficial rebelde do Exército brasileiro — que na década de 1920 abandonou a luta, traindo seus companheiros —, facínora a serviço das duas ditaduras que infelicitaram nosso país. Durante a Era Vargas, o militar, fiel cumpridor dos desígnios do ditador, não vacilou no papel de carrasco. Torturou, assassinou e deportou presos políticos e cidadãos inocentes”.

Filinto Müller (à esquerda) com o presidente Getúlio Vargas: os dois tinham vocação para ditador e, aliados, barbarizaram opositores antes e durante o Estado Novo

Tenentes e corrupção

Na falta do livro de R. S. Rose, fio-me numa biografia sucinta — cinco páginas — publicada no livro “Dicionário Histórico-Biográfico Pós-1930” (FGV Editora) escrita pelo doutor em História Renato Lemos.

Em 1919, Filinto Müller entrou para a Escola Militar do Realengo e, em 1922, foi “declarado aspirante-a-oficial da arma de artilharia, tendo obtido o primeiro lugar da turma”.

Numa entrevista à revista “Veja”, citada por Renato Lemos, Filinto Müller deu uma declaração que lembra o pensamento atual dos brasileiros: “Achava que todos os governantes eram corruptos” e que “a falta de liberdade, a estagnação econômica e a corrupção eram culpa de uma pequena comandita que tomava conta de tudo”. A saída? “Uma ditadura que fizesse tábula rasa de tudo.” Era o que pensava em 1921, quando tinha 21 anos.

No levante militar de julho de 1922, embora simpático aos rebelados, Filinto Müller não entrou em ação. “Devido às medidas preventivas adotadas pelas autoridades pelas autoridades militares”, anota Renato Lemos. Porém, sob acusação de ter participado da conspiração, ficou preso “durante cinco meses”.

Em 1924, como primeiro-tenente, participou de rebelião em São Paulo, ao lado dos tenentes Eduardo Gomes e Henrique Ricardo Holl. Uma bateria de sua unidade, de Quitaúna, bombardeou a sede do governo paulista. O presidente (governador) Carlos de Campos escondeu-se em Mogi das Cruzes.

Durante três semanas, os rebeldes, dirigidos pelo general Isidoro Dias Lopes, ocuparam Sampa, a capital do Estado de São Paulo. Sob pressão dos legalistas, rumaram para o Paraná. O comando revolucionário promoveu Filinto Müller a capitão.

No Paraná, Filinto Müller escapou — ao lado do tenente-coronel Newton Estillac Leal — do cerco das tropas do governo.

Reunidos, os rebeldes organizaram a Coluna Miguel Costa-Prestes. Dada sua “capacidade de comando, bravura e inteligência”, Filinto Müller foi promovido a major.

Sob combate intensivo do governo, a coluna rebelde passa por uma crise e sai, numa marcha que sugere certo quixotismo, pelo país (inclusive Goiás). Um grupo de militares, soldados e oficiais, como Filinto Müller, optou por exilar-se na Argentina.

O médico da coluna, Aristides Correia Leal, explicou a exclusão de Filinto Müller, em 1925, “por haver, covardemente, se passado para o território argentino, deixando abandonada a localidade de Foz de Iguaçu, que se achava sob sua guarda, resultando que os praças que compunham a mencionada guarda o imitaram nesse gesto indigno, levando armas e munição pertencentes à Revolução”. O comandante Herculino Cascardo sugeriu que o militar “teria fugido com o dinheiro sob sua guarda” (o texto entre aspas é de Renato Lemos).

“Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro”, da Fundação Getúlio Vargas, traça um perfil equilibrado mais lacunar do chefe de polícia do governo de Getúlio Vargas

No “Dicionário Biográfico Mato-Grossense”, Rubem Mendonça apresenta uma versão diferente: Filinto Müller foi “desligado da coluna por Isidoro Dias Lopes para que pudesse ‘lutar pela vida até que as condições políticas lhes permitissem regressar ao Brasil’”.

Em 1927, ao voltar ao Brasil, Filinto Müller acabou preso e condenado a dois meses e meio de detenção. A pena foi cumprida na fortaleza de Santa Cruz e no forte de São João, no Rio de Janeiro. Ao deixar a prisão, trabalhou como vendedor da Mesbla.

Embora tenha mantido ligação com os tenentes, Filinto Müller não participou, de maneira destacada, das articulações pró-Revolução de 1930 e da derrubada do governo do presidente Washington Luís.

Chefe de polícia

Anistiado pelo presidente Getúlio Vargas, Filinto Müller foi nomeado oficial-de-gabinete do ministro da Guerra, general José Fernandes Leite de Castro. Lutou contra a Revolução Constitucionalista de São Paulo, em 1932, e foi promovido a capitão. Em 1933, torna-se chefe de polícia do Distrito Federal. Permaneceu no cargo até 1942.
Na primeira metade da década de 1930, Filinto Müller tenta ser candidato a governador de Mato Grosso, mas não consegue. Em 1935, Getúlio Vargas nomeia Fenelon Müller, seu irmão, como interventor do Estado.

Em 1935, uma articulação entre democratas e comunistas, que se tornaram hegemônicos, deu origem à frente política Aliança Nacional Libertadora (ANL). Depois de ordenar a invasão do jornal “A Pátria”, Filinto Müller atacou a ANL, sugerindo que tinha ligações com organizações estrangeiras, notadamente comunistas (leia-se União Soviética). O que não era falso. A ANL, assim como o Partido Comunista do Brasil (PCB), estava infiltrada por agentes a serviço do chefe de polícia.

A ANL, assim como a União Feminina do Brasil, foi fechada pelo governo. Os comunistas decidiram derrubar o governo de Getúlio Vargas. Mas a chamada Intentona Comunista foi debelada rapidamente, dadas a fragilidade das forças comunistas e a infiltração operada por Filinto Müller, com o apoio do espião alemão Johann Heinrich Amadeus de Graaf, o Johnny (que, depois de espionar para os soviéticos, se tornou agente inglês). No livro sobre Johnny, R. S. Rose e Gordon D. Scott mencionam que Urbano “Bercuó” espionou para o agente duplo europeu, em 1940, no Rio de Janeiro. Quando resenhei a obra, consultei o promotor de justiça e doutor em História Jales Guedes Mendonça, especialista no período. “Bercuó” é, na verdade, Urbano Berquó. “Foi advogado de Pedro Ludovico e jornalista do ‘Correio da Manhã’”, informa Guedes Mendonça. Os pesquisadores não apresentam informações detalhadas sobre “Bercuó”.

Mesmo que a revolta dos comunistas não tenha sido significativa, no sentido de não ter abalado o governo de Getúlio Vargas, Filinto Müller começou a defender “que era necessária uma ditadura”. O chefe de polícia prendeu comunistas e liberais, de maneira indiscriminada, como se o país já vivesse sob ditadura. Foram presas entre 7 mil e 17 mil pessoas (os comunistas apontaram o número de 20 mil).

Debelada a insurreição esquerdista de Luiz Carlos Prestes, Filinto Müller envia um auxiliar, o capitão Afonso de Miranda Correia, para conhecer “o serviço de combate ao comunismo montado na Alemanha nazista”. O militar patropi também trocava informações com o FBI.

Renato Lemos frisa que Getúlio Vargas era entusiasta da violência — “eficiente” — perpetrada por Filinto Müller. As “mãos” eram do militar, mas o “cérebro” era do presidente. Numa carta para Osvaldo Aranha, escreveu que o chefe de polícia era “incansável, sereno e persistente, obtendo resultados felizes sem necessidade de excessos”. Puro cinismo do líder gaúcho. “Excesso” é uma palavra que pode ser acoplada ao nome de Filinto Müller, que “esticava” a lei, não para cumpri-la à risca, e sim para torná-la suporte para sua ação mais ilegal do que legal.

Filinto Müller ordenou prisões arbitrárias e torturas. Chegou a ser acusado pela oposição de antissemita. A comunista judia Olga Benario foi deportada para a Alemanha de Adolf Hitler, em 1936, mas a responsabilidade maior é do presidente Getúlio Vargas, o que não exime o chefe de polícia de responsabilidade.

Renato Lemos escreve que, “em março de 1936, o deputado federal Domingos Vellasco [1899-1973 — goiano da Cidade de Goiás], que se encontrava preso, prestou depoimento acusando Filinto Müller de envolvê-lo no levante da ANL como retaliação pessoal, pois o parlamentar alertara o presidente da República para o uso indevido de verbas da polícia e divulgara o boletim que, em 1925, determinou a expulsão de Filinto Müller dos efetivos da Coluna Miguel Costa-Prestes”.

Estado Novo
Em 27 de setembro de 1937, Filinto Müller participou de uma reunião na qual se discutiu um golpe militar. Estavam presentes o ministro da Guerra, Eurico Dutra, e o chefe do Estado-Maior do Exército, Pedro Aurélio de Góis Monteiro, entre outros militares de alta patente. O objetivo era “anular” a força — na época, nenhuma — dos comunistas.

Na reunião no gabinete do ministro da Guerra, com voz ativa, Filinto Müller, registra Renato Lemos, “manifestou-se contrário a execuções de prisioneiros” — o que surpreende, pois não tinha pudor de barbarizar prisioneiros. Sugeriu que os presos fossem “usados” na construção de obras públicas.

Com a apresentação do Plano Cohen, uma farsa elaborada pelo integralista Olímpio Mourão Filho — que, em 1964, iniciou o golpe de Estado que derrubou o presidente João Goulart, do PTB —, o governo de Getúlio Vargas finalmente se tornou uma ditadura (antes era uma quase-ditadura), conhecida como Estado Novo (1937-1945). Em 10 de novembro de 1937. Filinto Müller continuou como chefe de polícia, uma espécie de micro-ditador.

Renato Lemos assinala que, segundo Olbiano de Melo, líder da Ação Integralista Brasileira, Filinto Müller mantinha ligação com a organização comandada por Plínio Salgado, visto como o Benito Mussolini brasileiro. Na versão de uma parente, o chefe de polícia não era da AIB, mas mantinha agentes infiltrados. Como os galinhas verdes eram simulacros dos fascistas italianos e dos nazistas alemães (dom Helder Câmara, mais tarde esquerdista, era integralista, como Miguel Reale, pai), é provável que o chefe de polícia mantivesse ligações estreitas com seus líderes (era um nazistão ou um Fouché dos trópicos?). Porém, a serviço de Getúlio Vargas, reprimiu, de maneira cruenta, a tentativa dos integralistas de derrubar o ditador, em 1938. O tenente Severo Fournier denunciou torturas contra presos.

Em 1942, Getúlio Vargas, mago das conciliações supostamente impossíveis, alinha-se aos Aliados — contra Adolf Hitler e Benito Mussolini —, com o apoio de Osvaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores, e do interventor do Rio de Janeiro, Ernâni Amaral Peixoto. Depois de uma briga com Vasco Leitão da Cunha, ministro em exercício — o titular era o jurista Francisco Campos —, Filinto Müller pediu demissão. Caíram juntos Leitão da Cunha, Francisco Campos e Lourival Fontes. Eurico Dutra e, claro, Getúlio Vargas continuaram.
Em seguida, Filinto Müller foi nomeado oficial-de-gabinete do ministro da Guerra, Eurico Dutra. Em 1943, assumiu a presidência do Conselho Nacional do Trabalho.

PSD e Arena

Com a queda de Getúlio Vargas, o Fouché brasileiro reaparece como político, sendo um dos fundadores do Partido Social Democrático (PSD, hoje dirigido por Gilberto Kassab e, em Goiás, Vilmar Rocha e Thiago Peixoto). Em 1947, tornou-se senador e presidente do PSD em Mato Grosso.

Em 1954, Filinto Müller não conspirou contra Getúlio Vargas. Mais uma vez, foi eleito senador por uma composição entre o PSD e o PTB. Ficou ao lado de Juscelino Kubitschek, que, eleito presidente, era contestado por um grupo de civis e militares. De 1955 a 1960, foi líder da bancada pessedista no Senado. O presidente JK designou-o líder do governo em 1956 na Câmara Alta. O PSD e o PTB bancaram sua reeleição em 1962.

Em 1964, no governo ditatorial do presidente-general Castello Branco, Filinto Müller reassumiu a liderança do governo no Senado. Entretanto, com a cassação de Juscelino Kubitschek, renunciou à função.

Em 1965, com o bipartidarismo, não quis se filiar ao MDB, optando pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido patrocinado pelos generais. “Filinto Müller assumiu a liderança da bancada arenista no Senado em 1966.” Em seguida, foi eleito presidente da Arena. Foi reeleito em 1970. Quando morreu, em 1973, era um dos principais homens da ditadura no Congresso.
Enquanto não sai o livro de R. S. Rose — aparentemente, mais “crítico” e contundente —, o texto serve como “aperitivo” para os leitores. Renato Lemos menciona uma dissertação de mestrado, de autoria de Luciana Quillet Heymann, “As Obrigações do Poder — Relações Pessoais e Vida Pública na Correspondência de Filinto Müller”.