Biólogo sugere que vacina contra Covid-19 não sai antes de 18 meses

05 maio 2020 às 11h13

COMPARTILHAR
“O que mais chama a atenção no coronavírus são a facilidade com que se transmite e a diversidade das patologias nos casos graves que estão associadas à infecção”
Halley Margon
Especial para o Jornal Opção, de Barcelona
Doutor em imunologia, o biólogo brasileiro Thiago Carvalho, que fez pesquisas nos Estados Unidos e agora trabalha em Portugal, explica porque o coronavírus não se tornou tão danoso no país — que é menor do que o Estado de Goiás — e avalia que uma vacina não deve ser produzida de imediato. Conta que o sistema de saúde do país de Camões e Fernando Pessoa funciona bem e o governo, na defesa da quarentena, foi previdente.
Sobre o novo vírus, Thiago Carvalho sublinha que “todo ser vivo passa por um processo de mutação toda vez que faz cópias de si próprio. Copiar uma sequência genética, seja para divisão normal das nossas células, seja na produção de novas partículas virais, tem uma taxa de erro. No momento não temos notícias de mutações particularmente preocupantes do SARS CoV 2”.

A mãe do biólogo Thiago Carvalho — Fernanda Carvalho — conta que, menino, quando voltava da escola, nunca fazia os deveres. O fato a intrigava, pois o garoto tinha boas avaliações, nenhuma reclamação. Mas a fatal curiosidade de mãe não podia deixá-la em paz. “Thiago, você não faz os deveres da escola?” Na verdade, fazer ele fazia, mas ainda no ônibus enquanto voltava pra casa, era ali que se desincumbia das tarefas rotineiras. Quando desembarcava do veículo já tinha tudo meio que esquematizado, rabiscado numa folha de papel solta e depois colocada num lugar qualquer. Fazia como se estivesse se divertindo com algum Nintendo ou algo do gênero, e pronto. Com muita naturalidade. Uma criança normal, fazendo coisas normais. A casa era um espaço ocupado por livros onde as pessoas podiam circular e realizar algumas outras atividades domésticas, além de ler — esse o habitat onde o menino e depois o jovem, já naturalmente dotado para os estudos e a pesquisa, cresceu.
Thiago Carvalho é filho único da socióloga Fernanda Carvalho — que durante muitos anos trabalhou com Betinho (Herbert José de Souza — 1935-1997) no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) — e do precocemente falecido economista Fernando Cardim de Carvalho, um dos principais teóricos do pós-keynesianismo no Brasil (Cardim faleceu em 2018, aos 64 anos de idade, vítima de câncer). Casado com a artista e professora de artes a portuguesa Madalena Parreira, têm um casal de filhos. Thiago Carvalho é coordenador do Programa de Pós-Graduação da Fundação Champalimaud de Lisboa — um dos mais respeitados centros de pesquisa biomédica da Europa — e atualmente participa, junto com outros cientistas, dos esforços para estabelecer diagnósticos relacionadas ao vírus SARS CoV 2, o mal afamado coronavírus, em Portugal.
O sr. se formou numa das melhores universidades brasileiras, a Unicamp, em Campinas, São Paulo. Tinha amigos, bons contatos, seus pais morando no Rio, mesmo assim resolveu vir para a Europa e fazer o doutorado em Portugal. Alguma razão específica?
Tive o enorme privilégio de conhecer um dos cientistas que eu mais admirava durante um curso, o imunologista António Coutinho, que na época era diretor da unidade de Imunobiologia do Instituto Pasteur em Paris. O António sugeriu que eu falasse com ele quando estivesse concluindo a graduação e foi o que fiz. Entretanto, quando já estava quase de malas feitas para a França, ele aceitou um convite da Fundação Calouste Gulbenkian para dirigir e recriar do zero o Instituto Gulbenkian de Ciência em Oeiras, perto de Lisboa. Foi uma aventura participar do (re)nascimento de uma instituição. Fiz lá meu doutorado, em imunologia, com a Jocelyne Demengeot.

Concluído o doutorado, não teve vontade de voltar para o Brasil?
Não me ocorreu. Me interessei por um determinado tipo de células, os linfócitos B, as células que produzem os anticorpos, e contatei cientistas que admirava na área para um pós-doutorado. Na época um dos melhores centros era em Birmingham, cidade do Alabama, no Sul dos Estados Unidos, onde a pessoa que descobriu o linfócito B, Max Cooper [professor da Universidade Emory], tinha criado um departamento fantástico. Estive lá durante quatro anos no laboratório do John Kearney.
Em seguida, foi para Portugal e, depois, Nova York. Por quê?
Voltei para Portugal primeiro para passar três anos organizando uma exposição sobre evolução para o museu da Gulbenkian, com o Jose Feijó. Aceitamos o desafio de criar uma exposição de ciência para um espaço dedicado à arte. Foi uma experiência incrível. Quando a exposição fechou, fui diretor da pós-graduação no Instituto Gulbenkian, onde o António Coutinho ainda era diretor. Quando ele passou o manto ao seu sucessor, eu quis procurar outras coisas. Gosto muito da pessoa que veio a seguir no cargo, mas tenho um certo horror a virar um apparatchik. Fui à procura de novas coisas. No fim, acabei em Nova York como editor no “Journal of Experimental Medicine”, uma das revistas mais antigas e conceituadas da biomedicina.
Por que a decisão de voltar?
O maior fator esteve relacionado com questões familiares, então vamos saltar os detalhes.

Mudando um pouco o foco. Há quem diga que o sistema de saúde de Portugal é um dos mais azeitados da Europa. É verdade?
Portugal tem um ótimo sistema de saúde pública. Sofreu muito com a austeridade a partir de 2008, mas ainda assim presta um bom serviço. Existem problemas, como conseguir colocar um número suficiente de médicos no interior, e surgem periodicamente queixas a respeito de tempos de espera para determinados procedimentos. Mas a população aprecia o sistema e é bem servida por ele. Isso se refletiu numa boa capacidade de reação nesta crise.
Imagino que o sr. e seus colegas estejam acompanhando de perto a expansão da pandemia. O que mais te chama a atenção neste vírus especificamente e na forma como está se expandindo desde o começo?
O que mais me chamou a atenção neste vírus foram a facilidade com que ele se transmite e a diversidade das patologias nos casos graves que estão associadas a esta infecção. O vírus SARS CoV 2 em si está muito claramente identificado, com o seu código genético sequenciado e por aí afora, mas a doença Covid 19 nós só começamos a compreender.
Na Espanha, seguindo a Itália, a expansão foi bastante violenta e deixou todo mundo de cabelo em pé. Os governos foram pouco precavidos? Deveriam ter antecipado um pouco mais a quarentena e tomado outras providências?
Os governos agiram de maneira muito diversa. Alguns explicitamente favoreceram parâmetros econômicos sobre os da saúde. Outros fizeram grandes apostas em determinados modelos teóricos que não estavam necessariamente corretos, e pagaram por isso. Mesmo dentro de países tivemos grandes heterogeneidades nas respostas e resultados, entre a Lombardia e o Veneto, por exemplo, no Norte da Itália.
Em Portugal, ao contrário de Espanha e Itália, por exemplo, seus vizinhos de Europa mais próximos, a curva de expansão da pandemia tem sido menos agressiva, não? Como explicar isto?
Portugal agiu cedo, e teve uma boa resposta da população. Isto foi crucial. Com problemas que crescem exponencialmente, cada pequeno atraso pode ter enormes consequências. Não sou epidemiologista, mas também me parece que nos casos da Espanha e da Itália alguns eventos — jogos de futebol, pelo que me contou um colega espanhol, um funeral em La Rioja — também aceleraram o contágio em grande escala. Mas será melhor fazer esta pergunta a um especialista em epidemiologia ou saúde pública.
Como o sr. está participando nas ações de combate à pandemia?
Os institutos de pesquisa estão trabalhando num esforço para aumentar a capacidade de testes, tanto para a detecção do vírus em si, quanto para a detectar anticorpos contra o vírus. Estamos redirecionando esforços para dar apoio em diagnóstico, e em muitos casos também contribuir com material como luvas, máscaras etc. Também há um esforço para agregar, condensar e digerir a enorme quantidade de informação que a comunidade científica internacional está produzindo sobre a Covid-19.
Como e quando foi formado esse consórcio do qual o sr. participa? Quem participa dele? Quem teve a inciativa de sua formação?
Os pesquisadores da zona de Lisboa se auto organizaram muito cedo para entender e combater a epidemia, foi uma iniciativa espontânea que surgiu em vários laboratórios ao mesmo tempo. As pessoas escreviam umas às outras pedindo reagentes, informações, protocolos de laboratório, e rapidamente perceberam que estavam todos a trabalhar em questões semelhantes. Começamos a ter reuniões via internet inicialmente centradas no diagnóstico por PCR do vírus, e a seguir na questão dos anticorpos. Acho que foi legitimamente um processo sem nenhum líder, um esforço comunitário.
“Não há notícia de mutações particularmente preocupantes do SARS CoV 2”
É possível dizer que o vírus está mutando de forma significativa?
Todo ser vivo passa por um processo de mutação toda vez que faz cópias de si próprio. Copiar uma sequência genética, seja para divisão normal das nossas células, seja na produção de novas partículas virais, tem uma taxa de erro. No momento não temos notícias de mutações particularmente preocupantes do SARS CoV 2.
O que se poderia dizer das perspectivas de uma vacina em termos de prazo?
O desenvolvimento de vacinas é um processo difícil, com uma taxa de insucesso enorme. A vacina para Ebola demorou cinco anos para desenvolver e estar pronta para uso em humanos, e isto foi considerado um recorde de velocidade. Neste momento muitas estratégias em paralelo estão sendo tentados contra o SASR CoV 2. Meia dúzia delas já estão em testes preliminares em humanos, mas ainda não temos nenhuma indicação de resultados. Se encontrarmos uma vacina (ou vacinas) que funciona, ainda assim teremos que esperar para que seja produzida e distribuída em quantidades suficientes numa escala global. O número mais otimista me parece ser o de 18 meses, mas isto seria uma aceleração incrível de um processo longo e sem garantias de sucesso.
Sobre o isolamento social. Alguns países, poucos é verdade, não o estão levando a sério. A Inglaterra de Boris Johnson, por exemplo, resistiu em adotá-lo, mas foi obrigada voltar atrás. É possível estimar as consequências de políticas dessa natureza?
A melhor maneira de fazer isso é comparar a mortalidade dos países que resistiram ao isolamento com os seus vizinhos. Na Escandinávia, por exemplo, comparar a Suécia com a Dinamarca e a Noruega. O Reino Unido está entre os países que fizeram uma enorme aposta num modelo teórico — e eu diria que perdeu essa aposta. Ter um cálculo final que não esteja sujeito a debate não me parece possível. Todos os cenários têm incertezas, como calcular as mortes por Covid-19 não diagnosticadas, levar em consideração mortalidade indireta, mas claramente ligadas a pandemia, como os doentes oncológicos que evitam o hospital por medo da infecção. Alguns dados sugerem que a mortalidade sazonal de gripe em algumas áreas pode ter diminuído muito devido ao isolamento social. Evitar contato com os outros não diminui somente a chance de contato com o SARS CoV 2. Enfim, onde traçar a linha e fazer este cálculo é uma decisão subjetiva e difícil.
Como os portugueses reagiram ao isolamento?
Portugal reagiu bem. Na zona de Lisboa, onde moro, vejo uma situação tranquila. Mesmo os hospitais não chegaram a atingir seus limites de funcionamento. As pessoas em geral estão se comportando bem nos espaços públicos, quando vão comprar alimentos e coisas assim. Uma grande preocupação aqui é que esteja se instalando um certo triunfalismo, um “já ganhou” natural, mas perigoso. Também temos muito medo da chegada da primavera e do verão, quando a tentação de sair, ir passear, ir à praia se torna mais forte.
O que esperar para o futuro? Epidemias cada vez mais agressivas e difíceis de controlar? Há algo que possa ser feito para prevenir?
Novas epidemias sempre virão. Ninguém na comunidade de doenças infecciosas está surpreso com o surgimento de uma nova epidemia de coronavírus. Os especialistas da área alertam para este risco há mais de dez anos, baseados em estudos dos reservatórios animais, como o morcego. Não há mágica, é preciso investir na saúde pública, nos sistemas públicos de saúde, na vigilância e na pesquisa. O sistema de saúde precisa ter uma margem de segurança, não pode estar funcionando cronicamente perto do seu limite.