Centenário de Italo Calvino é celebrado neste domingo

14 outubro 2023 às 13h03


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Se meu livro ‘As Cidades Invisíveis’ continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjeturas. — Italo Calvino
A obra do escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) é conhecida no mundo inteiro, possivelmente, mas o homem é (ou era) uma continente quase “invisível”. Neste dia 15 de outubro, num domingo, a Itália — e leitores de quase todos os países — comemora o centenário de nascimento de Italo Calvino. Se os clássicos são os autores para as quais sempre voltamos, que nos servem de referência, então Calvino é um deles.
Há biografias de Italo Calvino, consideradas de qualidade. Mas foi publicada uma, em 2020, que promete ser mais ampla e atualizada do que as demais — porque o autor obteve acesso exclusivo a material.
É hora, portanto, de a Companhia das Letras, que publica, com extremo zelo (edições e traduções), a obra de Italo Calvino no Brasil, lançar uma biografia do escritor. “Italo Calvino — El Escritor Que Quiso Ser Invisible” (Fundación José Manuel Lara, 528 páginas), de Antonio Serrano Cueto, professor de Filologia Latina da Universidade de Cádiz, poeta e prosador, saiu na Espanha em 2020.


Filho de cientistas italianos, que estavam no Caribe, na década de 1920, Italo Calvino veio ao mundo em Santiago de la Vegas, em Cuba, em 1923. Nasceu no país de Lezama Lima e Severo Sarduy por acaso. Portanto, é italiano. Por certo, o coração, o cérebro, a alma e a casa de um escritor são a língua em que escreve.
Italo Calvino viveu relativamente pouco — morreu em decorrência de hemorragia cerebral — mas legou uma grande obra, em qualidade e quantidade. Faltou o Nobel para consagrar sua arte de alto gabarito — e é curioso que uma literatura complexa, em certa medida, tenha se tornado relativamente popular. Se faltou o prêmio, a obra o consagrou.
Biografia “trai” uma ideia cara a Italo Calvino
O primeiro contato de Antonio Serrano foi com o romance “O Barão nas Árvores” (Companhia das Letras, 240 páginas, tradução de Nilson Moulin). Depois, “as novelas do ciclo heráldico-fantástico, ‘Um Visconde Partido ao Meio’ (Companhia das Letras, 104 páginas, tradução de Nilson Moulin) e ‘O Cavaleiro Inexistente’ (Companhia das Letras, 120 páginas, tradução de Nilson Moulin)”.


“Minha admiração foi crescendo até culminar na leitura de ‘As Cidades Invisíveis’ (Companhia das Letras, 152 páginas, tradução de Diogo Mainardi), seu livro mais belo, e ‘Seis Propostas para o Próximo Milênio’ (Companhia das Letras, 144 páginas, tradução de Ivo Barroso), o mais transcendente”. Como se sabe, “Seis Propostas” é um longo ensaio (ou ensaios).
Mesmerizado, Antonio Serrano nunca mais abandonou a literatura e os ensaios de Italo Calvino. De leitor, passou a estudioso de sua obra e vida. Chegou a ganhar o Prêmio Antonio Domínguez Ortiz de Biografías 2020. Tornou-se um, digamos, “italo-calvinista”.
Italo Calvino é, de acordo com Antonio Serrano, o escritor do século 20 mais estudado na Itália, acima do francês Marcel Proust, do irlandês James Joyce, do alemão Thomas Mann e do italiano Dino Buzzati.
O biógrafo sugere que seus livros mais experimentais, como “Se um Viajante Numa Noite de Inverno” (Companhia das Letras, 280 páginas, tradução de Nilson Moulin) e “As Cosmicômicas” (Companhia das Letras, 160 páginas, tradução de Ivo Barroso), são menos lidos… na Espanha. O primeiro é o livro de Italo Calvino que li com maior interesse (na tradução de Margarida Salomão, Editora Nova Fronteira), talvez porque estivesse descobrindo sua obra. Há, neste romance, a inventividade, para citar dois exemplos, do Julio Cortázar de “O Jogo da Amarelinha” e do Alejo Carpentier de “O Cerco”.


De acordo com Antonio Serrano, “escrever uma biografia de Italo Calvino é trair, de algum modo, sua ideia, amiúde repetida em suas cartas e entrevistas, de que a vida de um escritor não tem importância, pois o substancial é sua obra”.
O autor de “Por Que Ler os Clássicos” (Companhia das Letras, 288 páginas, tradução de Nilson Moulin) — um livro deliciosamente instrutivo — tinha, segundo o scholar espanhol, “uma relação complexa — ‘neurótica’, escreveu — com a biografia. Rechaçava as concessões fáceis à nostalgia e ao sentimentalismo, à complacência narcisista. Chegou a afirmar que sua única biografia possível era política e, quando a política terminava, não restava nada que contar”.
Por que a resistência a se abrir, a ter sua intimidade devassada? Antonio Serrano sugere que é preciso levar a sério a tese de Italo Calvino de que a obra, no caso de um escritor, é o mais importante. Ou seja, há uma questão literária. Mas há outra — o caráter introvertido do autor de “Nossos Antepassados” (Companhia das Letras, 424 páginas, tradução de Nilson Moulin). Ele era discreto e tinha pudor de exibir sua intimidade.
Falar em público era, para Italo Calvino, um martírio. Se a exposição fosse improvisada, sem ter base num texto, ele ficava insatisfeito. “Se sentia melhor longe dos olhares, à margem das câmeras. Ele gostava de apresentar sua vida em Paris como o retiro voluntário de um ermitão. Foi seu desejo”, nos anos que viveu na França, “ser um escritor invisível, como suas belas cidades com nome de mulher”.


Porém, apesar da discrição, Italo Calvino “deixou escritos de índole autobiográfica tanto em entrevistas como em textos narrativos”.
Quando estava mais velho — viveu apenas 61 anos —, “sentiu a necessidade de recuperar a memória” (sua história)”. Chegou a pensar em escrever um “livro autobiográfico com foco na sua infância e juventude, especialmente nos meses de luta como partisan, assim como a vida aventureira de seu pai”.
Adeus ao comunismo de viés stalinista
Italo Calvino viveu em momentos cruciais da história da Europa. Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, em 1945, ele tinha 22 anos. Viveu anos sob o fascismo de Benito Mussolini, que assumiu o poder em 1922, um ano antes de seu nascimento. Viveu sob a Guerra Fria. Viveu o Maio de 1968. Ele morou em San Remo, Turim, Roma e Paris.
Tendo falecido em 1985, apesar de visto a glasnost na União Soviética, não pôde ver a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a derrocada do comunismo no país de Lênin, Stálin e Gorbachev. Na juventude, apreciou o socialismo, a ideia de igualdade social entre os seres humanos.
“Como consequência da guerra e suas sequelas na Itália, em sua juventude sentiu o impulso de escrever para que a literatura contribuísse para a criação de uma nova sociedade”, anota Antonio Serrano. “Fazia parte de uma geração que acreditava na literatura como presença ativa na história. Assumia, pois, o papel do intelectual comprometido.”


Aos poucos, dada a violência do stalinismo, que sobreviveu à morte de Ióssif Stálin — a Hungria foi invadida por tanques soviéticos em 1956, três anos depois da morte do ditador —, Italo Calvino desencantou-se com o socialismo, o que não o levou, porém, a endossar as ideais da direita.
Com a desilusão política, acentuou-se a “perplexidade sistemática” de Italo Calvino — “seu assombro constante ante o múltiplo, o intrincado e o relativo de um mundo que tentava compreender a partir da literatura. (…) Seu caráter inteligente e irônico se tornava reflexivo, taciturno e solitário. Ficou fascinado pelas ideias pelo utopista Charles Fourier”.
Antonio Serrano frisa que a “formação e o desenvolvimento” de Italo Calvino “como escritor não podem ser entendidos sem três fatos biográficos fundamentais — um político e dois literários”.
Primeiro, a invasão da Hungria, em 1956, “e a impossibilidade de Calvino e outros intelectuais de promover uma forma de cultura mais aberta provocaram sua renúncia à militância no Partido Comunista Italiano (PCI)”.
Estados Unidos e Paris: novos ares
Segundo, a viagem de Italo Calvino aos Estados Unidos (país admirado por Cesare Pavese e Elio Vittorini), entre 1959 e 1960, deu-lhe uma visão, digamos, mais aberta do mundo. A democracia e a cultura americanas (Herman Melville, Henry James, William Faulkner) sempre empolgaram europeus como o francês Alexis de Tocqueville, a alemã Hannah Arendt e Italo Calvino.


Terceiro, o contato com Paris contribuiu para uma, por assim dizer, abertura de Italo Calvino a novas literaturas. Na capital francesa, teve contato com a semiologia de Algirdas Julius Greimas e os jogos combinatórios do grupo OuLipo” (Raymond Queneau, François le Lionnais e Georges Perec).
O biógrafo postula que, mantendo contato com outras culturas, com escritores de estilos diferentes, foi se “forjando um escritor que entende a criação [literária] como um processo contínuo e aberto a mudanças e metamorfoses”. A cada obra, nasce e morre um Italo Calvino. Ele estava sempre se renovando e por isso sua literatura não parece, no geral, datada. Guarda um certo frescor, como a prosa de Flaubert.
“Esta natureza de Fênix foi o que guiou sua carreira literária desde que descobriu, em 1952, o filão fantástico com ‘O Visconde Partido ao Meio’ [Companhia das Letras, 104 páginas, tradução de Nilson Moulin]. Se converteu em um autor proteico, resistente a toda classificação acadêmica, por mais que os críticos reduzam o potencial de sua obra a uma simples antítese entre realismo e fantasia. (…) A evolução de Calvino representa um sopro de ar fresco. Ao conseguir liberar-se das amarras do realismo de pós-guerra, tão sustentado pelo compromisso político, e adentrar-se no território da literatura fantástica, acertou em cheio.” É uma de suas contribuições essenciais à história literária de seu país, relata Antonio Serrano.


Tendo escapado das amarras políticas, da camisa-de-força do realismo, Italo Calvino optou por experimentar outros campos literários. Por exemplo, a literatura popular e o folclore, o que o levou a editar os “Contos Populares Italianos”; “a narrativa combinatória em vários livros da etapa parisiense; e a pesquisa de fenômenos científicos e cosmológicos para escrever essa estranha e apaixonante obra intitulada ‘As Cosmicômicas’. O trabalho com os ‘Contos Populares Italianos’ firmou sua ideia de que era imprescindível aproximar a literatura das crianças e dos jovens”.
Italo Calvino dedicou-se a divulgar a literatura de outros autores e “adaptou alguns de seus livros para edições infanto-juvenis”. Ouvia pacientemente os questionamentos de crianças e jovens e os atendia pessoalmente ou por carta.
“O invisível adquire a relevância do visível”
Há escritores ditos “naturais”, avessos à expansão intelectual (à leitura, por exemplo, de história e filosofia). Não era o caso de Italo Calvino — um estudioso infatigável. Antonio Serrano destaca que o escritor “transitou pelos caminhos da experimentação narrativa e pela reflexão teórica. O intercâmbio constante entre a atividade criativa e o exercício crítico é uma das características da literatura do Novecento italiano, e nosso autor demonstra possuir dotes excepcionais. Boa prova disso são os numerosos ensaios de natureza ensaística recompilados nos volumes póstumos de ‘Saggi’” (de 1995). Seus interesses eram múltiplos: literatura, língua, arte, cinema, teatro, ciência, história, antropologia, geografia, política, sociedade.


Segundo Antonio Serrano, Italo Calvino “concedia uma extraordinária importância à imagem como germe do processo literário. Em sua cabeça se conformava primeiro imagens e depois procurava dar-lhe forma narrativa ou especulativa”.
Italo Calvino era profundamente interessado nas artes visuais e escreveu ensaios a respeito. A fotografia despertava a sua atenção. Ele escreveu um conto com o título de “A aventura de um fotógrafo”.
Em “As Cidades Invisíveis” e “Palomar” (Companhia das Letras, 120 páginas, tradução de Ivo Barroso) “o invisível adquire a relevância do visível, posto que o infinitamente pequeno compete em igualdade com o imenso”.
A fase mais experimental de Italo Calvino sedimentou a ideia de que é um escritor “cerebral em excesso”. “Não lhe atraíam nem a psicologia nem a análise dos sentimentos.” Ele queria entender e expor na sua literatura o jogo de relações que explica a conexão entre o indivíduo e o mundo. Mas era mesmo um autor frio, nada dado às emoções? Talvez não. Nem João Cabral de Melo Neto era tão “gélido” quanto parece, à primeira vista.


A obra de Italo Calvino não é pequena. Ele escreveu literatura (romances, contos, poesia), crítica literária (ensaios, artigos e resenhas), artigos jornalísticos, crônicas de viagens. Sua correspondência supera 5 mil cartas. Foi editor na Einaudi. Foi antologista, editor científico e tradutor. Escreveu letras de canções e libretos de óperas. Dava a impressão de que Italo escondia Italos.
Dada sua ligação com a Editora Einaudi, Italo Calvino tinha controle absoluto de seus textos. Com o material na gráfica, ele fazia mudanças variadas. Era exigente com a qualidade de sua literatura, e nem sempre ficava satisfeito com o resultado final.
As biografias de Italo Calvino
Italo Calvino morreu há quase 38 anos, tempo suficiente para se escrever biografias. Na Itália, há várias. Entretanto, segundo Antonio Serrano, são falhas. Exceto a de Pietro Ferrua, passam rapidamente por momentos chaves da vida do escritor, como a infância, a adolescência e sua participação na Resistência contra o nazifascismo de Mussolini e Adolf Hitler.


Os biógrafos dão escasso espaço à vida dos pais de Italo Calvino, Eva Mameli e Mario Calvino, critica Antonio Serrano. A vida deles é “cheia de peripécias” e “fundamental para compreender a trajetória pessoal e literária de Calvino”. A formação científica dos pais influenciou a literatura do escritor.
Antonio Serrano ressalva que “boa parte das biografias foi publicada antes que fosse divulgada a avultada correspondência editada por Giovane Tesio, em 1991, e Luca Baranelli, em 2001, e as entrevistas editadas por este último em 2002.
Além das biografias existentes, Antonio Serrado afiança que “são muito valiosos dois volumes de 1995 que centram sua atenção na documentação gráfica (fotografias, documentos de identidade, documentos administrativos): ‘Álbum Calvino’, de L. Baranelli e E. Ferrero, e ‘Biografia Per Imagini’, de P. Barbaro e F. Pierangeli”.
Antonio Serrano cruzou os novos “documentos” — correspondência e entrevistas — com os levantamentos anteriores dos biógrafos e demais estudiosos (da obra, por exemplo). Os arquivos conservados no Fondo Einaudi de Turim são de grande utilidade, diz o pesquisador.
Durante a pesquisa, Antonio Serrano ouviu amigos e colegas de Italo Calvino na Einaudi — como Luca Baranelli, Eugenio Scalfari, Carlo Ginsburg (o grande historiador), Paolo Fabbri, Ernesto Ferrero e os oulipianos Marcel Bénabou e Paul Fournet.
Para compor a biografia, além de buscar os dados pessoais, suas conexões, Antonio Serrano conta que leu toda a obra de Italo Calvino de maneira minuciosa.
Italo Calvino se tornou, postula Antonio Serrano, “um clássico da literatura universal”.
O cinema prestou e presta atenção à obra de Italo Calvino. Roberto Giannarelli dirigiu o documentário “L’isola de Calvino”, em 2005. O canadense Damian Pettigrew fez o documentário “Dans la peau d’Italo Calvino”. O filme independente “Pallokaville”, de Alan Taylor, é inspirado em três contos do escritor italiano. Foi premiado em Veneza.
Usei, para compor este texto, tão-somente a longa e excelente introdução escrita por Antonio Serrano. O livro pode ser comprado no site da editora da Fundación José Manuel Lara e ser lido (confira abaixo) na sua edição virtual — em espanhol. Não há tradução para o português.