Eu cancelo, tu cancelas, ele(s) não!
03 agosto 2020 às 19h23
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O diferente é posto na categoria daquele que deve ser ostracizado, excomungado e, por consequência, ateado (a)o fogo do inferno
Diego A. Moraes Carvalho
Especial para o Jornal Opção
A gramática conservadora costuma atribuir a uma conjugação de “tradições” aquilo que poderíamos definir como base de sustentação do léxico chamado “civilização ocidental”. Em outras palavras, aquilo que nomeamos como mundo ocidental estaria baseado em um tripé que evoca a filosofia grega, o direito romano e a civilização judaico-cristã. Assim, nossos valores mais caros e instituições mais preciosas a serem resguardadas teriam nessas matrizes a sua origem. Sem querer entrar no mérito da pertinência dessa formulação — sobretudo porque ela facilmente cede a um questionamento sobre a forma como se interpretam esses epicentros históricos a partir de uma ingênua homogeneidade — é fato que nosso mundo deve muito ao que se extraiu e recortou desse passado.
Arrisco a dizer que, para além do direito, herdamos dos romanos o talento para tratar tudo aquilo que não vibra no diapasão da conveniência a um modelo de [domínio e] sociedade como algo inferior e espúrio, tomando o direito de nomeá-los como desejavam. “Bárbaros” ou “gregos”. O motivo para o não reconhecimento dos nomes que o “não-romano” ou os “helenos” davam para si estava na ordem daquilo que se deseja expressar: domínio por rebaixamento ou simplificação do outro pela tirania da linguagem. “Aos amigos a lei, aos inimigos o rigor da lei!”. Dura Lex, Sed Lex (“A lei é dura, mas é a lei”) — mas nem tanto: o rigor só se deve a quem não é como nós. Aprendemos desde cedo que o Latim vale não somente para nomear marca de louças, mas para evocar com ares de erudição o doce exercício autoritário e desqualificador. Se buscarmos uma genealogia para o colonialismo, certamente entre os romanos teremos “Tellus” fértil de investigação.
Platão e o expurgo dos poetas
A filosofia e a política helênica nos trouxeram algo também sui generis. Platão — aquele a quem o historiador da filosofia Giovanni Reale afirma ser a história das ideias ocidentais uma mera nota de rodapé sobre seu pensamento — nos lega uma prescrição singular: devemos expulsar os poetas da [sua] República. A poesia não tem espaço da “cidade ideal” por não ser da ordem do inteligível, se ocupando tão somente de entes temporais e efêmeros. É preciso o expurgo dos imitadores. Pelo fato de as produções poéticas expressarem coisas distantes da “verdade”, elas seriam um perigo para a educação dos gregos antigos, posto o caráter indômito de uma arte que não se compromete com a fundamentação de valores morais universais. Mesmo Platão admirando Ésquilo, advogava ser necessário — em nome da plenitude de uma cidade justa a manifestação de uma verdade universal das ideias ou formas — apartar os poetas de sua influência sobre os destinos da cidade. Nada de novo quando vemos nos dias atuais o desapreço que temos com artistas que não têm compromisso político com modelos de sociedade e moralidade que desejamos imprimir.
Dos gregos ainda vale falarmos do dispositivo do “ostracismo”: um método de controle da tirania. Uma vez por ano concedia-se aos atenienses a oportunidade de registrarem num caco de barro (ostrakon) o nome de qualquer pessoa que, para eles, representasse perigo para a cidade. Um indivíduo contra o qual se apurasse um número suficiente de votos era ostracizado, isto é, forçado a deixar Atenas durante dez anos. Aristóteles afirma, em sua obra “Política” (1284a19-24), que aqueles que naturalmente se destacavam por possuírem a virtude para o desempenho das decisões políticas na cidade eram de postos perseguidos e excluídos do convívio público. O ostracismo, então, tinha uma força de canalização de ressentimentos para com aqueles que, de alguma forma, se distinguiam da média aceitável. Estava para além de um dispositivo político-burocrático, como se percebe…
Chegamos então ao Cristianismo. E aqui há toda a força que uma (po)ética é capaz de conferir em seu mais alto grau de subjetividade dada às fronteiras bastante limítrofes entre o que se é metafórico, simbólico e o que é literal. A depender da forma como o exercício espiritual atravessa o sujeito, tais categorias podem se manejadas com a potência de um rigor teológico ou com aporias de conveniência. Geralmente vence o último caso: simbólico ou literal depende do que quero afirmar ou rechaçar. Dessa forma, se desejo relativizar a participação de mulheres na vida eclesiástica, digo que o texto Paulino presente em 1 Coríntios, Cap. 14, Vs. 34-5 é preciso ser lido em sua cadência contextual. “Vale para a época”, dirão! Mas quando é pra reforçar um discurso homofóbico, por exemplo, o texto de Deuteronômio é literal e nada figurado. “Falta-lhe a mediação da razão teológica (?) aliada à presença do espírito santo para compreender o que é ou não literal [e atual]”, novamente dirão! O ponto é que há sempre uma única destinação possível ao herético ou apóstata, e parece aí haver consenso entre religiosos: o fogo do inferno. Se recuarmos alguns milênios, essa ardência já era antecipada pedagogicamente nas fogueiras da Inquisição. A promessa continua atual, sendo apenas sofisticada por alguns neocristãos chamando isso de “mundo de expiações” ou “instâncias umbralinas”.
Ressentimento e cultura do cancelamento
Se fôssemos nos deixar embalar pela força do anacronismo, poderíamos facilmente remontar a “cultura do cancelamento” à nossas matrizes civilizacionais. Não é de hoje que o diferente, portanto indigesto, é posto na categoria daquele que deve ser ostracizado, excomungado e, por consequência, ateado (a)o fogo do inferno (literal ou político, de acordo com o credo genuflexo). O que marca as nossas bases civilizacionais do dito Ocidente está cifrado na ordem do ressentimento e do desejo manifesto de silenciar ou anular, inclusive fisicamente, o outro. Segundo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, o ressentido é aquele que naufraga invariável e lentamente no seu oceano de mágoas, raiva, ira e ódio que tomaram de assalto o convés de sua consciência. Dali, submerge um conjunto de retaliações imaginárias, planos de redenção, julgamentos e sentença e execução sumárias em nome de uma justiça final.
E é nesse ponto que a direita conservadora (reacionária?) e a esquerda identitária (progressista?) se abraçam na valsa da contradição sob o compasso da (com)pulsão por vingança. No seu ritmo ternário invariável, não há espaço para contrapontos ou cromatismos em suas melodias monotemáticas. Muitas vezes por se comportarem como instâncias de devoção vendada, qualquer dissonância passa a ser tomada como algo demoníaco que precisa a todo custo ser combatido por meio de um evangelho panfletário de suas pautas políticas que excluem tudo que não diz “amém” aos seus versículos. Tanto um como outro espectro de nossa política contemporânea age na defesa obtusa de seus mártires, elegendo seus santos e atacando os seus demônios construídos. Assim como na cultura judaico-cristã — em geral aquela que baliza moralmente as instituições conservadoras do Ocidente —, o “outro” é sempre aquele que traz o descompasso, escancara nossas contradições e aposta na diferença (e no diferente) para se posicionar frente uma realidade distinta do saudoso mofo passadista de um ou da utopia que mobiliza o desejo revolucionário d’outro. Em suma, a mobilização de afetos ressentidos não pertence a um único espectro político. Se fosse “permitido” academicamente falar em “natureza humana”, não restaria dúvidas que esse comportamento é inerente à sua constituição de “homo ressentidos sapiens”: a história do Ocidente confirmaria esse atravessamento…
Mas do que se trata essa tal da “cultura do cancelamento”? Há nela algum fundamento que se legitime e não a torne simplesmente uma modalidade contemporânea de ostracismo ou excomunhão? É possível relativizar a dimensão do ressentimento quando o que se está em jogo é uma “justiça social”?
O chamado “cancelamento” ocorre quando algum gesto, atitude ou fala de alguém — sobretudo se há uma resposta midiática à altura — é considerado ofensivo para um grupo de pessoas, sobretudo se tais são postas na condição de minorias oprimidas: negros, mulheres, homossexuais, etc. Mobilizando, sobretudo, as redes sociais, em questão de tempo o alvo recebe uma cadeia de comentários e cobranças que podem levá-lo a demissões, perda de contratos, etc. Como há uma profunda desconfiança sobre as instituições democráticas, grupos se articulam em torno de um punitivismo de militância que não oferta ao seu “objeto de cancelamento” o direito de resposta, defesa ou presunção de inocência. Espera-se, com isso, que uma justiça seja feita por um meio que não aqueles que perpetuam opressões e violências de toda ordem ancoradas num suposto Estado de Direito.
No tribunal da militância, o Estado Democrático de Direito não passa de uma construção discursiva burguesa que serve ao privilégio da classe dominante, opressora e colonizadora. Dessa forma, do mero escárnio aos “exposed” das “black list”, a descrença nas instituições faz com que o desejo de justiça social e reparação histórica rivalize com práticas até certo ponto criminosas para fazer valer seus intentos (revolucionários?). Na instrumentalização cáustica de um “ódio do bem”, o assassinato de reputações muitas vezes vem sobre uma bandeira pedagógica: afirmam que ele serve para “inspirar”, “fazer repensar”, “desconstruir” pessoas que ainda insistem em suas práticas racistas, homofóbicas, machistas — embora muitas vezes o contorno do que exatamente sejam essas instâncias seja conceitualmente esvaziado quando tudo se coloca na conta do chamado “estrutural”. Nesse tipo de tribunal, cabe ao acusado (inocente ou não) construir as provas que o inocentam numa sessão que já o condenou/sentenciou previamente em nome de um tipo de essencialismo, afinal, “todo homem é um estuprador em potencial” (sic). Os saltos lógicos emergem.
Mas isso significa que as demandas não sejam, em muitos casos, legítimas e as ações não passem de um dispositivo de ressentimento? Por obviedade que não. Aqui o debate não é sobre forma, não sobre o mérito (quando há). É fato que a dita “cultura do cancelamento” apareça com um sintoma daquilo que constantemente é posto na esfera de uma sociedade que não considera, sobretudo, a voz das minorias. Há uma reação de quem historicamente foi silenciado em suas demandas e apagados em suas reivindicações. Por desconfiarem com boa dose da razão da ordem vigente — sobretudo materializada nas instâncias jurídica e políticas do país — procuram substituir determinados pilares do Estado Democrático (sobretudo os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência) por uma forma de “vendeta” calcada num moralismo persecutório e narcísico.
Liberdade de expressão e limites
É bem da verdade que não há direitos absolutos. A liberdade de expressão encontra seus limites quando o conteúdo de sua expressão incita violências e danos a terceiros, materializando pela fala e pelo que inspira, afetos de ódio. Fato que discursos de ódio atentam fundamentalmente contra a liberdade, ainda que afirmem partir do direito que ela supostamente confere. Ocorre, porém, que em nome de se buscar coibir esse tipo de discurso, determinados grupos — sobretudo do dito “progressismo” — não deixam de se valer de certos expedientes autoritários para inibir qualquer modalidade de crítica e contestação aos seus credos. A liberdade pautada na pluralidade de pensamentos e perspectivas de mundo é subtraída em nome daquilo que é “sacro” e “verdadeiro” — o que acredito e experiencio no meu eterno “campeonato de sofrimento”.
Nesse universo de “purificação das almas”, o mundo é imaginariamente regido por uma espécie de “disputa de desprivilégio”: quem “ganha” passa a ter o direito de exercer seu ressentimento extrapolando todas as fronteiras do que é justo e do que é meramente vingativo; ao passo que quem “perdeu” deve ser é relegado ao silenciamento de suas demandas ou ao cancelamento de suas pessoas. Um paradoxo, portanto, para com aquilo que costumam tachar em seus algozes históricos: um ditame sobre a subjetividade alheia. Nesse cenário posto, quem discorda merece a morte (ainda que na forma de Block ou campanhas de linchamento público). Afinal, o “herético é sempre o outro”, mesmo que seu “pecado” tenha sido se colocar criticamente contra aquilo que elegi como evangelho particular. Assim, colocar em xeque minhas pautas — que se confundem com minhas ações — é invalidar e silenciar minhas demandas, operando uma lógica colonialista, patriarcal, fascista… a lista é longa de adjetivações! O salto lógico opera aqui em toda a sua potência. Novamente, ou se ajoelha ao altar petrificado ou se é lançado no lago de fogo, enxofre e cancelamento.
A escuta só é um ato político quando ela se propõe a dialetizar. Não sendo, ela não passa de adesão cega sob o pretexto de que se não tens “lugar de fala” automaticamente tens cera no “buraco da escuta”, também. A clínica psicanalítica nos ensina que escutar, verdadeiramente, nunca é uma atitude absolutamente passiva e condescendente: ela implica cortes e pontuações necessárias. Mas não parece ser isso o que desejam aqueles que denunciam o epistemicídio colonial, mas são os primeiros a dizer que marcadores sociais são balizadores absolutos de qualquer forma de produção de saber.
Por fim, se advogar a favor do combate a opressões e pelo direito de minorias; combater o racismo, a homofobia, colocar em suspenso ditames coloniais de organizar politicamente a ciência só se é possível admitindo certas premissas dadas por uma militância, já perdemos nosso potencial de transformação da sociedade em um ambiente justo, igualitário e regido pelo bom senso e razão. Assassinamos assim o espaço da pluralidade, do livre debate de ideias e posições. Nesses casos, restariam-nos, então, apenas a ideologia e panfletagem com severas consequências pessoais e civilizacionais. Afinal, se não se curvar significa se igualar a todos os demais, um nazista confesso ou um trabalhador que fez um aleatório sinal de mãos poderia ser taxado como o mesmo supremacista branco. Nesse caso, esse último poderia, inclusive, vir a perder seu emprego e ter a sua vida transformada num martírio sem possibilidade de redenção. Poderiam, contudo, dizer que isso seria uma “exceção”, um “mal necessário”, uma “justiça kármica” pelo crime de pertencer a uma classe historicamente opressora. Mas profundamente, espero que exemplos como esse já não estejam acontecendo por aí…
Diego A. Moraes Carvalho é doutor em História Social e mestre em Ética e Filosofia Política. Professor do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia do IFG-Campus Goiânia e professor colaborador da Faculdade de História da UFG. É membro do Latesfip Cerrado (Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise do Centro Oeste-UnB) e coordenador do GEA-TCP (Grupo de Estudos Avançados em Teoria e Clínica Psicanalítica – GO). É colaborador do Jornal Opção.
À espera dos bárbaros
Konstantinos Kaváfis
— Que esperamos reunidos na ágora?
É que hoje os bárbaros chegam.
— Por que tanta abulia no Senado?
Por que assentam os senadores? Por que não ditam normas?
Porque os bárbaros chegam hoje.
Que normas vão editar os senadores?
Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.
— Por que o Autocrátor levantou-se tão cedo
e está sentado frente à Porta Nobre da cidade
posto em seu trono, portanto insígnias e coroa?
Porque os bárbaros chegam hoje.
E o Autocrátor espera receber
o seu chefe. Mais do que isto, predispôs
para ele o dom de um pergaminho. Ali
fez inscrever profusos títulos e nomes sonoros.
— Por que nossos dois cônsules e os pretores saíram
esta manhã com togas rubras, com finos bordados de agulha?
Por que essas braçadeiras que portam, pesadas de ametistas,
e os anéis dactílicos lampejando reflexos de esmeralda?
Por que ostentam hoje os cetros preciosos,
esplêndido lavor de cinzel, amálgama de ouro e prata?
Porque os bárbaros chegam hoje,
e toda essa parafernália deslumbra os bárbaros.
— Por que nossos bravos tributos não acodem
como sempre, a blasonar seu verbo, a perorar seus temas?
Porque os bárbaros chegam hoje,
e eles desprezam a oratória e a logorreia.
— Por que de repente essa angústia,
esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)
Por que rápidas se esvaziam ruas e praças
e os antes reunidos retornam atônitos às casas?
Porque a noite chegou e os bárbaros não vieram.
E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça
murmuram que não há mais bárbaros.
E nós, como vamos passar sem os bárbaros?
Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.
[Tradução de Haroldo de Campos]