Bolsonaro tenta mostrar às Forças Armadas que tem apoio popular para um golpe de Estado

07 setembro 2021 às 12h33

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Caminhoneiros não percebem que governo Bolsonaro aposta no sistema ferroviário, com mais 3 mil quilômetros de ferrovias e 59,5 bilhões de investimento

Em 1974, a Arena sofreu uma derrota acachapante para o MDB de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Henrique Santillo e Lázaro Barbosa (eleito senador). No livro “A Ditadura Derrotada” (Companhia das Letras, 538 páginas), Elio Gaspari registra: “Quando lhe disseram [ao presidente Ernesto Geisel] que a Arena haveria de ter a maioria da Câmara, [Geisel] respondeu: ‘Vamos ter por quê? O que nos assegura? Acho bem possível que não tenhamos… […] Eleição é isso mesmo. O povo vota livre e, normalmente, no contra. E nós temos que respeitar. Pois não fizemos uma eleição? É isto, e pronto”.
Mais tarde, ao fazer um balanço do regime civil-militar, Geisel revelou que decidiu acabar com a ditadura porque era uma “bagunça”. A rigor, não era muito diferente do período anterior. Só havia mudado a indumentária: a farda no lugar do terno.
“Pode-se falar, inclusive, em micro golpe, mas ainda não em golpe de Estado. O que Bolsonaro está tentando mostrar às Forças Armadas é que, se elas ainda não estão dispostas a apoiá-lo numa aventura golpista, o povo brasileiro “quer” o golpe e “está” disposto a segui-lo, inclusive ameaçando o Legislativo e o Judiciário”
Para as Forças Armadas, há o problema da herança maldita, ou seja, quem fica realmente com o legado “sujo”, o estigma de “bárbaros” e “gorilas”. Quando a ditadura acabou em 1985, os militares voltaram para os quarteis e parte significativa dos líderes civis que haviam apoiado o sistema discricionário — sem sofrerem nenhuma pressão para tal — mudou de lado, compondo com o MDB e se apresentando como “novos democratas”. Cada um criou sua própria mitologia. Um contou que socou a cara de um general. Outro disse que protegeu militantes das esquerdas. Alguns contaram que, mesmo na Arena-PDS, desafiaram os “milicos”.
Um pouquinho de verdade acabou sendo útil para esconder um muitão de mentiras. Civis como Aureliano Chaves, José Sarney, Marco Maciel (este, de fato, um político exemplar, mas apoiou os governos militares) e Jorge Bornhausen, entre vários outros, se tornaram, de uma hora para outra, “democratas roxos” e “pálidos” ex-apoiadores da ditadura. A herança maldita ficou para os membros da Aeronáutica, da Marinha e, sobretudo, do Exército.
Quando se fala da ditadura diz-se “ditadura militar”. O componente civil é esquecido, embora os historiadores do pós-64 estejam adicionando o civil à ditadura, agora ditadura civil-militar. Por que preferem, sobretudo críticos de esquerda, excluir a turma civil? Para piorar a imagem do regime ditatorial, que, sendo militar, pode ser visto como mais arbitrário, mais truculento. Mas o que os historiadores estão demonstrando é que tanto na preparação do golpe quando na gestão dos governos militares os civis foram onipresentes e poderosos. Magalhães Pinto e Carlos Lacerda foram decisivos para arregimentar forças civis, e até militares, em apoio a uma medida de força em 1964. Civis, como Gama e Silva, Leitão de Abreu, Roberto Campos, Delfim Netto, Mario Henrique Simonsen, Rondon Pacheco, Petrônio Portella, foram cruciais na sustentação do governo. Se os governos militares obtiveram sucesso na economia, com crescimento chinês, especialmente no governo de Emilio Garrastazu Médici, isto se deve, em larga escala, ao time de economistas citados.
Aliados de Bolsonaro fazem pesquisas — até Luciano Hang, segundo a revista “Veja”, teria encomendado pesquisas (desconfiado das demais) e ficado perplexo com os baixos nível de aprovação do presidente — e os resultados são os piores possíveis. Pelo quadro atual, não tem condição de se eleger. Há três cenários possíveis. Primeiro, do ponto de vista dos números atuais, apresentados por vários institutos de pesquisa, há a possibilidade de Lula da Silva ser eleito no primeiro turno. Segundo, se um candidato de centro — como Rodrigo Pacheco (DEM, supostamente a caminho do PSD) ou Ciro Gomes (PDT; as elites parecem temê-lo, como se fosse um Bolsonaro ou um Fernando Collor de esquerda) — chegar aos 15%, sugerindo que tem como deslanchar, pode quebrar a polarização. Terceiro, se a economia melhorar e se os programas sociais forem assimilados, à populismo, como “de” Bolsonaro, e não como política de Estado, o Capitão parece ter alguma chance de ser reeleito. Difícil, muito difícil, mas não impossível.
“Caminhoneiros parecem não perceber — dada a ideia de que, com Bolsonaro, acreditam que estão se tornando protagonistas da história — o que está acontecendo. A vitória do transporte ferroviário pode significar a derrota dos caminhoneiros, que estão ficando para trás. No caso do apoio a Bolsonaro, há uma cegueira dos ressentidos”
Mas tudo indica que Bolsonaro não acredita mais que tem condições de derrotar Lula e também parece que as elites não acreditam que o presidente seja o político capaz de derrotar o petista. Por isso o desembarque antecipado de um barco que começa a fazer água.
Ao “arregimentar” o país, como suas comiciatas — cujo sentido é motivar e agregar “paramilitares” (travestidos de caminhoneiros), ou seja, um exército informal e disponível a qualquer momento —, Bolsonaro mantém os demais poderes sob pressão. Pode-se falar, inclusive, em micro golpe, mas ainda não em golpe de Estado. O que Bolsonaro está tentando mostrar às Forças Armadas é que, se elas ainda não estão dispostas a apoiá-lo numa aventura golpista, o povo brasileiro “quer” o golpe e “está” disposto a segui-lo, inclusive ameaçando o Legislativo e, sobretudo, o Judiciário.
O bom senso dos militares, notadamente dos dirigentes do Exército — nunca se deu golpe de Estado no Brasil sem a anuência e a participação do Exército (da Proclamação da República ao golpe de 1964) —, pode evitar uma quartelada com relativo apoio popular, especialmente de setores ressentidos com um país que avança e ameaça deixá-los para trás. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, anuncia que o Brasil terá mais de 3 mil quilômetros de trilhos novos, com um investimento de 59,5 bilhões de reais. “Vamos colocar algumas dezenas de bilhões para dentro com as ferrovias autorizadas”, afirma o competente auxiliar de Bolsonaro.
O que Tarcísio de Freitas está dizendo é que, com o aumento da malha ferroviária, o transporte tende a ficar mais rápido e, especialmente, mais barato. Noutras palavras, a tendência é que, a longo prazo, o país dependa menos do transporte rodoviário — que, além de mais caro, é demorado e corre-se o risco de acidentes mesmo em rodovias bem-cuidadas. O ressentimento tende a aumentar. Mas os caminhoneiros parecem não perceber o que está acontecendo, dada a ideia de que, com Bolsonaro, acreditam que estão se tornando protagonistas da história. A vitória do transporte ferroviário — uma das apostas de Bolsonaro e do ministro da Infraestrutura — pode significar a derrota dos caminhoneiros, que, se já estão ficando, ficarão ainda mais para trás. Pode-se sugerir que, no caso do apoio a Bolsonaro, há uma cegueira dos ressentidos, que, usados, acreditam que entraram na história pela porta da frente. O presidente não tem como torná-los figuras realmente proeminentes. Nem Hércules conseguiria. O capitalismo avançado deixou-os para trás — como retardatários.
Um golpe pode ser bom para Bolsonaro, mas não para os militares e, em especial, para a atual boa imagem das Forças Armadas.