A direita venceu a esquerda no campo de batalha, entre as décadas de 1960 e 1970, mas perdeu a guerra da historiografia. Mas o grande derrotado talvez seja o Cabo Anselmo

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Olavo de Carvalho, filósofo: “Não encontro um só ato do qual ele [Cabo Anselmo] devesse se envergonhar”

É possível que, com o tempo, José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo — que, marinheiro, não era cabo —, deixe de ser vilão e se torne mais uma das vítimas da ditadura. É provável que, para que isto aconteça, tenha de morrer e, aos poucos, ser esquecido. A esquerda o transformou no “excomungado” — aquele que não merece nenhum perdão ou concessão. Motivo: preso e torturado, em 1971, trocou de lado e se tornou aliado do delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos hunos da ditadura civil-militar. Os governos decidiram não anistiá-lo. Na verdade, militantes políticos usam o Estado para aplicar uma espécie de “linha justa” — ideológica e partidária. Se todos foram “perdoados”, inclusive os mandatários — os chefões de Sérgio Fleury e do Major Curió —, por que não anistiar a arraia miúda? Vingança — e não justiça — é o que se comete contra o homem sem rosto.

Ao lado de Sérgio Fleury, o Cabo Anselmo ajudou a mapear parte da esquerda e contribuiu para que alguns militantes fossem presos e mortos. Outros fizeram o mesmo, mas sua história é a mais emblemática. Agora, o próprio José Anselmo dos Santos decidiu escrever sua história. O livro “Cabo Anselmo — Minha Verdade: Autobiografia” (Matrix, 255 páginas), com prefácio do filósofo Olavo Carvalho, acaba de ser lançado.

“O autor deste livro é, em toda a força do termo, uma não pessoa”, escreve Olavo de Carvalho. O filósofo acrescenta que “há cinco décadas” o Cabo Anselmo “leva a existência fantasmal de uma hipótese não comprovada. Sua inexistência é dupla: negada igualmente por aqueles a quem combateu e por aqueles a quem ajudou”.

Pode-se dizer que Olavo de Carvalho exagera num trecho de seu excelente prefácio? Leia: “Examinan­do a biografia do homem, não encontro um só ato do qual ele devesse se envergonhar a ponto de desejar mantê-lo oculto. Em todos os passos da sua carreira ele agiu conforme a sua consciência”. No livro, se a história for verdadeira, o Cabo Anselmo mostra-se um esquerdista relutante, mais próximo do nacionalismo de Leonel Brizola do que do comunismo de Carlos Marighella. Depois de ser torturado, aderiu aos militares por convicção. Por uma questão de consciência.

Em 1971, por mais que alguns apresentem uma batalha entre vilões, os militares, e mocinhos, os guerrilheiros, o que havia era uma guerra entre duas correntes que queriam manter a ditadura e, a outra, implantar outra ditadura. Pego no meio da guerra, o Cabo Anselmo trocou de lado. “Decidi colaborar, depois de marcado pela tortura no pau de arara, pelos choques e pelas porradas, mas muito mais por minha consciência”, sumariza o ex-marinheiro. O que fez é moralmente condenável? Pode ser. O que dizer, porém, dos homens pagos pelo Estado, como Carlos Lamarca e tantos outros, que mudaram de lado? É um assunto que poucos, pouquíssimos, querem discutir. O Cabo Anselmo talvez seja o bode expiatório de todos — tanto na direita quanto na esquerda. Ninguém o quer, ninguém o chama de Baudelaire.

imprensa-livroNo prefácio, Olavo de Carvalho lembra uma entrevista que o Cabo Anselmo concedeu ao Canal Livre, da Bandeirantes. Boris Casoy, um jornalista de direita, quis saber se o ex-marinheiro “se considerava um traidor”. “Ele aludia ao fato de que o personagem abandonara um grupo terrorista para transformar-se em informante da polícia. Para grande surpresa, o entrevista respondeu que sim, que era um traidor, que traíra seu juramento às Forças Armadas para aderir a uma organização revolucionária. Para a classe jornalística brasileira em peso, o compromisso de um soldado para com as Forças Armadas não significa nada. Nenhum jornalista brasileiro chama de traidor o capitão Lamarca, que desertou do Exército levando armas roubadas, para matar seus ex-companheiros de farda. Traidor é Anselmo, que se voltou contra a guerrilha após tê-la servido. Anselmo desmontou num instante a armadilha semântica, mostrando que existe outra escala de valores além daquela que o jornalismo brasileiro, com ares da maior inocência, vende como única, universal e obrigatória”, escreve o filósofo.

A esquerda espalhou que o Cabo Anselmo trabalhava para a CIA já em 1964. Integrantes moderados da esquerda, como Antonio Duarte Santos — irmão de José Duarte, que mora em Goiânia e é citado no livro —, asseguram que o ex-marinheiro não era infiltrado em 1964 e que sua “conversão” se deu mesmo em 1971.

Além da “traição” e das delações, a esquerda não “perdoa” o fato de o Cabo Anselmo ter entregue Soledad Barret Viedma, sua namorada, que estava “grávida”, aos chacais de Sérgio Fleury. No livro, Anselmo afirma que os esquerdistas que foram executados em Pernambuco, integrantes da VPR, planejavam justiçá-lo. O que é provável. O ex-marinheiro sublinha que pediu ao delegado que não matasse a jovem e deixasse que escapasse para Cuba. Quando ficou sabendo da morte de Soledad, cobrou de Fleury, que o estapeou. O Cabo Anselmo, baseado no depoimento de um irmão de Soledad, Jorge Barret — considerado ao jornalista Aluizio Palmar —, sustenta que ela não estava grávida, pois “usava DIU”. Quem estava grávida era a guerrilheira Pauline Reichstul.

Por que as opiniões do Cabo Anselmo, por idiossincráticas que possam ser, não podem ser incorporadas pela historiografia do período e por que o país não pode anistiá-lo? Fica-se com a impressão que a ditadura é menos pior do que o ex-marinheiro — quando, na verdade, ele é uma de suas vítimas. Os historiadores devem incorporar as versões do ex-militante da esquerda ainda que como problemas ou contrapontos.