Alberto Manguel é um crítico da estirpe de Harold Bloom, talvez com uma paixão menos militante. Embora conheça as principais teorias literárias, prefere, como o crítico americano, ler diretamente os livros que comenta. Há analistas que sabem tudo o que disseram teóricos e críticos mas não são leitores devotados de literatura. Pode-se dizer que alguns comentários de Manguel, argentino radicado na França e ex-secretário de Jorge Luis Borges (lia para o escritor portenho), são superficiais, mas quase sempre são deliciosos e, não raro, detalhistas. Seus artigos para o suplemento literário “Babelia”, do “El País”, contêm novidades sobre o mundo literário, mesmo quando exploram assuntos batidos. Na edição de 20 de agosto, escreveu uma resenha, “Em busca do sucesso por meio de um romance vergonhoso”, sobre o escritor e professor universitário norte-americano Percival Everett, de 55 anos¹. Não adianta procurar suas obras nas livrarias e sebos brasileiros (o Estante Virtual vende uma obra em inglês²). No site da Livraria Cultura, de São Paulo, o leitor pode encomendar seus romances, mas em inglês. Companhia das Letras, Cosac Naify e Record não publicaram um livro de sua autoria. Na Casa del Libro, de Madri, é encontrado apenas um romance: “X” (Blackie Books, 358 páginas)³, recém-lançado na Espanha (em inglês pode ser encontrado o mesmo livro, com o título de “Erasure”). A Livraria Bertrand, de Portugal, vende cinco livros do autor — nenhum em português. Percival Everett é um escritor desconhecido, exceto dos acadêmicos e daqueles que leem quase tudo, como Manguel. Na sua resenha, Manguel faz primeiro uma denúncia e, em seguida, a crítica literária.

Manguel começa com elogios, aparentemente exagerados, talvez apenas apaixonados: “Ácido, crítico, um mestre da paródia, Percival Everett é uma das pérolas escondidas da literatura norte-americana. Em sua novela ‘X’ o protagonista é um narrador conflitivo que descobre as fraudes literárias [ou meramente comerciais], se inspira nos clássicos e produz uma fraude. Não é de estranhar que um dos mais ousados, originais, inteligentes escritores norte-americanos de nossa época não seja devidamente consagrado em seu próprio país: nos Estados Unidos, Percival Everett é quase um desconhecido”.

Alberto Manguel, em sua biblioteca: “Percival Everett é uma das pérolas escondidas da literatura norte-americana” | Foto: Reprodução

Depois de apresentar Everett brevemente, Manguel faz uma denúncia: “Os estragos causados pelos conglomerados editoriais e as grandes cadeias de livrarias”, aliados na estratégia de “converter o livro em fugaz produto de consumo, têm impossibilitado o reconhecimento de autênticos talentos literários, e têm condenado os leitores da terra de [William] Faulkner [autor de “O Som e a Fúria”] aos minúsculos méritos de um Jonathan Franzen ou às obscenidades de um Brett Easton Ellis”.

Em geral nada furioso, de um pacifismo exemplar e de uma paixão serena pelos livros, Manguel estava em seu dia de fúria quando escreveu o petardo crítico em defesa de Everett e atacou o “sistema” editorial e os autores que se tornam “talentosos” por causa do eficiente trabalho de relações públicas e de exposição maciça de seus livros nas livrarias. Várias livrarias vendem os melhores pontos para editoras. O sistema, copiado dos hipermercados, funciona muito bem. Há pesquisas que mostram que parte dos compradores de livros não sabe exatamente o que escolher e pode acabar adquirindo as obras mais bem divulgadas nas livrarias.

Pode parecer teoria conspiratória, mas não é. Manguel denuncia que oficinas literárias (não dessas amadoras ou idealistas, como as orientadas pelo escritor brasileiro Raimundo Carrero) reduzem os romances a supostas fórmulas mágicas e que há editores altamente especializados que “reescrevem e maquiam os textos” de escritores que aceitam as regras do jogo com o objetivo de se tornarem famosos e endinheirados. Manguel frisa que os editores adaptam as histórias de acordo com “o gosto comercial do momento”. Com ira, o crítico denuncia os “distribuidores analfabetos que decidem que livros merecem ser divulgados e quais não”. O leitor já viu exposta em alguma livraria uma obra de poesia publicada pela ótima Editora Iluminuras? Talvez nem mesmo a caprichada tradução de “Folhas de Relva”, de Walt Whitman, por Rodrigo Garcia Lopes.

Furioso, Manguel ataca as publicações culturais dos jornais. Os suplementos literários estão “cada vez menores e mais néscios”.

O “sistema” denunciado é eficiente, conclui Manguel. Porque a literatura norte-americana é “hoje a mais vendida e a mais traduzida no mundo inteiro”. Mas “também” não deixa de ser “a menos interessante e a mais efêmera”. Evidentemente, o crítico não está se referindo à prosa de Saul Bellow, John Updike, Philip Roth, Joyce Carol Oates, Richard Ford, E. L. Doctorow e o caçula Jonathan Safran Foer.

Se os Estados Unidos não querem reconhecer alguns de seus valores literários, outros países querem, pontua Manguel. Um escritor “ignorado em sua terra natal” pode ser “reconhecido no exterior”. “A França, por intermédio de Baudelaire, revelou os méritos de Edgar Allan Poe, a Alemanha os de Cees Nooteboom, a Argentina os de [Italo] Calvino, a Itália os de Sándor Márai. Everett tem encontrado leitores sagazes na Europa (o Prêmio Gregor von Rezzori foi concedido ao autor pelo melhor romance traduzido para o italiano).”

Jonathan Franzen: autor americano que, na opinião do crítico argentino Alberto Manguel, é superestimado pelos críticos | Foto: Reprodução

Apesar dos elogios no exterior, o público norte-americano não se interessa pela prosa de Everett (Manguel não diz, mas o escritor é negro; não sei se isso faz alguma diferença — talvez faça). Mas “seus extraordinários romances têm adquirido um público cada vez maior do outro lado do oceano. Agora a Blackie Books de Barcelona oferece aos leitores espanhóis um dos melhores romances de Everett [“X”, 358 páginas], numa competente tradução de Marta Alcaraz”. Manguel omite a informação, mas é o primeiro livro do autor publicado na Espanha.

Everett não é um iniciante, nota Manguel. “As mais de 20 obras que Everett publicou desde 1983 (quando apareceu sua primeira ficção, ‘Suder’) têm todas um tom ácido, às vezes sarcástico, às vezes irônico, sempre paródico. Em 1993, David Foster Wallace (outro dos autores impulsionados pela onda comercial) tratou de dizer, com inconsciente ironia, que a ironia debilitava a ficção, e que o escritor norte-americano deveria reconhecer, sem ironia e sem fraudes, a ‘autêntica beleza’ da cultura popular de seu país. Everett, sabiamente sensível aos ingênuos argumentos de Wallace, retrata com humor feroz a sociedade norte-americana. O racismo essencial, a veneração machista pelo aventureiro sem escrúpulos, a corrupção política e a vocação democrática, a violência intrínseca do puritanismo são expostos sutil e convincentemente por meio de uma prosa muitas vezes brilhante, muitas vezes cômica, comovedora e poética, sempre original. Ninguém se parece verdadeiramente com Everett: remotos antepassados poderiam ser o Petrônio de ‘Satiricon’ e o Laurence Sterne de ‘Tristram Shandy’. Suas raízes intelectuais estão em Atenas e Roma, dívida deixada explícita ao menos em três de seus romances anteriores, e por meio de citações de Tito Lívio, Horácio e Ovídio, mas a voz de Everett, em cada um de seus livros, é óbvia e certeiramente a de nosso século miserável” (qual não é?, devemos perguntar ao irado Manguel. O crítico não esclarece se está falando do século 20 ou do século 21, ainda um menino).

Brett Easton Ellis: outro escritor que, na opinião de Alberto Manguel, é superestimado pela crítica literária | Foto: Reprodução
A fabricação de um romance de sucesso comercial

O romance “X” (o título original, “Erasure”, quer dizer, “rasura”, “mácula”) foi publicado em inglês em 2001. “O narrador é um certo Thelonious Monk Ellison, nome que combina o do célebre músico de jazz e o do igualmente famoso autor do romance ‘Homem Invisível’ [de Ralph Ellison, traduzido no Brasil, felizmente]”, diz Alberto Manguel. “Thelonious é um escritor de literatura ‘difícil”, inspirada (como a de Everett) pelos clássicos, e cujos livros, além de não vender, ninguém quer mais publicar. Em sua vida privada as coisas tampouco andam bem: sua mãe sofre de Alzheimer, seu irmão não define a identidade sexual, sua irmã enfrenta extremistas religiosos na clínica na qual faz abortos. Ao mesmo tempo em que Thelonious precisa enfrentar todas essas dificuldades, uma certa Juanita Mae Jenkins, autora de um melodramático romance ‘afroamericano’, com sua miscelânea de lugares comuns (dos quais Everett nos dá desopilantes exemplos) que implicitamente prolongam ancestrais noções racistas, se vê consagrada como a grande estrela do mundo literário norte-americano”.

“Para vingar-se (do público, da literatura, do implacável destino que os gregos chamam moira), Thelonious, sob o pseudônimo de Stagg R. Lee, trama um romance ainda mais convencional que o de Jenkins. Sua agente o vende, por um adiantamento gigantesco, à Random House. Para o cúmulo, seu romance, com o título de ‘Porculo’ (os editores querem chamá-lo de ‘Porkulo’, para que fique menos ofensivo), concorre a um prestigioso prêmio literário do qual Thelonious é um dos jurados; se ganhá-lo, o pobre Thelonious deverá recompensar a si mesmo por uma literatura que abomina”, anota Manguel.

‘“X’ conclui com a célebre resposta de Newton a quem perguntava-lhe sobre a lei da gravidade: ‘Hypotheses non fingo’ [‘Não invento hipóteses’]. Tampouco Thelonious e Everett pretendem explicar alguma coisa”, comenta Manguel.

O crítico argentino conta que a epígrafe de “X” é de Mark Twain, um dos pais literários de Everett: “Nunca seria capaz de contar uma mentira que alguém pusesse em dúvida ou uma verdade que alguém pudesse acreditar”. “O leitor fica advertido”, alerta Manguel, de que o romance de Everett não pretende ser “nem explicação nem documento”. Trata-se de literatura. Entretanto, apesar de não ter a ilusão documental, pelo que diz Manguel faz, sim, um retrato (ou recorte) da realidade. Everett pretende “esboçar o retrato de um escritor narrando a si mesmo, dando-se como prova de absoluta fidelidade que a autêntica literatura requer de seus praticantes, e do absoluto engano a que voluntariamente se entrega o verdadeiro leitor”.

O texto de Manguel é um convite à leitura da prosa de Everett, inclusive para mim, que, confesso, não conhecia nem mesmo seu nome.

Notas

¹ O texto acima foi publicado pelo Jornal Opção em setembro de 2011. Percival Everett hoje, 2019, tem 63 anos. Salvo engano, continua inédito em português.

² Agora, em 2019, melhorou: vende dois livros. Em inglês.

³ Numa consulta feita na terça-feira, 19, é possível encontrar na livraria espanhola mais dois livros: “Cuanto Azul” (em e-book) e “No Soy Sidney Poitier”.