“Cura gay” é uma tentativa de a religião se tornar Estado e controlar a vida do indivíduo

23 setembro 2017 às 22h24

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O óbvio: se não há doença, não se precisa de cura. Mas grupos religiosos, às vezes convencendo juízes que não são inocentes, tentam projetar uma normalidade paranoica
A religião é um dos fenômenos culturais mais extraordinários da história do homem. Tratá-la como mera alienação, como ópio do povo, é deixar de conhecer filosofias (teologias) ricas, poderosas e imaginativas. A Idade Média, uma era civilizatória, preservou e difundiu a cultura greco-romana largamente como resultante da hegemonia cultural da Igreja Católica. O Renascimento, filho dos homens medievais, é uma invenção, em certa (ou grande) medida, dos homens de vasta cultura da Igreja Católica e dos nobres. Os artistas eram geniais, mas foram acionados por mecenas… católicos.
As ideias religiosas em si, com a conexão entre a realidade e o imaginário, o místico integrado ao mítico, são fenômenos (e construções criativas) poderosos. Pode-se assinalar que a religião cria mundos paralelos (e o mundo místico não é irreal) que se contaminam das coisas do mundo “real” mas sem perder a dimensão espiritual. Os homens podem viver sem religião? Um cientista radical, como o britânico Richard Dawkins, dirá que sim, e talvez esteja certo. A religião, segundo seus críticos, tem sido fonte de infelicidade e, algumas vezes, incentiva as guerras entre povos. Mas é apenas uma faceta. A religião agrega os homens, cria uma cultura e civiliza — não leva apenas à barbárie e ao ódio. Acadêmicos meticulosos, avessos a preconceitos primários (não se trata de uma redundância, pois há preconceitos elaborados), têm estudado as religiões a sério e têm feito descobertas que superam as ideias daqueles que, parecendo intérpretes equilibrados, eram, como o filósofo alemão Karl Marx, combatentes. É provável, até, que o autor de “O Capital” tenha pretendido substituir as religiões por uma religião secular — o marxismo. O filósofo britânico John Gray examina a questão no livro “Missa Negra — Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias” (Record, 352 páginas, tradução de Clóvis Marques). O marxismo é uma religião derivada de uma mistura explosiva entre Cristianismo, Iluminismo e Positivismo. Não deixa de ser curioso ou sintomático que comunistas se assemelham aos cruzados católicos.
O homem criou Deus e cria deuses para inspirá-lo. O artifício fica mais criativo quando o homem se permite a ideia de que ele próprio tenha sido criado por Deus. A explicação da ciência para o nascimento do mundo e do homem é mais convincente e racional, não há dúvida. Mas a explicação da religião — ou melhor, das religiões — é quase sempre mais bela e, mesmo, original, porque é até, talvez sobretudo, literária. Há livro mais belo do que a Bíblia, o romance dos romances? É provável que não. Quase todos os grandes escritores beberam e bebem lá, de Shakespeare a Guimarães Rosa. Novas traduções da Bíblia têm ampliado a complexidade de suas ideias e o vigor de sua linguagem.
Há quem acredite que a religião, por supostamente “seduzir” o homem, é o império do mal. Não é. Não há religiões, ao menos no Brasil, pregando a guerra e o extermínio de adversários. As religiões, católicas e evangélicas — passando pela umbanda e pelo candomblé —, pregam a paz. No geral, funcionam como clubes, com ações sociais mais benéficas do que prejudiciais aos indivíduos. Há fanatismo? Por certo, aqui e ali, há, mas não é o que predomina. Há uma racionalidade, e não apenas derivada da “teologia da prosperidade” — típica de algumas igrejas evangélicas —, que acaba levando à exclusão da pegada fanática. A liturgia de uma igreja, com seus ritos, não deve ser interpretada como mera alienação ou enganação. Pra começar, ninguém engana ninguém e pastores não devem ser tratados como seres demoníacos e espertalhações. Há mistificadores (até farsantes), mas a tendência é que, com o tempo, desapareçam ou suas igrejas moderem-se. Um dia, há muitos anos, a Igreja Católica “vendeu” indulgências. Hoje, com métodos modernos e racionais, não precisa mais disso. Igrejas novas são financeiramente agressivas, chegam a pressionar seus fiéis, mas vão se acomodando e, mesmo, se tornando mais abertas e tolerantes. Um papa “ecumênico” como o admirável Francisco resulta da consolidação da Igreja Católica, que não se sente ameaçada, estruralmente, por outras religiões.

Religião e Estado
Posta a questão da importância das religiões, com a ideia dominante de que não devem nem precisam ser combatidas — antes, devem ser respeitadas —, discutamos a questão da separação entre as coisas da religião e as coisas do Estado. Comecemos pelo ensino religioso. Se as igrejas estão ensinando religião nos seus templos, diariamente, por que levar o ensino religioso para as escolas? Significa que as igrejas não estão funcionando como unidades que ensinam religião? Escolas são lugares mais adequados para se aprender Língua Portuguesa, Matemática, História e Biologia. Se as escolas forem dirigidas por religiosos, e não laicas e controladas pelo Estado, tudo bem que abram um espaço em suas agendas para o ensino religioso. Pergunta-se: as católicas terão espaço e disponibilidade para explicar aos alunos as diferenças entre sua liturgia e a dos evangélicos? Certamente que não. O ensino, portanto, será dogmático.
O Estado brasileiro, insista-se, é laico. E assim deve continuar. A religião tem seu lugar, deve ser respeitada. Mas os religiosos devem respeitar a autonomia do Estado.
O Brasil tem várias igrejas evangélicas respeitáveis, como a Assembleia de Deus, à qual pertence o deputado João Campos, do PRB (partido ligado à Igreja Universal). As igrejas evangélicas, com seus pastores e bispos, estão cada vez mais articuladas e atuantes na política, notadamente no Poder Legislativo. Por que lá? Porque é o Legislativo que formula as leis do país. Magistrados não aprovam (ou não deveriam aprovar; podem até sugeri-las) leis que, concordando ou não, têm de cumprir à risca, eventualmente modificando-as depois de consultar alguma jurisprudência.
Homossexualidade
Na semana passada, um juiz decidiu que psicólogos podem “tratar” homossexuais. De fato, o magistrado não menciona “cura gay”, como seus defensores têm propalado na internet. O que se sugere, em tese, é que homossexuais que se sintam desconfortáveis com sua “condição” possam procurar psicólogos para uma consulta.
Quando se retira as “vestes” das palavras, o que se propõe é mesmo uma “cura gay”— “ideia” que evangélicos radicais defendem. Homossexuais seriam “aberrações” da natureza que a religião, com ajuda da psicologia, poderia “corrigir”. É o que pensam alguns, quiçá muitos.
O médico Drauzio Varella escreveu que a homossexualidade não é uma doença. Se não é, por que “abrir”, a partir de uma decisão judicial, a possibilidade de que homossexuais possam ser “tratados” por psicólogos? “Tratados” exatamente de quê? Reduzida a pressão de religiosos, que certamente influenciam alguns psicólogos — que são, por vezes, mais pregadores do que homens da ciência ou mesmo homens tolerantes —, algum juiz teria tomado a decisão que tomou? Possivelmente, não.

Dirão: o juiz está apenas “permitindo” — criando uma abertura legal — para que algumas pessoas, no caso homossexuais, busquem apoio para tomar sua “decisão” (continuar sendo homossexual ou se tornar heterossexual, como se fosse simples assim). Ora, se é assim, por que a intervenção da Justiça? Por que não “deixar” que homossexuais, como quaisquer outras pessoas — já que são seres humanos como os outros —, decidam por si a respeito de suas vidas? A função da Justiça é criar uma ordem legal para todos, é possibilitar um convívio pacífico e civilizado. Mas não é sua função decidir sobre como as pessoas devem proceder quando se trata do exercício de sua individualidade, de sua sexualidade.
Por que a sexualidade dos homossexuais incomoda tanto algumas pessoas? Os que não a aceitam falam em “anormalidade” e “atos contra a natureza”. Parece óbvio que nem todos os que “combatem” os homossexuais têm desejos homossexuais. Mas a obsessão com a sexualidade deles, com sua suposta pujança e voracidade, sugere mesmo certa atração pelo “contrário”, por sua “diferença”. Por que o “prazer” em combatê-los? Drauzio Varella chega a recomendar àquele que está preocupado com o fato de que dois homens ou duas mulheres se amem que procure um psiquiatra. Talvez seja o conselho menos inadequado.
Se um homem ama um homem (ou se uma mulher ama uma mulher), se os dois têm prazer, o que isto tem a ver com quem não apoia o amor e o carinho deles? A vida sexual deles diz respeito exclusivamente aos dois.
Se os religiosos não se mostrarem mais tolerantes com a sexualidade diversa, que não é o mesmo que desviante, dos homens e das mulheres — criando formas torturantes de controle, inclusive de seus integrantes —, vão acabar tendo de aceitar (ou ao menos enfrentar) cruzadas intolerantes contra as religiões. Quanto a determinados juízes, ainda que suas sentenças concebam certa tolerância e sejam exploradas de maneira imprecisa pelos críticos, não se pode tratá-los como “inocentes” ou meros “aplicadores” das leis. Os magistrados não são autômatos e sabem que determinadas decisões são terríveis para determinadas pessoas, como os homossexuais.
Um detalhe talvez tenha passado despercebido na “peleja” da semana passada. A “liberdade” dos homossexuais foi defendida, de maneira ampla, por centenas de heterossexuais. O que prova que o Brasil está mais aberto e tolerante. A liberdade “saiu” do armário e o amor, hetero ou homo, continua mais belo do que a guerra e as campanhas moralistas.