Nas cartas, Elia Kazan revela como “refez” Marlon Brando, como descobriu James Dean, como percebeu o talento e o poder sexual de Paul Newman e conta sobre sua relação amorosa com Marilyn Monroe. Foto: Reprodução/Editora Knopf
Nas cartas, Elia Kazan revela como “refez” Marlon Brando, como descobriu James Dean, como percebeu o talento e o poder sexual de Paul Newman e conta sobre sua relação amorosa com Marilyn Monroe. Foto: Reprodução/Editora Knopf

Stanley Kubrick ousou dizer que Kazan era “o melhor diretor que temos na América, capaz de fazer milagres com os atores que utiliza”

O brasileiro Carlos Lacerda escreveu uma reportagem, detalhando a situação do movimento comunista no Brasil, e passou a ser considerado como “delator” pela esquerda — o que, de fato, não era. Ele inclusive havia comunicado ao partido que iria escrever o texto. De algum modo, Lacerda foi empurrado para a direita pela esquerda… e gostou. O diretor de cinema Elia Ka­zanjoglous, mais conhecido como Elia Kazan (1909-2003), nascido em Cons­tantinopla, depois de se filiar ao insignificante Partido Comunista dos Estados Unidos, decidiu “entregar” ex-companheiros de jornada.

A década de 1950, logo depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), revelou um mundo bipolar, uma disputa acirrada, em termos políticos, econômicos e militares, entre Estados Unidos e União Soviética. A situação praticamente exigia certo maniqueísmo: de um lado, aqueles que queriam o socialismo totalitário da URSS, mascarado pela defesa da igualdade entre os homens — velha, impossível e conservadora utopia, diria Isaiah Berlin —, e, de outro, os que propugnavam pela perspectiva liberal do capitalismo.

No país de Stálin, e mesmo no período mais liberal de Nikita Kruchev, o governo socialista prendia, torturava e matava adversários. Não havia respeito algum ao Judiciário, ou melhor, este obedecia ao Executivo, quer dizer, ao Partido Comunista. Nos Estados Unidos, apesar de certa pressão sobre os comunistas, o governante da circunstância não matava seus adversários.

Sob a Guerra Fria, período em que vozes alternativas tinham dificuldade para expor seu ponto de vista — mais na União Soviética do que nos Estados Unidos —, Elia Kazan, um dos maiores ci­neastas de todos os tempos, decidiu ficar ao lado da nação que o havia adotado e revelou os nomes dos que, no mundo da cultura, especialmente na área do cinema, conspiravam a favor do comunismo. Como a máquina de propaganda da esquerda era e é poderosa — porque até os inocentes-úteis trabalham a seu favor —, Kazan se tornou “o” delator, o mal encarnado. O superestimado Orson Welles disse: “Kazan trocou a alma por uma piscina”.

Marlon Brando, Julie Harris, Elia Kazan e James Dean | Foto: Reprodução

Na verdade, os nomes mencionados pelo criador do filme “Uma Rua Chamada Pecado” já eram conhecidos do Comitê de Inves­tigações de Atividades Antiame­ricanas. Eram comunistas notórios ou, então, base do Partido Co­munista — e quase todos conspirando contra os Estados Unidos. Alguns deles chegaram a roubar segredos americanos para passar aos soviéticos. Não seriam também dedos-duros?

O casal Julius e Ethel Ro­senberg, por exemplo, colaborou no furto dos segredos atômicos dos Estados Unidos e contribuiu para que a União Soviética fizesse a bomba atômica. Na época, os comunistas, com apoio de personalidades de Hollywood, fizeram um carnaval dos diabos — garantindo, contra as evidências, que os Ro­senberg eram inocentes. Não eram, é claro.

Mas, curiosamente, quem ficou com fama de delator? Elia Kazan, um dos mais injustiçados criadores artísticos do século 20. Felizmente, um cineasta igualmente importante, Stanley Kubrick, ousou dizer que Kazan era “o melhor diretor que temos na América, capaz de fazer milagres com os atores que utiliza”. Kubrick e outros críticos avaliam que Elia Kazan mudou o modo de interpretar e dirigir em Hollywood. Ele, que era homem de teatro, foi um dos que mais entenderam a potencialidade do cinema para “reconstruir” peças, romances e roteiros — tornando-o um “companheiro” e “rival” poderoso das outras artes. Aqueles que apoiaram regimes que mataram cerca de 30 milhões (União Soviética de Stálin) e 70 milhões de pessoas (China de Mao Tsé-tung) — e mesmo sabendo-se que a vida é o bem que efetivamente importa — ficaram “bem” na fita, como se diz.

Elia Kazan: um dos maiores diretores de cinema da história | Foto: Reprodução

Na quarta-feira, 16, o jornal “El Mundo” publicou uma resenha do livro de cartas do diretor turco-americano e o próprio título insiste no velho jogo da esquerda: “Elia Kazan — Cartas do gênio traiçoeiro”. O texto é de Pablo Scarpellini, correspondente do jornal espanhol em Los Angeles.

Scarpellini, num misto de resenha e reportagem, conta que, em 1999, quando foi concedido o Oscar a Elia Kazan, pelo conjunto da obra, houve uma revolta em Hollywood. Kirk Douglas não ficou em pé nem o aplaudiu. Outros, como Sean Penn (que talvez tenha uma vida mais desregrada do que a de Elia Kazan, mas é visto como um agente das “boas causas”), condenaram as relações do diretor com o macarthismo, com o senador republicano Joseph McCarthy. O diretor de “Vidas Amargas”, que contribuiu para a fama de Marlon Brando e James Dean, era, no dizer de seus críticos, um dos “caçadores de bruxas”… vermelhas. Meryl Streep e Warren Beatty, entre outros, defenderam Elia Kazan, sugerindo que se trata de um “mestre”, um “descobridor de talentos”. A sétima arte deve muito a Kazan, um dos principais responsáveis, com o Actors Studio (e mesmo antes), pela formação de atores como James Dean, Marlon Brando e Paul Newman. Ele levou o Oscar como diretor pelos filmes “A Luz É Para Todos” (com Gregory Peck), em 1948, e “O Sindicato de Ladrões” (com Marlon Brando), em 1955.

Elia Kazan e Marlon Brando: diretor e ator | Foto: Reprodução

O livro “The Selected Letters of Elia Kazan” (Knopf, 672 páginas) — começou a ser vendido nos Estados Unidos na terça-feira, 22 — contém 300 cartas (900 foram descartadas) e foi organizado pelo professor de literatura inglesa Albert J. Devlin, um especialista na obra do cineasta. O texto de Scarpellini não informa, mas Elia Kazan — que também escreveu bons romances (não faz feio se comparado aos livros medianos de John Steinbeck) e era um homem de vasta cultura —, se a tese de que existe autor no cinema for aceitável, é um dos poucos autores de fato do cinema americano.

As cartas revelam, registra Scarpellini, que admite a “genialidade” de Elia Kazan, “o homem que pôs no mapa” do cinema Marlon Brando e James Dean. Brando, que havia brilhado em “Uma Rua Chamado Pecado”, é visto como um ator não apropriado para “O Sindicato de Ladrões”. Numa carta ao roteirista Budd Schulberg, Elia Kazan comentou que Marlon Brando não era o ator adequado. Estava errado, é claro, Marlon Brando trabalhou com a excelência habitual e ganhou o Oscar. O diretor queria Paul New­man para o papel, sugere numa carta. A Schulberg, disse que Paul Newman, um homem bonito, sensível e másculo, “seria uma estrela”. Ele dizia ter um sexto sentido e saber mais sobre o mundo do cinema que qualquer outro. Mas há quem diga que o diretor usou o nome de Paul Newman única e exclusivamente para atrair Marlon Brando, que não queria fazer o filme, dada a semelhança da história com a própria história de Elia Kazan — a de delator.

As cartas revelam um homem contraditório, na opinião de Scarpellini. Ao mesmo tempo que era liberal, criticava o consumismo da sociedade americana. Lutou contra a censura e, mesmo assim, contribuiu, ao aderir ao macarthismo, para impedir que diretores e roteiristas obtivessem empregos. Numa carta a Charles K. Feldman, produtor de “Uma Rua Chamada Pecado” — filme baseado numa peça de Tennessee Williams —, Elia Kazan defende, de maneira apaixonada, “as cenas mais arriscadas [pesadas] da película protagonizada por Brando e Vivien Leigh”, que faz a estupenda Blanche Dubois. O filme “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, é muito superior ao livro que lhe serviu de base, escrito por Mario Puzo (autor do roteiro). “Uma Rua Chamada Pecado” rivaliza-se com a peça de Tennessee Williams. Não ganha nem perde. Empata, porque torna a peça vivíssima, de um frescor raro. O filme é de 1951 e o moralismo americano estava aceso. Na carta, o diretor afirma que não cederia em nada que “considerasse essencial à honestidade da história” e menciona a intensidade da obra de Tennessee Williams. O perfil promíscuo de Blanche e a violência de Stanley Kowalski (Marlon Brando) são essenciais à trama. “Corrigir” o comportamento das personagens reduziria o impacto da história, sua sensualidade intensa e à flor da pele.

Marilyn Monroe: teve um caso com o diretor Elia Kazan, que avalia que, apesar de ser uma mulher bela e interessante, não era lá essas coisas na cama. Foto: Wikipédia Commns
Marilyn Monroe: teve um caso com o diretor Elia Kazan, que avalia que, apesar de ser uma mulher bela e interessante, não
era lá essas coisas na cama. Foto: Wikipédia Commns

O artista define-se por sua obra, que é o que, ao final, fica, se ficar. Mas é inescapável a fofoca sobre a vida pessoal, até porque é uma faceta que, eventualmente, contribui para o entendimento da obra e do próprio criador. As cartas, algumas delas enviadas à mulher, Molly Thatcher, revelam um Elia Kazan sexualmente infiel, quem sabe um fauno. Uma de suas conquistas, a bela, sensual e ainda muito jovem Marilyn Monroe, é vista como “comovedora e patética órfã”. No início, a atriz não o interessou. Mais tarde, apresentou-a ao dramaturgo Arthur Miller. Os dois se casaram e, depois de uma relação turbulenta, se separaram. Conta-se que os chifres de Arthur Miller cresciam sem parar e doíam na alma. Mas talvez seja o homem que ela mais tenha admirado. “Era talentosa, divertida, vulnerável, sem esperança. Não era mentirosa, nem viciada, nem maliciosa. Era duro escutar sua história de órfã. Era como todas as heroínas de Charlie Chaplin numa só”, escreve Elia Kazan. Ao se explicar à mulher, Elia Kazan não se arrepende do caso que teve com a atriz, mas sente-se orgulhoso de ter lhe dado esperança e de haver compartilhado com ela o que considera como uma “experiência humana única”. Ao menos na experiência do diretor, Marilyn Monroe não era um sucesso na cama. Ele recomendou que Tennessee Williams a conhecesse. O dramaturgo também ficou comovido com sua história.

Na carta em que confessa a traição, Elia Kazan admite que pode trair a mulher outras vezes. Mas ressalva: “Espero que não”. Conta que resistiu a outras investidas e “deixou passar algumas oportunidades”. Mas traiu-a, sim, porque era praticamente impossível escapar ao assédio feminino. Mulheres às vezes não aceitam ser recusadas. Como, de resto, todos nós.

Nas cartas, Elia Kazan mostra-se impressionado com Paul Newman — por seu “poder se­xual” — e cita Warren Beatty, um inveterado conquistador de mulheres, belas mulheres, como um don juan. Beatty é o astro de “Clamor do Sexo”, de 1961, ao lado de Natalie Wood.

As cartas revelam que Elia Kazan mantinha uma relação de amor e ódio com o mundo de Hollywood. Numa carta para sua mulher, disse que “odiava” de maneira intensa o mundinho dos atores, diretores, roteiristas e produtores. “É como uma tumba, um depósito de cadáveres”, resumiu. “Exceto que é tudo muito elegante, cheio de pessoas realmente interessantes, todas elas em várias fases de decomposição, ainda que não saibam.” Mesmo com certo desconforto, Elia Kazan usou bem as estruturas de Hollywood para fazer grandes filmes, como “O Que a Carne Herda” (1949), “Pânico nas Ruas” (1950.“Um filme tenso e de alta voltagem”, escreveu a crítica americana Pauline Kael), “Uma Rua Chamado Pecado” (1951. “Eu não quero realismo… quero magia!”, diz Blanche. Pauline Kael diz que Marlon Brando e Vivien Leigh são responsáveis pelas “duas maiores interpretações já vistas no cinema” e o telespectador ouve “um dos melhores diálogos já escritos por um americano”), “O Sindicato de Ladrões” (1954. “Um dos mais vigorosos filmes da década de 50”, anota Pauline Kael), “Vidas Amargas” (1955. “Filme surpreendentemente tenso, de uma poesia febril”, afirma Pauline Kael. “Talvez seu pai”, Raymond Massey, “não o ame, mas a câmera sim, e supõe-se que nós também”, escreve Pauline Kael sobre James Dean), “Boneca de Carne” (1956, baseado em comédia de Tennessee Williams), “Um Rosto na Mul­tidão” (1957), “Clamor de Sexo” (1961), “A Terra do Sonho Dis­tante” (sua autobiografia, de 1963), “Movidos pelo Ódio” (1969) e “O Último Magnata” (1976, roteiro de Harold Pinter para o romance inacabado de F. Scott Fitzgerald).

Marlon Brando, James Dean e Paul Newman: atores que deviam muito de sua formação artística ao diretor de cinema Elia Kazan. Fotos: Wikipédia Commns, Jamesdean Official Bogspot e eBay
Marlon Brando, James Dean e Paul Newman: atores que deviam muito de sua formação artística ao diretor de cinema Elia Kazan. Fotos: Wikipédia Commns, Jamesdean Official Bogspot e eBay

Aos 23 anos, Elia Kazan dizia ter “uma insaciável sede de co­nhecimentos”. Numa missiva es­crita 22 anos mais tarde, escreveu: “Quando era jovem tinha medo de que alguém soubesse mais do que eu sobre alguma coisa em particular, por isso tratei de saber tudo de tudo”. Ele se sentia inseguro, acreditava que, intelectualmente, não estava à altura dos americanos cultos. Scarperllini especula: é provável que, por não se sentir tão preparado quanto os integrantes da elite americana, decidiu adaptar obras de escritores importantes, como John Steinbeck e Tennessee Williams.

Elia Kazan e John Steinbeck apostaram que James Dean, quando este era desconhecido, seria um dos atores mais talentosos de sua geração. O diretor disse a John Steinbeck que não havia sido fácil encontrar o ator certo para protagonizar “Vidas Amargas”. “Obser­vei muitos garotos até me decidir por Jimmy Dean. Não tem a estatura de Brando, mas é muito mais jovem e é muito interessante. É excêntrico. É um pouco informal, mas é realmente um bom ator.” Para o papel de Abra, não pensou imediatamente em Julie Harris, provavelmente porque não a considerava muito jovem para o papel. Mas acabou indicando-a, porque “ela e Jimmy Dean são interessantes de se ver juntos. Parecem gente normal, não atores. E Dean tem a vantagem de ainda não ter sido visto na tela”. A química entre os atores funcionou bem e “Vidas Amargas” é um grande filme, maior, talvez, que a história de John Steinbeck. Não torna o livro esquecível, mas o fortalece, com suas imagens fortes e, como queria Elia Kazan, quase “naturais”. O filme tem certo frescor, e talvez não seja apenas porque James Dean morreu jovem e, com isto, seus três filmes tenham se tornado objeto de culto. É como se, com a morte do ator, os filmes tivessem ficado “vivos”. Mas a mão segura de Elia Kazan, orientando os atores, precisa ser notada neste belo clássico.