A invenção da palavra genocídio e os delitos em Guantánamo
28 março 2021 às 00h01
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Não é sem razão que, ao contrário de todos os outros chefes de Estado, Bolsonaro comece a ser acusado de genocida
Halley Margon
De Barcelona
Longe das vistas do grande público, os vencedores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) dispunham todos eles de caça-talentos para buscar aqueles que mais lhes interessavam entre a qualificada e especializada mão de obra alemã, pouco importava que fossem fervorosos SS ou criminosos de guerra. Bastava dar uma limpada nas fichas e nos históricos para metê-los no sistema de recrutamento. Os alemães tinham uma palavra para designar este processo, diz o escritor e professor de Direito Internacional do University College de Londres Philippe Sands: “Persilschein”, ou Certificado Persil. Aparentemente, vem daí o termo em espanhol “blanquear” — que também serve para se referir à famosa lavagem de dinheiro do idioma português (ver artigo “A guerra ideológica para ‘apagar’ fatos e indivíduos da história da Espanha”¹). O Persilschein “fazia referência a uma popular marca de detergente para roupa (Persil) que segundo a publicidade ‘lavava mais branco que o branco’”. Enquanto isso, no grande palco, o tribunal armado na cidade sede das espetaculares demonstrações nazistas levava a juízo uma trintena de luminares do regime derrotado.
O julgamento de Nuremberg apresentava enormes desafios do ponto de vista da jurisprudência, na medida em que tratava de crimes relativamente inéditos, consideradas as escalas, os métodos, os propósitos, as vítimas e os perpetradores. Como tipificar tais delitos? Como qualificar aqueles mandantes tão criteriosamente escolhidos (outros tantos poderiam estar sentados entre aqueles réus)? O que dizer de gente que numa só tacada manda matar e orienta o extermínio de milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares, milhões de pessoas? De mulheres, de idosos, de crianças, de bebês nos colos das mães. De aldeias ou cidades inteiras. Que estabelecem a priori a meta de varrer da face do continente o que consideram uma etnia inteira (os judeus europeus). E o fazem, organizada e metodicamente, em escala industrial. Para os juízes das nações vitoriosas era, sem dúvida, um desafio e tanto. E não bastava colocar os perpetradores frente a um pelotão de fuzilamento e disparar. Era preciso estabelecer um rito maximamente civilizado e consumá-lo. Um processo juridicamente estruturado, racionalmente defensável conforme as normas e os princípios da mais coerente ciência do direito.
Hoje, quando se fala de crimes contra a humanidade e genocídio, parece que estamos nos referindo a expressões que existem desde sempre. Até porque não é de hoje que nós, os humanos, vimos praticando atos de crueldade contra nossos semelhantes em níveis quase sempre indecentes. Um pouco e é como se essas palavras tivessem adquirido uma certa carga de banalidade, de modo que a um ou outro pouco se lhe dá que o chamem de genocida — o que talvez se dê por ignorância e/ou pura cretinice.
Cada uma dessas expressões saiu da pena e da imaginação jurídica de dois homens de origem judaica que, atuando isoladamente e sem que um soubesse da existência do outro, nasceram na mesma região da Polônia, na mesma época, morando na mesma cidade (Lemberg ou Lwów ou Lviv) e estudado na mesma faculdade e em algumas matérias até compartilhado o mesmo professor. Hersch Lauterpach (o responsável pela existência da expressão crimes contra a humanidade) nasceu em 1897, na cidadezinha de Zólkiew, a poucos quilômetros de Lemberg, para onde se mudou com a família em 1911, e Rafael Lemkin (o criador da palavra genocídio) nascido em Ozerisko em 1900, e que em 1921 se instalou em Lwów. Embora estes dois juristas e seus dois conceitos tenham sido cruciais para o julgamento daqueles luminares nazistas, vale a pena destacar o segundo desses termos, pelo que tem de originalidade filológica, digamos assim.
Porque, embora possa eventualmente parecer que existisse desde sempre, a palavra genocídio é uma genuína invenção de Lemkin e a data do seu aparecimento é precisamente o ano de 1945. Lá está, no “Aurélio”: “Genocídio s.m. (c1945) 1 — extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso <o g. de judeus na Segunda Guerra Mundial; 2 — p.ext. destruição de populações ou povos… 3 —aniquilamento de grupos humanos…”.
Para ser mais exato, a palavra aparece pela primeira vez no capítulo nove de um livro de 700 páginas, concluído em novembro de 1943, titulado “O Domínio do Eixo na Europa Ocupada”. A nova palavra era “uma mescla do termo grego genos (tribo ou raça) e cidio (do latim cidere, matar)”. “A este capítulo (Lemkin) deu o título de ‘Genocídio’”, diz Philippe Sands.
A história de Lemkin, do seu conterrâneo e contemporâneo Lauterpach e das quase que inacreditáveis coincidências que os unem é contada no livro de Sands chamado “Calle Este-Oeste” (East West Street, 2016). Sands é também o autor do recém-lançado “Ruta de Escape” (“The Ratline”, no original).
Os criminosos que nunca irão a julgamento
Os julgados em Nuremberg eram gente a cargo de um Estado e um governo eleito e só foram levados a juízo porque foram derrotados numa guerra na qual se meteram, não porque cometeram crimes, por mais atrozes que tenham sido esses crimes. E isso não é desimportante.
Entre os propósitos do espetacular julgamento estava o de inibir futuras aventuras similares. Não que se repetissem exatamente na forma e no conteúdo (câmaras de gás e métodos tão eficazes de matar). Daí o esforço pela criação de uma nova jurisprudência. Daí a importância da tipificação e da criação de termos como genocídio e crimes contra a humanidade. Ao menos era essa a intenção. Uma ou outra vez produziu algum efeito. Em 1998, usando o conceito criado por Lauterpach, o juiz espanhol Baltazar Garzón conseguiu um mandado de prisão contra o ex-ditador Augusto Pinochet, do Chile. Após pouco menos de dois anos de prisão domiciliar em Londres, o criminoso foi liberado e voltou para morrer em paz ao lado dos comparsas e familiares. Os mais realistas sempre souberam que ao fim e ao cabo é tudo uma questão de relações de forças. Porque a verdade é que os vencedores nunca vão a julgamento.
No final dos anos 1990, o jornalista Christopher Hitchens compôs um alentado dossiê probatório contra o todo-poderoso ex-secretário de Estado Henry Kissinger. Entre as acusações estava o envolvimento direto na morte de 600 mil civis no Camboja e 350 mil no Laos, resultado de bombardeios ilegais por ele ordenados durante o governo de Richard Nixon e o apoio ao general Suharto no genocídio de pelo menos 200 mil pessoas em Timor Leste, a partir de 1975. Desnecessário dizer que o processo não prosperou. Tampouco foram processados qualquer dos comandantes aliados que planejaram e levaram a cabo o bombardeio indiscriminado das cidades alemãs que queimaram milhares de civis — morticínio minuciosamente descrito no livro “O Incêndio”, do historiador Jorg Friedrich.
Mas não é preciso ir tão longe. Agora mesmo, crimes e abundantes ilegalidades seguem sendo praticadas pelos homens que ocupam o castelo. E, talvez, para alguns desses crimes sequer haja ainda a devida tipificação.
Que nome dar, por exemplo, às práticas levadas a cabo na prisão criada por George Bush (que Barack Obama prometeu fechar e não fechou) na indecente possessão de Guantánamo? Que designação dar à atrocidade cometida contra o cidadão Mohamedou Ould Slahi (nascido na Mauritânia), capturado e torturado pelos serviços secretos americanos e mantido preso por quatorze anos na ilha caribenha sem nunca ter sido acusado de nenhum delito? Como levar a juízo a cadeia de comando responsável pelo até agora indefinido crime (e os selvagens abusos) cometido contra o mauritano e os inúmeros condenados sem julgamento que estiveram com ele em Guantánamo?
A história de Mohamedou é mostrada agora no filme “The Mauritanian” (do diretor Kevin Macdonald) com Jodie Foster e Tahar Rahim, sempre com um pouco de atraso, porque é o usual da indústria do cinema nos Estado Unidos, mas, ainda assim, melhor que nada. Mohamedou foi finalmente liberado em outubro de 2016, após um largo processo movido pelo escritório da advogada Nancy Hollander (Jodie Foster) contra o governo americano.
A responsabilização de Bolsonaro
E no Brasil a quem caberá a tarefa de tentar levar o atual governo aos tribunais internacionais?
É verdade que a pandemia tem sido inclemente por todas as partes. O número de vítimas fatais na Inglaterra de Boris Johnson é um dos mais altos do planeta proporcionalmente à sua população (130 mil mortos para 66 milhões de habitantes). Mas após os desastrosos arroubos iniciais, o primeiro-ministro britânico corrigiu a rota e hoje a ilha da rainha apresenta uma das melhoras taxas de contenção da pandemia em todo o mundo (medidas de controle e vacinação).
Bolsonaro, ao contrário, insiste em sua política — mesmo conhecendo as trágicas consequências. As mortes da pandemia no Brasil não são, portanto, resultado apenas de incompetência. São, também, o produto de uma política intencional conduzida sob a responsabilidade direta do presidente da República. Portanto, não é sem razão que, ao contrário de todos os outros chefes de Estado, Bolsonaro comece a ser acusado de genocida.
Nota
Confira link para o texto “A guerra ideológica para apagar fatos e indivíduos da história da Espanha”
A guerra ideológica para “apagar” fatos e indivíduos da história da Espanha