Ciência e política das trevas para enterrar meio milhão de cadáveres
28 junho 2021 às 12h37
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Bolsonaro só se tornou possível como presidente após um aguda e planejada ofensiva de uma parte do país contra o próprio país, uma ofensiva que sugou as suas energias
“Se os males vêm, não vêm quais simples batedores,/ Porém aos batalhões.” — “Hamlet”, de Shakespeare
Halley Margon, de Barcelona
O mal é ubíquo. Está também no presente e no passado. É uma boca faminta aberta à nossa espera logo ali, amanhã. É sempre atual, nunca é notícia vencida. Quando se instala, finca raízes, logo se esparrama e contagia como uma febre malsã. Não há o que se possa fazer para conter sua expansão. Seus efeitos podem ser e rotineiramente são devastadores, sobretudo sobre uma sociedade já há longo tempo, quiçá desde o berço, debilitada e ofendida por parasitas que roubam do seu sangue as reservas que lhe permitiriam resistir nos momentos de crise.
O Brasil já vinha sofrendo um vasto e profundo processo de ataque quando Jair Bolsonaro se elegeu presidente. E Bolsonaro só se tornou possível como presidente após um aguda, planejada e estúpida ofensiva de uma parte do país contra o próprio país, uma ofensiva que sugou as suas energias, debilitou as vontades, massacrou os espíritos e, como agora sabemos e assistimos, todos os dias, em cada imagem, a cada notícia, abriu as portas do inferno para que o mal viesse e se instalasse com a força de uma praga. Ubíquo e despudorado. Exibindo-se no permanente sorriso de escárnio estampado na cara do presidente eleito.
Pode parecer estranho falar de política em termos como esses, mas a política no Brasil foi rebaixada ao nível das sociedades primais, dos sentimentos primitivos, dos gestos brutos e sem sofisticação, dos apelos do sangue e nada mais. Distante, muito distante dos sofisticados e sutis meandros da razão.
Desculpem-me, mas eu sinceramente não sabia desse sorriso do presidente. Dessa maçante marca publicitária ou seja lá o que for. Vivo fora do Brasil. Saí antes de poder sequer acreditar que afinal a coisa se tornaria possível, ainda que a desgraça já se anunciasse como uma sombra tóxica. A decisão de sair foi em grande parte o resultado de uma percepção do que vinha ocorrendo desde muito antes do ano de 2018. Foi cansaço, foi um vergonhoso ato de desistência ou preguiça, confesso, ainda que fundado em alguma dose de bom senso — afinal são 500 anos de repetição dos mesmos vícios e quase nenhum avanço, com as poucas tentativas de progredir abortadas pelas forças do privilégio obscurantista. E isso cansa, leva ao esgotamento.
O próprio país vai se exaurindo e ficando para trás e para trás. O país, não as forças que se alimentam do seu sangue. Essas sempre estão bem de saúde e sorridentes. Saí querendo amputar de mim o que havia em mim dessas forças malignas. Apagar da memória. Remover do olfato, se possível, o mal cheiro das elites. Não ver as imagens da sua degradação provocada e interessada. Não ouvir as notícias dos donos das notícias. Não presenciar dia a dia o escárnio daquele sorriso. Outros já haviam tentado operações semelhantes a essa à qual eu estava me propondo e conseguido, em outras épocas, em outros lugares. Por que não tentar?
Mal despudorado e escandaloso
Mas o mal quando se faz despudorado pode se tornar também escandaloso. Não há como não notar sua presença. Ele se exibe, faz questão de se mostrar. Mesmo os que estão longe, a oceanos de distância, são em algum momento forçados a desviar o olhar na direção da sua infausta figura. O mal se aparta, berra no canto do palco como se lhe bastasse a sua natureza intrínseca (de mal) para merecer o papel de protagonista. Autossuficiente e narcísico, apela à presença da própria imagem para que os refletores se voltem e o iluminem.
Desde o princípio da pandemia o governo brasileiro escolheu um caminho mais ou menos idiossincrático para abordar a crise. Outros países fizeram escolhas semelhantes. Muito rapidamente, porém, os métodos e procedimentos se uniformizaram pela força das evidências científicas e das experiências empíricas. Os poucos que tentaram rotas peculiares (Boris Johnson, no Reino Unido, por exemplo) recuaram e passaram a acompanhar a maioria. Todo o mundo passou às mesmas recomendações e ações, menos o Brasil, sob o comando do seu presidente e da equipe de médicos e cientistas que ele escolheu para orientá-lo.
Como consequência, o domingo, 20, amanheceu com um sino fúnebre repicando de norte a sul do país para lembrar a cada um dos brasileiros a para sempre memorável marca dos quinhentos mil mortos, afinal ultrapassada. Uma parte importante dessas mortes pode e deve, portanto, ser creditada diretamente ao presidente da República e às fórmulas mágicas ditadas pelos técnicos, burocratas e cientistas que ele comanda. Poderiam ser menos. Deveriam ser menos. Já há cálculos informando que 100 mil dessas 500 mil mortes teriam sido seguramente evitadas se o governo tivesse encarado a crise com a devida seriedade. Mas, não, o presidente preferiu rir.
Porque o mal, quando se instala, você se recorda, se torna ordinário e vulgar, ri quando deveria chorar, é mal-educado e grosseiro, debocha quando deveria se lamentar. O luto lhe desagrada, lhe é estranho. E, comprovando agora o que há muito vinha sendo anunciado, o mal também mata, faz somar ao número das vítimas naturais de uma terrível pandemia, sua cota extra de cadáveres. Ele se alimenta de cadáveres — isso a história sempre nos ensinou, precisa da morte para crescer e se manter. Por isso ele gosta da morte. Por isso ele ri, quando deveria se lamentar, pedir desculpas e corrigir as más escolhas.
Se a desgraça ensina, e ela, sim, pode nos ensinar, o que a tragédia que se abate sobre o país está nos mostrando é que as consequências da eleição de um presidente como Bolsonaro ultrapassam em muito o assombroso número de vítimas desnecessárias provocadas por sua ação deletéria. Agora mesmo, cômicos mundo afora se fartam em piadinhas cujo tema é o tratamento defendido pelas autoridades da saúde pública do Brasil. Esqueçam o tempo em que o presidente brasileiro era reverenciado nos fóruns internacionais como “o cara”! Deixem para trás a respeitabilidade duramente conquistada pelos sanitaristas e médicos brasileiros de todas as áreas. Estamos todos condenados ao fiasco e ao deboche. Porque o que se viu nos últimos anos foram as instituições brasileiras e o que representam sendo arrastadas para o descrédito e o obscurantismo pelo homem que comanda o país.
Leio em algum lugar que após o depoimento de dois membros do comando de combate à pandemia do governo federal (desafortunadamente, duas médicas num país onde as mulheres fizeram e ainda hoje fazem tantos sacrifícios para conquistar espaços numa profissão tradicionalmente, não sei se especialmente, dominada pelos homens), o Conselho Federal de Medicina soltou nota protestando contra a maneira como teriam sido tratadas pelos parlamentares. (Felizmente houve uma enxurrada de reações de médicos do Brasil inteiro contra a desonrosa nota emitida pela diretoria do CFM.) Não, a nota do Conselho e as manifestações orais do sr. Doutor presidente da entidade não eram contra o estrondoso e triste fracasso do governo federal no tratamento da crise e que a CPI trata de investigar, mas contra as perguntas dirigidas às duas testemunhas que já àquela altura, pelo papel desempenhado na política do governo, não poderiam ser enquadradas em outra categoria que não a de cúmplices. Afinal, segundo os cálculos que estão sendo realizados desde o último domingo, 20 de junho de 2021, são 100 mil mortos.
Cem mil mortes que poderiam ter sido evitadas, doutor.
Ah!, o mal… ele é, sim, ubíquo e contagioso.