Como a imprensa ajuda na histeria do “desafio da Momo”

19 março 2019 às 17h12

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Não é a primeira vez que a escultura macabra do japonês Keisuke Aiso protagoniza uma onda alarmista nas redes sociais
Em 1938, o rádio, como meio de comunicação de massa, era relativamente uma novidade. Eis que, em uma noite de 30 de outubro, véspera do Halloween, irrompe nas ondas da CBS a “notícia extraordinária” da invasão marciana ao planeta. Pânico em Nova Iorque. Sucesso para o radioteatro de Orson Welles.
Oitenta anos depois, os alienígenas nos invadem por meio do WhatsApp e outras ferramentas de comunicação instantânea. A chamada mídia tradicional participa desse jogo de forma atabalhoada.
A mais recente prova da inabilidade de os veículos tradicionais na lida com os meios digitais teve como protagonista a Revista Crescer.
Vamos à história
A produtora de conteúdo Juliana Tedeschi Hodar recebeu um vídeo com o “Desafio da Momo”. Nele, a macabra boneca, na verdade uma escultura do japonês Keisuke Aiso, invade vídeos infantis para incentivar as crianças à automutilação e ao suicídio.
A filha de Tedeshi confirmou ter visto tal vídeo. A produtora de conteúdo postou a história no Facebook – até a manhã desta terça-feira, 19, a publicação havia recebido 112 reações, 75 comentários e 1,3 mil compartilhamentos.
Baseada no relato de Tedeschi, a Crescer publicou a história com o seguinte título: “Momo aparece em vídeos de slime do YouTube Kids e ensina as crianças a se suicidarem, diz mãe”. Sem apuração, sem outros exemplos. Apenas o “diz mãe”.
O vídeo circulou febrilmente em grupos de WhatsApp, Facebook e Instagram. Às 10h50 desta terça-feira, 19, havia 5.210.000 referências aos termos “momo + suicídio” no Google.
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Alguns veículos de comunicação apuraram melhor o caso. A ONG Safernet, referência em segurança digital, foi consultada. O Ministério Público da Bahia, por meio do Núcleo de Combate a Crimes Cibernéticos, notificou o Youtube e o WhatsApp. Nenhum deles encontrou links ou URLs que direcionassem a vídeos na plataforma que contivessem o conteúdo denunciado.
Existem centenas de vídeos da Momo no Youtube. Muitos realmente assustadores, especialmente para crianças. Nenhum, porém, “ensina” técnicas de suicídio ou automutilação (se ele existe, ainda não foi encontrado) na plataforma, mas, sim, no WhatsApp.
O roteiro é simples:
Um casal recebe um vídeo que coloca a segurança dos filhos em risco.
Os pais perguntam à filha: “Você já viu essa boneca?”.
Ela diz que a viu no Youtube (afinal, há milhares de vídeos dela na plataforma).
Os pais deduzem que o vídeo que ensina o suicídio está no Youtube, postam o alerta no Facebook e compartilham no WhatsApp.
Um veículo de comunicação publica a história, baseada nesse post, com um título chamativo para angaria clicks.
Centenas de outros veículos reproduzem o caso.
Novos relatos surgem.
Cresce o número de buscas no Google e o algoritmo começa a entender que aquele assunto é muito buscado e o coloca em evidência.
Mais buscas alimentam o algoritmo, mais o algoritmo alimenta as buscas.
Uma criança entra no Google, busca por “slime” e o algoritmo, vitaminado por milhões de buscas com os termos “slime + Momo + suicídio”, dá como resultado exatamente o vídeo que os pais queriam banir.
A roda gira alimentada pela legítima preocupação dos pais, pela pressa e falta de apuração da imprensa e pelo algoritmo do Google. Ao compartilhar o vídeo, os pais dão mais impulso à engrenagem.
E o hoax atinge seu objetivo.