“O orgulho não deveria mesclar-se com o amor. O amor é acolhedor e aceita tudo. Não é calculista, não é civilizado. Não é arte, e sim religião; do contrário, não é nada”

Elizabeth Smart, escritora canadense

A canadense Elizabeth Smart (1913-1986) é autora de um roman (quase) à clef esplêndido, “By Grand Central Station I Sat Down and Wept” (“Junto à Grande Central Station Sentei-me e Chorei”, Editorial Teorema, 121 páginas, tradução de Helena Barbas. Trata-se da edição portuguesa), de 1945. Neste livro, sofrido e prazeroso, conta a história de sua paixão pelo poeta inglês George Barker (1913-1991) — um protegido do bardo americano T. S. Eliot. A história, extraordinária e muito bem contada, merece tradução brasileira. Quando penso em Elizabeth Smart lembro-me do britânico D. H. Lawrence, pela relação livre com a sexualidade, ainda que delicadamente angustiada, e com a natureza. O livro é cult, no estilo (não no conteúdo) de “Werther”, do alemão Goethe. Elizabeth Smart seguia à risca o preceito “penso que um homem põe todo o seu ser em um livro”, de Lawrence. Desconhecida no Brasil, a autora ganhou uma biografia equilibrada, de autoria de Rosemary Sullivan. “Elizabeth Smart” (Circe, 396 páginas, tradução de Laura Freixas) mapeia, com acuidade, a vida, a obra e o tempo da autora. Li (traduzindo trechos e poemas) a versão em espanhol, editada em Barcelona.

A história da bela e irrequieta Elizabeth Smart daria um livro (contestado, por sinal, por George Barker no romance “The Dead Seagull”, de 1950). Daria, não; deu — é o romance “By Grand Central Station I Sat Down and Wept”. Só que conta apenas parte de sua vida e é, claro, um romance. Por isso a biografia escrita por Rosemary Sullivan é um empreendimento louvável. Este texto comenta tão-somente parte da relação de Elizabeth Smart com George Barker. Em 1937, aos 24 anos, a autora entrou na Livraria Bester Book e começou a ler um livro de poesia de George Barker. “As palavras ardiam. Ali mesmo decorou as poesias, pois não lia livros — devorava-os”, revela Rosemary Sullivan. “Tenho que me casar com um poeta. É a única solução”, escreveu a poeta e prosadora. “Este é o homem que estava buscando.”

Sem nada saber sobre George Barker, conhecendo apenas sua poesia — curiosamente, no livro consultado, não havia nenhuma foto do vate britânico —, Elizabeth começou a caçá-lo. Aos amigos, perguntava: “Conhece George Barker?” Pedia para ser apresentada ao poeta e dizia: “Quero me casar com ele”. George Barker ficou sabendo da procura, mas, no início, não a levou a sério.

Em agosto de 1937, relata Rosemary Sullivan, Elizabeth Smart “menciona Barker pela primeira em seu diário. Está lendo ‘Janus’ (1935), ‘Poems’ (1935) e ‘Calamiterror’ (1937) e procurando seus poemas em todas as pequenas revistas literárias. Leu a breve biografia que figurava nos seus livros, descobriu que tinha a idade adequada [ambos nasceram em 1913] e decidiu que ele era o homem que estava buscando”.

George Barker, poeta britânico apadrinhado por T. S. Eliot

Em janeiro de 1939, Elizabeth Smart começou a enviar poemas à revista parisiense “Booster”, editada pelo poeta e prosador Lawrence Durrell. Os dois se tornaram correspondentes frequentes. Numa carta, escreveu: “Li quase todo Auden e MacNeice e me agradam muito. Me emocionei muito ao descobrir Spender, mas ultimamente tem me decepcionado. Eu diria que meu poeta favorito entre os jovens é George Barker. Ele é o que mais me emociona, inclusive quando é imaturo”.

A referência a George Barker, breve mas incisiva, chamou a atenção de Lawrence Durrell. Amigo de George Barker, pensou em arrancar dinheiro de Elizabeth Smart, que julgava rica (seu pai, advogado, era de classe média alta).

Biografia de Elizabeth Smart escrita por Rosemary Sullivan (não há edição brasileira)

Lawrence Durrell sugeriu que George Barker estava disposto a vender seus manuscritos. “Com 25 dólares que a mãe [Louie ou Louise] havia lhe dado para comprar roupa, Elizabeth Smart adquiriu seu primeiro manuscrito de George Barker, um poema intitulado ‘Quem falará desde o útero ou desde uma nuvem?’, do livro ‘Lamento e Triunfo’ (1940)”, anota Rosemary Sullivan.

A escritora admira a força do homem, sua energia, mas tinha pânico de grosseria. Daí a sua procura pelo homem ideal — o poeta. Escreveu sobre o pintor Meredith Frampton, um namorado da estirpe de “O Belo Antonio” (romance de Vitaliano Brancati): “Foi sua delicadeza, sua sensibilidade, sua compreensão, que me fez admirá-lo. São essas qualidades, de fato, o que amo em qualquer pessoa”.

Elizabeth Smart com sua família. Da esquerda para a direita: Jennie Kember (sentada), Alice Kember (no colo), a escritora (centro), Christopher Barker (em pé), Clare Barker (mulher de Christopher, sentada), Lydia Barker (no colo) e, sentados no chão, Rufus Deakin e Leo Barker

Primeiro encontro entre Elizabeth e George

Dada sua poderosa energia, Elizabeth Smart deixou o Canadá, que a sufocava, e foi para a Inglaterra. Manteve relacionamento com George Barker e, com ele, teve quatro filhos.

George Barker e Elizabeth Smart se viram pela primeira vez em 1940, nos Estados Unidos. O poeta estava casado com Jessica Woodward e, contra a vontade das duas, George Barker submeteu-as a um triângulo amoroso. No romance, Elizabeth Smart escreve a respeito do primeiro encontro: “Estou numa esquina em Monterrey, de pé, esperando que chegue o automóvel, com todos os músculos de minha vontade retendo o terror de enfrentar o que mais desejo no mundo… Detrás dela [de Jessica] aparece aquele a quem eu tenho esperado há tanto tempo, aquele que insuportavelmente tem cruzado meus sonhos noturnos. Manuseia, de forma grosseira, as malas e as passagens, e arrasta os pés”.

Elizabeth Smart e George Barker com a filha Georgina, em 1941

Mais tarde, quando sua editora, Alice Van Wart, perguntou como definiria sua reação verdadeira ao ver George Barker descendo do veículo, “Elizabeth exclamou: ‘Exatamente ao contrário do que eu esperava’. [George Barker] Era fraco, com óculos e nada sofisticado”. Logo, Jessica Woodward e Elizabeth Smart estavam disputando o irascível poeta, um homem, no dizer de Maurice Carpenter, de “olhos relampejantes”.

Elizabeth Smart transformou a história de sua vida e de seus amores, ou de seu amor, em alta literatura. Sua paixão, desmedida como qualquer paixão, por George Barker poderia ter resultado em grosseria e pieguice. Deu noutra coisa: uma história fascinante cercada por uma literatura de qualidade. “Elizabeth Smart era um espírito livre, algo totalmente escandaloso”, disse sua amiga Diana Battye.

Rosemary Sullivan mostra que era muito mais do que isto. “‘À maneira de Polyana’, Elizabeth tinha a firme convicção de que existia um companheiro para sua alma, ‘alguém de minha espécie’, com o qual poderia realizar sua ética da felicidade total, em cuja companhia poderia viver e também escrever.”

George Barker contribuiu para “liberar” Elizabeth Smart, pois entendia sua arte e sua força criadora. Para a pintora Simonette, a escritora “era encantadora, estranha e misteriosa”. Sobre o amor, há o registro da própria Elizabeth Smart: “O orgulho não deveria mesclar-se com o amor. O amor é acolhedor e permeável e, como a natureza, aceita tudo. Não é calculista, não é civilizado. Não é arte, e sim religião; do contrário, não é nada… Adoro, adoro tudo que é selvagem, e minhas orações, ferozes e sem sentido, as faço em segredo, intensamente. Sentimental? Não!! Covardes, covardes, covardes os que se escondem atrás das palavras, mas uma rajada de vento os assusta. Vento selvagem, vem!”

Elizabeth Smart com George Barker no fim dos anos 1970

A poesia de George Barker

George Barker, chamado por alguns de “vagabundo”, dedicou toda sua vida à poesia. Era poeta em tempo integral. Quando precisava de dinheiro — os livros não eram suficientes para garantir sua sobrevivência —, escrevia anúncios para uma agência de publicidade. Tinha uma relação tensa com o pai (violento e barulhento) e amava a mãe, uma mulher forte. Traduzir poesia é sempre um risco, sobretudo para quem não é tradutor profissional e não o faz a partir do original (trabalho a partir do espanhol), mas vamos lá. Verto (adapto) a seguir um poema de Barker sobre a mãe: “Irresistível como Rabelais, porém mais terna com/os cachorros mancos e os pássaros feridos que a rodeiam,/ela é uma procissão que ninguém é capaz de seguir/ao modo de um cachorrinho que segue/uma charanga”. Uma tradução, como se vê, que perde parte da poesia, porque seca, nada perita. Ao buscar a clareza, a definição do sentido, sei que perdi alguma coisa.

Sobre o pai, que detestava (quando vivo), George Barker escreveu: “O desejo acima de tudo de viver/Como se a alma fora pedra,/convencidos de que não podemos dar/nem amar, já que estamos sós/e estaremos sempre”.

Robert Fraser escreveu “Chamaleon Poet — A Life of George Barker” (Vintage Publishing, 592 páginas). O poeta não era um “apêndice” de Elizabeth Smart, assim como a escritora, apesar da paixão “desregrada” (para o olhar externo, quiçá comedido), não era apêndice do britânico. “Não há vez em que ele passe algures perto de mim sem que todas as gotas do meu sangue saltem alvoraçadas. A minha mente pode raciocinar que a tensão registra apenas a neutralidade, mas o meu coração sabe que nunca uma verdadeira neutralidade esteve tão cheia de paixão”, escreve a autora. Adiante, assinala: “Não há beleza em negar o amor, exceto talvez pela morte, e em direção ao amor que outro caminho existe? Negar o amor, iludi-lo mesquinhamente com a pretensão de que o não consumado se manterá eterno, ou que o amor sublimado alcança mais de perto o amor celestial, é repulsivo”. Os dois trechos são da edição portuguesa.

Publicado no Jornal Opção em 2011