Dicionarista goiano mesmerizou Sérgio Buarque de Holanda e faz a cabeça de Chico Buarque
24 maio 2019 às 11h03
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Num trabalho de Hércules, sozinho, sem uma bibliografia adequada, o Professor Ferreira elaborou um dicionário seminal para escritores, pesquisadores e jornalistas
Goiás é, além de grande produtor de soja, um celeiro de dicionaristas. O “Dicionário Analógico da Língua Portuguesa — Ideias Afins” (Lexicon, 763 páginas), de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, é um sucesso nacional. Na apresentação da edição de 1974, o escritor Bernardo Élis, membro da Academia Brasileira de Letras, escreveu: “O Professor Ferreira foi um homem que acreditou na inteligência e por ela e para ela viveu. (…) Esse homem foi uma ilha”. O autor de “O Tronco” e “Veranico de Janeiro” repara que ele pesquisou e escreveu o livro sozinho. O falecido membro da ABL revelou, no fim do texto: “O primeiro dicionário da Língua Portuguesa escrito e publicado (escrito e publicado, vejam) no Brasil foi de autoria de um goiano, Luís Maria da Silva Pinto, que, em 1832, em Ouro Preto, escrevia e imprimia na sua tipografia o ‘Dicionário da Língua Brasileira’”.
O Professor Ferreira¹ escreveu o “Dicionário Analógico da Língua Portuguesa”, mas não pôde ler a edição impressa pela Companhia Editora Nacional de São Paulo, em 1950. O scholar sem academia morreu em 1942.
Bernardo Élis, prosador respeitado por Monteiro Lobo e Guimarães Rosa, explica o que o que significa o “Dicionário Analógico da Língua Portuguesa”: “Dada uma ideia, indica as palavras que podem expressar essa ideia ou que com ela tenha têm analogia. (…) Quer dizer que não se arrolam apenas sinônimos, mas a imensa gama de palavras, termos, vocábulos ou expressões que se inscrevem nessa ampla e meio nebulosa área do campo semântico”. Aquele que busca a palavra justa, como o francês Gustave Flaubert, ganha, e muito, se usar o livraço do Professor Ferreira.
Na nova edição do dicionário, Leodegário A. de Azevedo Filho, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), presidente de honra da Academia Brasileira de Filologia, escolhe a dedo uma palavra para definir o trabalho do Professor Ferreira: “Monumental”. Como anota acima Bernardo Élis, o mestre Leodegário Azevedo quase o repete, e não poderia ser diferente: no dicionário “busca-se uma palavra, entre muitas análogas, em uma área de significados conhecida e classificada numa frondosa árvore de classificações. (…) Trata-se de uma obra de fôlego, não existindo, que nos conste, na ampla bibliografia sobre o assunto, nada semelhante. Daí sua originalidade, na construção de um livro de consulta que será extremamente útil e todos que falam e escrevem a língua em que Camões cantou — como dizia o poeta Olavo Bilac — ‘o gênio sem ventura e o amor sem brilho’”.
Mesmo pesquisando sozinho, sem uma biblioteca decente e ampla, o Professor Ferreira produziu um dicionário que, segundo Leodegário Azevedo, vai além de “reunir e descrever o funcionamento do vocabulário” da Língua Portuguesa. “No caso em questão”, o do dicionário do mestre goiano, “vai-se, além disso, analisando-se o relacionamento de um conjunto de palavras semanticamente agrupadas, levando-se em conta todas as categorias gramaticais do idioma. E isso atesta a sua originalidade, louvando-se o extraordinário esforço de pesquisa e de penetração lexical de uma língua como a nossa, que é falada por cerca de 250 milhões de pessoas, sendo que, mais ou menos, 190 milhões [hoje, 2019, cerca de 210 milhões] se encontram no Brasil”. Ao final do texto, o professor da UERJ reforça que a obra é “verdadeiramente única”.
A apresentação da edição da Lexikon Editora Digital (de 2010), não assinada, registra, repetindo Bernardo Élis e Leodegário Azevedo: “O dicionário analógico, ou ‘Thesaurus’, na concepção de [Peter Mark] Roget, pressupõe que temos noção de um significado, temos uma intenção de uso, mas não nos ocorre uma palavra satisfatória. O ‘Thesaurus’, a partir de um contexto de possíveis significados, oferece uma nuvem de palavras em torno desse significado, ou seja, palavras análogas num maior ou menor grau de proximidade e exatidão, para que nessa nuvem possamos achar a palavra — ou expressão — que melhor nos convém, em qualquer de suas mais prováveis funções gramaticais”.
O “dicionário analógico completa, com um dicionário de língua, o ferramental necessário a quem busque a compreensão e o domínio de todas as potencialidades do código linguístico, seja no entendimento de significados e usos de palavras e expressões, seja na capacidade de encontrar as palavras e expressões que melhor traduzam o que se quer exprimir. (…) O admirável trabalho do Professor Ferreira, como gostava de ser chamado, calcado no método original de Roget, foi aplicá-lo à língua portuguesa, identificando mais de mil contextos conceituais da existência real — concreta e abstrata, física e espiritual, objetiva e subjetiva — para que a partir deles, em sub-ramificações que facilitam sua localização, possa ser encontrados os termos que melhor os expressem”, anota a apresentação da Lexikon.
O dicionário é fundamental para escritores e jornalistas que não apreciam repetições ou palavras mal dispostas na frase. O historiador Sérgio Buarque de Holanda não o retirava de sua mesa de trabalho quando estava escrevendo seus belos livros de história. Se o livro do Professor Ferreira não estiver próximo, visível, João Ubaldo Ribeiro² não começa a escrever seus romances, contos e crônicas. O escritor Antônio José de Moura não desgruda de seu exemplar. Se alguém o pede emprestado, o autor dos romances “Sete Léguas de Paraíso” e “Umbra” prefere adquirir um exemplar e dá-lo de presente. O caso de amor mais fanático é o do compositor, cantor e escritor Chico Buarque de Holanda.
Na edição da Lexikon, na apresentação “Os dicionários de meu pai”, Chico Buarque conta que, “pouco antes de morrer”, seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, o chamou e, entregando-lhe um dicionário de capa preta, disse-lhe: “Isso pode te servir”. “Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar das horas em que eu o folheava à toa. (…) Palavra puxa palavra, e escarafunchar o dicionário analógico foi virando para mim um passatempo”, escreve Chico Buarque.
De tanto consultá-lo, como se fosse quase um brinquedo nas mãos de uma criança com poucos recursos, o livro começou a esfarelar. Chico Buarque adquiriu outro exemplar, num sebo, no Rio de Janeiro, e guardou a preciosa herança paterna. “Com esse livro escrevi novas canções e romances, decifrei enigmas, fechei muitas palavras cruzadas”, relata o compositor-escritor. De novo, o livro começou a envelhecer devido ao manuseio intenso. O autor da música “Construção” e do romance “Leite Derramado” saiu a campo, quer dizer, aos sebos e, depois de muito procurar, encontrou dois exemplares, comprou-os e levou-os para casa. “Mas não me dei por satisfeito, fiquei viciado no negócio. Dei de vasculhar livrarias país a fora, só em São Paulo adquiri meia dúzia de exemplares, e ainda arrematei o último à venda na Amazon.com antes que algum aventureiro o fizesse”, relata o criador de “Fado Tropical”, espécie de hino informal do Brasil.
Notas
¹ Escrevo Professor Ferreira, como se “Professor” fosse o nome de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Mas, sim, o “Professor” praticamente foi incorporado ao nome, e Francisco dos Santos Azevedo foram “eliminados”.
² João Ubaldo Ribeiro morreu em 2014, depois da publicação do texto sobre o Professor Ferreira.
[Texto publicado Jornal Opção na edição de 6 de junho de 2013]