Manuel Castells: IA e redes sociais precisam de regulação para reduzir efeito destrutivo

28 abril 2024 às 00h00

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Tecnicamente, digamos assim, o espanhol Manuel Castells é sociólogo. Mas deveria ser apontado como filósofo. Porque trata-se de um notável intérprete das sociedades e ideários do mundo moderno.
No fim de março, Manuel Castells concedeu uma entrevista ao repórter Luiz Paulo Souza, da revista “Veja” — publicada sob o título de “É um momento sombrio”. De fato, a barbárie está dando contornos à civilização contemporânea. Estranha mas verdadeiramente.
Manuel Castells é professor na Universidade Aberta da Catalunha, na Espanha, e da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos. Diria que, dada sua importância, é um mestre global. Um scholar que pensa as aldeias — à Púchkin e Tolstói — para entender e explicar o universal. Hoje, dada a força da comunicação digital e da globalização comercial, o mundo é cada mais parecido, ainda que não tenha perdido sua diversidade.
O livro mais conhecido de Manuel Castells é “A Sociedade em Rede” — uma obra tão obrigatória quanto, por assim dizer, “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, e “Os Donos do Poder”, de Raymundo Faoro. O mais recente é “Testimonio — Viviendo Historia”, um mergulho, a partir de sua trajetória pessoal, nos acontecimentos de Maio de 1968 (que, a rigor, não foi apenas francês). Brevemente, vai lançar o livro “A Sociedade Digital”, no qual esmiuça os tempos atuais.

Ao acabar “com o monopólio do poder da comunicação”, a internet criou um mundo “novo”. Mas, ressalva Manuel Castells, na entrevista à publicação da Editora Abril, “o problema é que a” recente “livre expressão cheia de contradições e conflitos não segue as normas de comportamento que gostaríamos. Quais sejam: educação, respeito e construção”. Vive-se a e na República dos Destroços.
Porém, enfatiza o pesquisador, “isso não é um problema das redes sociais, mas sim de quem somos como humanos”. Facebook, X e Instagram “centralizam” as opiniões das pessoas, como se fosse uma grande central de monitoramento de tudo — até do lixo verbal —, mas não são autores do que é dito. São corresponsáveis pela barbárie, mas os usuários das redes sociais são agentes, e não vítimas inermes.
Há 5,4 bilhões de usuários da internet em todo o mundo e, assinala Manuel Castells, “uma boa parcela dessas pessoas é sexista, racista, xenófoba, fanática religiosa, nacionalista extremista e propensa à violência. A internet é nosso espelho”.

Liberdade de expressão e do lucro
A liberdade na internet, com suas redes sociais, é abrangente. “Mas o conteúdo da liberdade pode não ser o que esperávamos. Adolf Hitler, Donald Trump e Jair Bolsonaro foram eleitos democraticamente”, frisa Manuel Castells. O americano e brasileiro existem não porque se inventaram do nada, e sim porque souberam conectar-se com um público que já existia, e talvez estivesse apenas ligeiramente “adormecido”. Tal público já circulava pelas redes sociais — em busca de “encrenca” e os “marqueteiros” dos políticos da terra de Abraham Lincoln e de Juscelino Kubitschek só ajustaram o discurso para atrai-los e torná-los seguidores.
Se a internet é incontornável, o que fazer com a era da brutalidade — tão habilmente “apreendida” e “usada” pela extrema-direita? “Só podemos tentar regular o potencial uso negativo dessas tecnologias extraordinárias”, sublinha Manuel Castells. O sociólogo não cita o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Mas é possível sugerir que, em vez de caçar e cassar a liberdade de expressão — por exemplo, do X de Elon “Ripley” Musk —, o magistrado opera para fortalecê-la. Para torná-la mais democrática e civilizada.
A trajetória de Elon Musk, inclusive no relacionamento com seus funcionários e executivos, permite supor que, como empresário — com negócios vastos nas redes sociais —, não tem preocupação alguma com liberdade de expressão. A extrema-ignorantsia não quer perceber, mas o bilionário pensa exclusivamente em liberdade para a reprodução facilitada de seu capital. Ele pode até representar acionistas das empresas que criou, mas nada tem a ver com o público em geral.

Aquele que acredita no sul-africano como defensor da liberdade de expressão tende a crer, por certo, em contos da carochinha e, até, na existência do Curupira. A regulação das redes sociais, para conter os excessos anti-civilização e anti-democracia, pode impactar os negócios de Elon Musk e outros. É isto o fulcro da questão. A posição do Brasil pode acabar influenciando outros países. Ressalte-se que o dono da Tesla não ousou enfrentar a China e, quando chegar o momento, não vai enfrentar a Alemanha, a França, o Canadá e a Austrália (que são rigorosos com as redes sociais e sites de busca).
É evidente que a regulação não deve ser ideológica e, por isso, deve conter os, digamos, “excrementos” tanto da direita quanto da esquerda. Mas é preciso admitir que quem mais piora a internet é mesmo a direita. A esquerda é bem menos extremista.
Internet aumenta a sociabilidade
“Veja” afirma que estudos “mostram” que “as pessoas” estão “mais ansiosas, tristes e solitárias”. A revista sugere que a internet tem culpa no cartório.
Manuel Castells discorda: “Está provado que a internet aumenta a sociabilidade e a satisfação com a vida para a maioria da população. Mas as pessoas estão de fato ansiosas e tristes — mas não solitárias — por causa do massivo deterioramento das condições de vida na maior parte dos países”.

Nem tudo é culpa da internet, que representa uma revolução na comunicação e no conhecimento. Ficou mais fácil pesquisar, pois há farto material aberto à consulta. Trata-se de um mundo novo e positivo.
A polarização extrema é prejudicial. Porém, diz Manuel Castells, “a maior parte das interações não é sobre política e ideologia. Na verdade, elas representam menos de 20% das conversas. As pessoas falam mais sobre suas vidas, músicas, sonhos e tristezas”.
De acordo com Manuel Castells, “os grupos ideológicos extremos alimentam o conflito entre si e tornam seus debates mais visíveis. Eles moldam a conversa em torno da violência e do confronto”. A “brabeza” — a força — substitui os argumentos e trava o diálogo entre diferentes.
Por que, num mundo no qual a ciência é forte e respeitada, prevalece as fake news? Por causa da polarização e da violência instrumental. “Porque os humanos tendem a acreditar no que querem e rejeitam aquilo com que não concordam. Procuramos notícias ou fake news não para nos informar, mas para nos reafirmar”, anota Manuel Castells.
Sobre a inteligência artificial, Manuel Castells postula que “não opera em um vácuo”. Ou seja, “depende de bases de dados abertas, e as bases existentes são tendenciosas”.
O sociólogo afirma que, apesar disso, “já existem algumas empresas, como a Anthropic, que desenvolvem IAs cujas bases de dados consultadas foram tratadas de forma ética para evitar esse tipo de problema”.
Manuel Castells não cita o caso, mas, há pouco tempo, uma pesquisa feita pelo ChatGPT, da OpenAI, usou dados do jornal “New York Times” sem mencionar a fonte. Para piorar, deturpou a qualidade jornalística da publicação americana. Há erros no resultado da pesquisa que não constam no original.
Manuel Castells diz que “a regulamentação” tanto das redes sociais quanto da inteligência artificial “é absolutamente necessária. É como uma bomba atômica. Simplesmente não dá para confiar apenas nos humanos”. O sociólogo está ajudando o governo da Espanha no estabelecimento de uma regulação satisfatória para a sociedade. Uma rede de proteção criada pela sociedade e pelo Estado — não pelas empresas.
O mundo atual é visto com preocupação por Manuel Castells. “Estamos em um momento sombrio da história, porque nosso superdesenvolvimento tecnológico está em contradição com nosso subdesenvolvimento moral e político”.
Novo sistema geopolítico
Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, “o” Ocidente, “representam apenas 20% da população mundial e 40% do PIB global. O resto do mundo está dividido em Ásia, Oriente Médio e América Latina”.
Os países que escaparam à dominação das potências globais “concordam em não se curvar ao velho monopólio”. Há, pois, um novo sistema geopolítico.
Manuel Castells menciona a Rússia, que ressurge como potência, por causa do arsenal nuclear — mas também como produtora de bens cruciais para a Europa, como gás e alimentos —, porém deixa de citar a China.
É provável que, ao mencionar a Ásia, esteja falando do país do presidente Xi Jinping. A China é um player que, comendo pelas beiradas, está aumentando sua influência financeira — mais tarde, tende a ser política — em todo o mundo.
Por isso é estranho que a “Veja” e Manuel Castells não tenham ressaltado seu novo papel global. O crescimento econômico de vários países, como o Brasil, depende, em larga medida, do crescimento da economia da nação do artista plástico Ai Weiwei.
Há uma na guerra América Latina que, ainda que não seja silenciosa, não é apresentada como tal. “Há as guerras do narcotráfico em todos os países. No México, 250 mil pessoas foram mortas ou desapareceram nos últimos 20 anos.”
Mostrando-se bem-informado, Manuel Castells relata que o Brasil “também está envolto em gangues. O Brasil é um escândalo de desigualdade”.
Citando o ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso (vivíssimo aos 92 anos), o intelectual hispânico enfatiza que o país de Graciliano Ramos não é pobre — é injusto.
O mestre da Espanha nota que o presidente Lula da Silva está sob cerco das elites — fortemente representadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Postulo a mesma coisa: para o governo do PT repassar 1 bilhão em assistência para os pobres terá de repassar 30 bilhões para os ricos. É uma “troca” meio faustiana.
Crime organizado e o governo federal

Quanto ao crime organizado, apresento uma breve discordância em relação ao que sugere Manuel Castells (a bem da verdade, discute pouco o assunto). As facções criminosas, como Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho — além das demais —, não derivam necessariamente de problemas sociais. São organizações modernas, altamente articuladas militar e empresarialmente — inclusive com empreendimentos legais, com o objetivo de lavar os milhões amealhados —, e lideradas por executivos mafiosos.
O PCC e o CV são máfias patropis. Nada ficam a dever — exceto no glamour? — às máfias italianas Camorra, Cosa Nostra, ’Ndrangheta e Sacra Corona Unita. Como as quadrilhas da terra de Leonardo Sciascia, o PCC internacionalizou-se.
Observe-se que dois governadores — Ronaldo Caiado, de Goiás, e Tarcísio de Freitas, de São Paulo — são muito populares porque combatem o crime organizado com rigor e eficiência (no caso de Goiás, há uma rede de proteção social aos pobres que aproxima o gestor estadual, um liberal, da socialdemocracia europeia).
Se acolher o pensamento de setores da universidade — de que a criminalidade deriva talvez “unicamente” das desigualdades sociais —, Lula da Silva poderá enterrar seu projeto de reeleição. A sociedade, mais do que a imprensa e a esquerda, está “sentindo” na pele a potência ameaçadora do crime organizado (traficantes, milicianos, assaltantes de bancos).
Lula da Silva, dada sua experiência política e percepção aguçada, certamente está de olho nas pesquisas. Não deve, claro, perder sua visão humanista, mas, se não criar uma política de combate mais eficiente ao crime organizado — com o uso de inteligência e confronto direto —, pode acabar sendo derrotado em outubro de 2026. A direita parece mais perceptiva aos clamores da sociedade, notadamente daqueles que não moram em condomínios com muros altos e segurança privada. O petista-chefe precisa observar, com distanciamento crítico, o modelo de segurança de alguns Estados.
Ao final da entrevista, o repórter pergunta se há “esperança” no quase-Hades contemporâneo. Manuel Castells diz que “sim”. “Nós podemos lutar e usar nosso conhecimento e nossa vontade para criar um mundo melhor. Não podemos perder a esperança. Se o fizermos, não haverá salvação possível”. Discordar quem há de?