Como Kim Kardashian decidiu ocupar o Palácio de Versalhes
10 maio 2020 às 00h00
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Ou como cada um de nós decide gastar nosso próprio tempo. Por que não estudar a cultura da Tunísia, por exemplo?
Halley Margon
Especial para o Jornal Opção
de Barcelona
Mais sobre Roma: na manhã do vigésimo primeiro dia de julho de 366 d.C., segundo ano do reinado do imperador Valentiano, “a maior parte do Império Romano foi sacudida por um terremoto violento e destruidor”. Havia pouco mais de meio século que o Cristianismo fora legalizado em Roma. Dali a menos de vinte e cinco anos, em 390, terá se tornado a religião oficial do Estado. O terremoto foi um evento tremendo, de proporções apocalípticas. No grandioso relato de Gibbon (veja link abaixo) parece extraído de um caldeirão de cores bíblicas.
“O abalo se transmitiu às águas; as praias do Mediterrâneo secaram pelo repentino recuo do mar… grandes barcos encalharam no lodo; e um curioso espetáculo divertia os olhos, ou melhor, a fantasia, quando se contemplava a variada aparência de vales e montanhas que, desde a formação do globo, nunca se tinham exposto à luz do sol.”
Mas, continua a narrativa, “a maré logo voltou com a força de um imenso e irresistível dilúvio, intensamente sentido nas costas da Sicília, da Dalmácia, da Grécia e do Egito… as águas varreram as pessoas e suas habitações; e a cidade de Alexandria passou a comemorar anualmente o dia em que 50 mil seres humanos perderam a vida na inundação”.
Volta e meia, aqui e ali, grandes calamidades como essa descrita pelo historiador britânico fazem sangrar a humanidade. E, como sugere sua pena cheia de malícia, era moda “atribuir todo acontecimento digno de nota à vontade pessoal da Divindade… (e) os teólogos mais sagazes, conclui ele, podiam perceber, segundo a cor de seus respectivos preconceitos, que o estabelecimento de uma heresia tendia a produzir um terremoto ou que um dilúvio seria a inevitável consequência do progresso do pecado e do erro”.
Logo, em Lisboa
Assim se procedeu, por exemplo, muitos séculos depois na terra de nossos patrícios quando, de novo, um terremoto de dimensões bíblicas arrasou Lisboa. Foi no ano do Nosso Senhor de 1755. Precisamente na manhã de 1º de novembro de 1755, Dia de Todos os Santos. Um abalo inicial, minutos depois, outro ainda mais violento, e finalmente, um terceiro. Em pouco menos de 15 minutos, uma das mais prósperas e imponentes capitais da Europa tinha sido reduzida a escombros.
Era chegada a hora do juízo final (como o terremoto ocorreu num dia especialmente consagrado pelos católicos as igrejas estavam lotadas de fiéis que, quando se deram conta da enormidade do desastre que se abatia sobre eles, passaram a rezar e implorar “freneticamente por perdão divino em meio ao tumulto, convencidos de que o fim, o tão anunciado Apocalipse, estava próximo”).
Como muito rotineiramente costuma acontecer, o que veio a seguir foi uma intensa disputa de relatos sobre as mais profundas causas da catástrofe, opondo a ciência e crendices. Como lembra um dos livros sobre o evento, estamos no tempo de Voltaire, Pope, Kant e Rousseau (ver “O Último Dia do Mundo — Fúria, Ruína e Razão no Grande Terremoto de Lisboa de 1755”, de Nicholas Shrady) —, embora toda a península Ibérica sinta ainda o calor das fogueiras inquisitoriais.
Seja como for, o fato é que os fanáticos de hoje já não são como os de antanho. Agora mesmo, quando o reconhecimento de uma punição divina em escala planetária poderia significar, ainda que ironicamente, uma efetiva contribuição à saúde pública, eis que nos falham. Quem sabe por que assim lhes saia mais rentável aos seus curas, preferem tratar a cura das desgraças individuais deixando de lado as ameaças apocalípticas coletivas anunciadas pelos profetas. Eventualmente, os fanáticos de agora (que, diga-se, não são todos frequentadores de templos) se igualam aos do século 18. Estão dispostos, aliás como sempre estarão, a nos conduzirem ao mais opaco dos destinos, lá onde eles próprios cultivam seu obscurantismo.
Desde aqui, do outro lado do Atlântico, a sensação é de que, mesmo com um nível de subnotificação que ultrapassa em vários níveis o de qualquer outro país (e sobre o qual tenho insistido), o número de contágios começa finalmente a demonstrar o tamanho da irresponsabilidade da política do governo de Jair Bolsonaro de combate à pandemia. A hora de se preocupar e agir seriamente parece já ter ficado há muito para trás.
O Reino Unido de Boris Johnson, que tardou pouco mais de uma semana a fazer o dever de casa e praticar com firmeza as medidas que já estavam sendo adotadas pelos outros países, acaba de se tornar o país com o maior número de mortes por coronavírus da Europa, com 32.313 mortos registrados no dia 5 de maio.
Kim Kardashian 1 — A ocupação do palácio de Versalhes
Os jardins Versalhes tanto quanto o próprio palácio estão vazios, e assim também todas as outras grandes atrações turísticas da Europa. É espantoso e até dois meses atrás simplesmente inimaginável. No meio da tragédia e eis que a pandemia rompe não apenas as fronteiras nacionais, mas simultaneamente as da nossa imaginação. De maneira surpreendente e irônica o mundo se torna mais vasto e fluido, afasta-se num átimo do simulacro para se aproximar da verdade.
Versalhes está vazio, completamente vazio. Faz pouco, alguém me disse que a modelo (de fato não sei como me referir a essa moça de modo respeitoso, já que celebridade não me pareça ser uma maneira das mais dignas para se ganhar o sustento) do subtítulo acima queria alugar o palácio onde viveu Maria Antonieta para sua festa de casamento. Não sei se é verdade, nem vou gastar tempo para verificar informações dessa natureza. Coaduna com a figura, isso sim, assim me parece. O sobredimensionamento do ego dessa gente não tem nenhum limite — imagino que a mulher de Luis XVI frente à sra. Kardashian provavelmente se veria como uma humilde consorte de um modesto nobre interiorano.
Não é exatamente verdade que a aristocracia se extinguiu com a Revolução Francesa e a degola do casal Luis XVI-Maria Antonieta, ou com o fuzilamento do czar e sua família, e hoje se reduza a figuras simbólicas como a família real inglesa ou espanhola. Ela apenas se deslocou. Os privilégios, os vícios e maneirismos, as taras e os hábitos, a infindável distância que os separam dos cidadãos comuns, ao contrário, tornaram-se ainda maiores. O que se sabe é que essa nova aristocracia, os novos multibilionários que muitas vezes multiplicam suas fortunas diariamente sem nenhuma relação com o esforço do seu trabalho, exatamente como os de sangue azul do século 18 e precedentes, mostra-se (quando se mostra) ainda mais despudorada e obscena que seus antepassados.
Kim Kardashian 2 – formas de gastar o tempo
“O Que Vamos Invadir em Seguida?” é o título de um dos documentários de Michael Moore. A ideia do filme é “invadir” alguns países da Europa para aprender e levar de volta aos Estados Unidos conquistas da civilização que os americanos teriam abandonado. Vale a pena ser visto. É divertidíssimo. Um dos países visitados é Portugal, e dali o que o diretor pretende levar como exemplo para o seu país é o modelo de tratamento de usuários de droga adotado pelo sistema público de saúde lusitano. Mas não é de Portugal e sua eficiente saúde pública que quero falar aqui, e sim da entrevista feita por Moore com uma jornalista tunisiana quase ao final do filme.
Essa jornalista tinha acabado de voltar de Paris, onde trabalhava como correspondente, para o seu país. Ali, uma revolução com forte participação feminina, a Revolução dos Jasmins, depusera uma longeva ditadura e aprovara uma constituição onde as mulheres passaram a ter real poder de participação. Lembre-se que a Tunísia é um país muçulmano.
“Você acha que existe alguma coisa que os Estados Unidos poderiam aprender com a Tunísia?”, pergunta o documentarista.
“Os americanos são afortunados”, responde ela. “Pertencem ao país mais poderoso do mundo. Mas talvez isso os tenham impedido de serem curiosos. Eu sei muito sobre vocês. Conheço a sua música… conheço Henry Miller, Kerouac, S. Fitzgerald… Mas também tenho minha cultura. O que vocês sabem da minha cultura (e de outras culturas)? Li um artigo muito interessante sobre o tempo que os americanos passam assistindo o programa das Kardashian. Por que vocês perdem tempo com isso? … Entrem (na internet), leiam, vejam (sobre nós), e depois venham nos visitar. Valemos a pena. É um país muito pequeno, se chama Tunísia, está no norte da África.”
De fato, a Tunísia é um pequeno país espremido entre a Líbia e a Argélia. Mas que importa o destino desses pequenos e pobres lugares perdidos no globo terrestre à sra. Kardashian e aos membros da nova aristocracia planetária?
E quanto a cada um de nós, por que ainda perdemos nosso precioso tempo assistindo programas como o das Kardashian?