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A história nunca se cansa de repetir suas tragédias. Teimosa como um animal, segue ensaiando formas de levá-las ao palco não importa quão custosas possam ser

Halley Margon Jr.

De Barcelona

Em 2021 completam-se duas décadas desde o fim do conflito da ex-Iugoslávia. Foram dez anos de combates e massacres cruentos no privilegiado palco do Velho Continente que resultaram nuns duzentos mil mortos. O país tinha 23 milhões de habitantes em 1991. Era quase que a crônica de uma morte anunciada. Mas aos novos senhores do mundo pós-queda do muro tudo parecia muito fácil: “a Iugoslávia podia ser desmontada à vontade” e, em seguida, remontada de acordo com os interesses geoestratégicos dos Estados Unidos e companhia. Slobodan Milosevic, por sua parte, lá pelos anos de 1988-89, seguia sua pregação em defesa da hegemonia sérvia e, “sem deixar de se apresentar como marxista, continuou substituindo… os termos ‘camarada’ por ‘irmão’ e ‘classe trabalhadora’ por ‘nação’” (ver Patriotas Indignados – Sobre a nova ultradireita na pós-guerra fria, vários autores). A uns e outros, pouco importava que as portas do inferno fossem abertas e liberados os maus espíritos. Podia até interessar, e de fato interessava que assim fosse. Os múltiplos nacionalismos estavam ali, disponíveis e de prontidão, e quando os ódios e rancores acumulados em décadas vieram à tona, e eles estão por aí, o resultado foi o que se viu.

Passadas três décadas desde o início da guerra, os múltiplos nacionalismos ainda rondam a Europa de cima a baixo, disponíveis e prontos a estimular as chamas dos apelos identitários sem se preocuparem muito que isso possa fazer emergir ressentimentos de todas as ordens tão logo se apresentem as circunstâncias apropriadas. Até que um dia as portas do inferno se abrem.

A história nunca se cansa de repetir suas tragédias. Teimosa como um animal, segue ensaiando formas de levá-las ao palco não importa quão cansativas e custosas possam ser. O abismo parece um encanto, uma luz ofuscante que cega o olhar e a um só tempo o atrai.

George Steiner: o “nacionalismo é o veneno da história moderna. Não existe nada mais bestialmente absurdo do que a disposição dos seres humanos de incinerar ou massacrar os semelhantes em nome da nação e sob o sortilégio pueril de uma bandeira”

Num texto publicado anos antes do desmoronamento da ex-União Soviética e da guerra dos Balcãs, cujo título era “O Sacerdote da Traição”, logo na primeira frase George Steiner se referia ao Guernica de Picasso. Na realidade, seu assunto não era nem a pequena cidade do País Basco bombardeada pela aviação alemã, nem a polêmica tela do pintor malaguenho e, sim, um crítico de arte inglês chamado Anthony Blunt que, num artigo publicado na revista The Spector, do dia 6 de agosto de 1937, manifestou sua “opinião… severamente depreciativa” sobre a pintura. Mas a traição a que se refere o título do texto de Steiner não é, nem de longe, uma apreciação sobre o gosto ou a capacidade crítica de Blunt. É a traição no sentido o mais literal possível no contexto da diplomacia internacional, do mundo dos espiões e da guerra fria. Porque o que importa a este ironista feroz, autor de A Morte da Tragédia, não é a existência do crítico Blunt, mas sua vida como membro do MI5 (o serviço de espionagem britânico) e ao mesmo tempo como agente da KGB. Essa traição, diz Steiner, levada a cabo durante mais de 30 anos, “trouxe, com quase toda certeza, graves danos a seu país e talvez tenha enviado outros homens… a uma morte abjeta”. O artigo é longo o suficiente para que ele possa tentar vasculhar as origens de um espírito capaz de “mascarar a si mesmo” e tentar entender esses nebulosos laços de fidelidades conflitantes onde não será estranho que se apresente a escolha entre trair seu país ou trair um amigo. Blunt, segundo Steiner, “traiu o país e os amigos com o mesmo prazer impassível.”

Mas ninguém se engane pensando que o propósito do texto é fazer a apologia da pátria e do patriotismo. Steiner não poderia ser mais explícito quando escreve que o “nacionalismo é o veneno da história moderna. Não existe nada mais bestialmente absurdo do que a disposição dos seres humanos de incinerar ou massacrar os semelhantes em nome da nação e sob o sortilégio pueril de uma bandeira”.

Por isso mesmo, com o mesmo título Steiner poderia ter ido noutra direção ou recuado no tempo para falar de um personagem que traiu a mãe Rússia para viver e morrer na Inglaterra do traidor Blunt.

A traição de Pecherin

O personagem Dante de A Casa da Rússia, recordando Boris Pasternak, diz que para “haver esperança, precisamos trair nossos países”.  E citando outro poeta russo, Vladimir Pecherin, emenda: “Como é doce odiar-se a terra natal, desejar sua ruína, e nessa ruína enxergar a aurora do renascimento universal”. Pecherin, diz Dante, “achava possível amar a pátria, mas odiar seu sistema”. Para salvá-la, conclui, “talvez seja preciso traí-la”.

Vladimir Pecherin, poeta russo

Em 1836, aos 29 anos de idade, Pecherin tinha pela frente uma brilhante carreira como professor de língua grega e antiguidades  da Universidade de Moscou quando decidiu abandoná-la e imigrar para o ocidente (Londres), onde o atraía as teses do florescente socialismo utópico. Não demorou muito para se desencantar e buscar no cristianismo uma outra ideia do absoluto (Steiner, mas num outro debate). Tornou-se monge da ordem dos redentoristas ou liguoriana. A empatia seguia sendo pelos despossuídos, a principal marca daqueles religiosos.

A ruptura de Pecherin com a mãe Rússia (ou fosse como fosse que chamasse o país onde nasceu) foi definitiva e ele nunca regressou à pátria. Com os liguorianos nunca rompeu, embora tenha tido uma convivência que talvez não tenha sido das mais pacíficas. Conta-se que em 1855, já vivendo na Irlanda após ter deixado Londres, foi julgado por supostamente ter queimado uma bíblia. A acusação se referia ao crime de blasfêmia que por então constava da constituição da Irlanda (só foi eliminado num referendum realizado em 2018). Apesar da repercussão e das inúmeras testemunhas o caso não prosperou. De modo que Pecherin pôde passar os “últimos 23 anos da sua vida servindo como capelão no Mater Hospital de Dublín”, cidade onde morreu, em 1885.

Eleições

Na Espanha as chamadas comunidades autônomas, como a Catalunha (são dezessete), têm de fato muita autonomia relativamente ao Estado nacional. Repetem, grosso modo, o modelo político organizacional da nação, que é parlamentarista. Elege os deputados que escolhem seu presidente, no caso da Catalunha, o President de la Generalitat. E, a partir de um determinado arcabouço regulamentário, tem autonomia para decidir quando fazê-lo. Domingo, 14 de fevereiro, finalmente foram realizadas novas eleições desde a crise de outubro de 2017, na qual o governo em exercício foi destituído e acusado de rebelião por ter declarado a independência da Catalunha – os membros daquele governo ou fugiram e vivem fora da Espanha, como o presidente Carles Puidgmont (JxCat, de direita) ou estão presos como o vice-presidente Oriol Junqueras (ERC – Esquerra Republicana de Catalunha). O centro do debate político continua sendo a possibilidade de uma Catalunha separada do Estado espanhol, o que não é contemplado pela Constituição de 1988 (fim do franquismo).

De um lado alinham-se os diversos agrupamentos chamados independentistas, que vão dos abertamente de direita, como o do ex-presidente Puidgmont, aos da extrema esquerda, como a CUP (Candidatura de Unidade Popular), passando pelos eleitores do ERC de Junqueras. De outro lado, a esquerda que forma a base do atual governo central (PSOE-Podemos), que aqui chama-se respectivamente PSC e En Comú Podem, e os agrupamentos que se autodenominam constitucionalistas, o centro, a direita e, agora, a ultra-direita representada pelo VOX.

Já escrevi aqui alguns artigos sobre a impressionante trajetória ascendente do partido de Santiago Abascal (VOX) nos últimos dois anos. O que lhe faltava era a Catalunha. Em 2017 praticamente inexistia aqui. Agora é de longe o mais votado entre os partidos da direita e nada mais nada menos que a primeira força depois dos três agrupamentos hegemônicos (PSC, ERC e JxCat).

Sua pregação, o mais exaltado nacionalismo (espanhol), conforma o mais que perfeito contraponto a um outro não menos exaltado nacionalismo (catalão).