Disco de Fernando Perillo conecta amor desencantado de Marcos Caiado ao amor lírico de Chaul
11 março 2017 às 10h38
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O CD “Rosa Blanca” contém a excelência da voz multifacetada de Fernando Perillo e a poesia sofisticada de Marcos Caiado e Nasr Chaul
Fernando Perillo é um cantor e intérprete poderoso. Cantor e intérprete são diferentes? Às vezes, sim. Há cantores que, excelentes, reproduzem com extrema fidelidade a interpretação original, pouco acrescentando como intérpretes. Os verdadeiros intérpretes, mesmo não abolindo a estrutura básica das músicas, conseguem sugerir, ao cantá-las, que estão participando de um processo de reinvenção. Elis Regina e Elza Soares são, a um só tempo, cantoras e intérpretes. São originais.
Fernando Perillo integra o seleto clube dos cantores-intérpretes. No magnífico disco “Rosa Blanca”, apropria-se de determinadas letras, transformando-as em músicas únicas, e é capaz de cantar a partir de textos díspares de Nasr Chaul e Marcos Caiado com extrema felicidade e delicadeza, que não exclui nem mesmo uma certa brutalidade sincera — a mentira é mais delicada do que a verdade — da estupenda poesia de Marcos Caiado. Chaul é mais lírico, mais crente na possibilidade e na durabilidade do amor. O que, claro, não é defeito. Seria se o compositor cedesse à pieguice. Cede, isto sim, ao belo, à sensibilidade às vezes próxima do brejeiro. Sua sofisticação poética, sua fé no humano sem panglossianismo, é que não permite que a música, sua poesia, caia no simplório, no excesso do puramente romântico. O amor em Marcos Caiado é desencantado, distanciado, o que não quer dizer asséptico. Não é o amor visto de longe. Trata-se de o amor vivenciado, visceral, por isso cético.
O cantor perceptivo, quase sempre com ouvido atento, ainda que não relativo ou absoluto, usa a voz como quer, ao interpretar estilos de música e de composição díspares. Fernando Perillo acerta ao cantar tanto o lirismo de Chaul quanto o desencantamento sardônico de Marcos Caiado. Preservando a identidade criadora de ambos e acrescentando, com sua esplêndida voz, de uma maleabilidade incrível, sua contribuição decisiva. Depois de sua interpretação, o que se tem são duas artes numa só.
Notas ao vento
Ao colocar música na letra “Notas ao vento” — aparentemente um poema —, Fernando Perillo consegue captar seu ceticismo. Cantando num tom melancólico, a partir de um texto belo e de um realismo que chega a ser cruel, o artista acerta o ponto. Com uma voz mais desolada e suave, como se estivesse quase desaparecendo ou morrendo (como o amor), conecta-se, de maneira precisa, àquilo que o poeta Marcos Caiado está sugerindo. O escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) escreveu, em “A Sonata a Kreutzer”: “Dizer que a gente vai amar uma pessoa a vida toda é como dizer que uma vela continuará a queimar enquanto vivermos”.
“Há muito tempo que o amor/deixou de ser amor//No estacionamento da vida/perdeu a hora e a saída/foi dormir de mau humor”, diz a música. É um retrato do amor que nasceu como amor, mas morreu, no estacionamento da vida. Perdeu até “a alegria da cor”. No final, o que se tornou? “100 gramas de chouriço numa caixa de isopor.” Trata-se de uma música descarnada, sem discurso. Fica-se a pensar: como pode uma música sobre a decadência do amor — que, mais do que a sagração dos corpos, é a sagração das almas — ser tão bela, tanto como música como quanto letra e poesia? Difícil explicar. Mas é provável que só a beleza, que também pode ser triste e dolorosa, pode salvar o mundo — como disse Tzvetan Todorov (1939-2017) citando Dostoiévski (o prosador que, do monturo humano, fez literatura de primeira linha) no livro “A Beleza Salvará o Mundo — Wilde, Rilke e Tsvetaeva: As Aventuras do Absoluto” (Difel, 350 páginas, tradução de Caio Meira).
Recomenda-se que, depois de ouvir uma ou mais vezes “Notas ao vento”, escute-se “O bonde da Lapa” (um contraponto cético para “O bonde de São Januário”, de Wilson Batista e Ataulfo Alves). Há o mesmo desencanto, mas o tom é mais empático, embora pareça um fado (que ficaria muito bem na voz de uma Mariza, a cantora portuguesa; aliás, é provável que um espetáculo de Fernando Perillo faria sucesso em Portugal), com ótimos versos, como “depois foi sambar com a Lua/numa rua de Vila Isabel” (tão belo quanto os versos de Orestes Barbosa em “Chão de Estrelas”: “Mas a lua furando nosso zinco/Salpicava de estrelas nosso chão/Tu pisavas nos astros distraída”. Não à toa deslumbrou o poeta Manuel Bandeira). Na sequência, assinala: “Sucumbiu em Piedade/Acordou no meio do Céu/cantando pra toda a cidade/um samba de Noel”. O fecho da música repisa o tema basilar de Marcos Caiado: “O amor é uma mentira/mas convém acreditar/é o amor que me inspira/nesse samba pra Iaiá”. O amor, se inspira, mesmo sendo mentira, não é descartável. Quando se trata de um mestre na manipulação das palavras há máscaras nas verdades e verdades nas máscaras. Fernando Perillo interpreta com primor, e com excelente acompanhamento musical, o ceticismo do compositor — dando-lhe um toque de humor, ainda que sombrio. A sutileza do poeta, com sua linguagem enviesada, que diz as coisas pelas pontas, como se contraditasse as contradições, é captada à perfeição pelo cantor.
Em “Doggy”, parceria de Fernando Perillo, Chaul e Marcos Caiado, há um cruzamento de nuances, com a prevalência, aparentemente, da pegada do terceiro, a respeito do amor, mesmo quando, agora, se pareça ter crença no amor. Há uma ponta de ironia, ainda que fina, quase imperceptível. É uma música sobre as diferenças entre as pessoas que, ao menos de um lado, não elimina o amor. “Ainda que eu mude de cidade/de país e de opinião/que eu mude minha personalidade/de partido e de religião/o que eu sinto por você/não muda/eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu te amo…”. O que indica a celebração do amor? Que o sentimento está acima das ideologias, daí sua energia vital e caráter, quem sabe, desmoralizador (quem ama não se importa, em geral, em desmoralizar-se). “Ainda que eu viva muitos anos/perdido em total solidão/se a vida sabotar os meus enganos/pedir pra esquecer tudo que fomos/eu direi: vida, não tem como!/Eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu te amo”. Com sua força irracional, retirada quiçá da paixão, o amor pode ser prisão e libertação — sugere-se. “Mas se você estalar os dedos//eu volto inteiro/ao ponto que paramos/Eu te amo.” Em “20 centavos” — como se dissesse: “Não vale nada” — se assinala: “O amor quando desanda/é um urso panda no deserto”.
“Você sumiu” é pura celebração da palavra, com Fernando Perillo e Marcos Caiado em estado de graça. Vale a transcrição completa: “Ah! O amor/ora fascina/ora facínora/beija na escada/esfola na esquina//Ontem maracujá/Hoje anfetamina/Ah! O amor/um dia rima/no outro, esgrima//Você disse some/eu somei/eu disse some/você sumiu”. É uma delícia a dança das palavras, o jogo dos contrários que atritam e se complementam. Mas o que escrevo não é capaz de dizer como Fernando Perillo interpreta a graça deste texto com agilidade, captando seu ritmo com mestria. É preciso ouvir a música.
Invenção do amor
Uma das mais belas canções do disco é “A invenção do amor”, de Fernando Perillo e Chaul, com o piano preciso de Ricardo Leão, pontuando o romantismo digamos ficcional da música. “Eu inventei você pra mim” é o início para a conclusão de “esse amor inventou nós dois”. “Eu criei um amor maior/tão perfeito que é virtual/tão intenso que é real.” O amor é real, mas também é um exercício de imaginação — o que os dois bardos dizem muito bem.
O disco de Fernando Perillo canta e descanta o amor. Como se dissesse que o amor é um romance tradicional — com início, meio e fim —, mas nem sempre. Ou que o amor é uma decantação da paixão (possivelmente, a paixão é o calcanhar de aquiles do amor). O cantor e o compositor Chaul — aliás, vale sugerir que, no caso, Fernando Perillo não é apenas cantor, é praticamente compositor, o inventor da música, não da letra — mantêm uma das parcerias mais bem-sucedidas da música patropi. Fernando Perillo consegue dar interpretações leves para composições fortes de Chaul. “Zumbi”, de uma beleza ferina, anota: “Minha vida sem você/liberdade, escravidão/o cerrado sem ipê/andorinha sem verão”. Imagine o cerrado sem ipê e uma andorinha sem verão. Triste, não? Mas a beleza da música é o contraponto de que a arte recria a vida, torna-a menos dolorosa e, daí, mais suportável e, mesmo, bonita.
Não deixa de ser curioso que Fernando Perillo capte bem o tom narrativo das composições de Chaul. Porém, acertadamente, não adota o tom declamativo, nem o tom de lamentação explícita. Se fizesse isto, tornaria algumas delas músicas exclusivamente caipiras, e não músicas populares (de elaboração culta) que flertam com o tom caipira, num registro poético não avesso à celebração nostálgica de um mundo que está desaparecendo — como na bela “As fronteiras do amor”. “Meu agreste e minha paz/entre os ermos e gerais/do coração//Da Bahia até Goiás/Tocantins, Minas Gerais/atravessei//As fronteiras do amor/onde a vida desandou/deixei pra trás. (…) A esperança eu não perdi//Pela estrada eu aprendi/que não tem pra onde ir/se não tem pra quem voltar”. O sertão não tem fim. Mesmo quando está desaparecendo permanece dentro do poeta e de quem o canta e de quem lê o poema e ouve a música. Guimarães Rosa, o autor do romance “Grande Sertão: Veredas”, era poeta e, por certo, aprovaria a “revivência” do sertão na música de Fernando Perillo e Chaul. Mário de Andrade, estudioso de música, da popular à erudita, possivelmente aprovaria a reconstrução do sertão, de uma vida que é complexa na sua simplicidade aparente, por meio do texto e da fala.
“Rosa blanca”, poema do cubano José Martí que dá título ao disco, é interpretada com certa candura por Fernando Perillo e Nila Branco.
Um disco funciona quando há interação entre cantor, letristas e músicos. Por isso vale o registro do nome de todos os músicos que contribuem para a beleza artística do CD de Fernando Perillo: Paulo Calasans (piano, rhodes e teclados), Jesse Sadock (trompete), Marco Vasconcellos (violão, guitarra e vocal), Rogério Caetano (violão), Milton Guedes (gaita e vocal), Marcelo Caldi (acordeon), Rodrigo Tavares (piano, rhodes e teclados), Ricardo Leão (piano), Marcelo Martins (flauta), Marcos Suzano (percussão), André Vasconcelos (contrabaixo) e Jurim Moreira (bateria).
Um pouco da música multifacetada de Fernando Perillo pode ser ouvida aqui: