A história de Hu Shuli, a jornalista “mais perigosa” da China

08 novembro 2020 às 00h00

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Censurada pela ditadura, a editora da revista Caijing recua pra avançar, e faz jornalismo de qualidade em circunstâncias difíceis

“A Era da Ambição — Em Busca da Riqueza, da Verdade e da Fé na Nova China” (Companhia das Letras, 551 páginas, tradução de Berilo Vargas e Christina Baum), de Evan Osnos, repórter da revista “New Yorker”, é um livro do balacobaco. Há de tudo um pouco: história, economia, política, cultura. Mas o forte são as histórias muito bem contadas de alguns indivíduos. São reais, mas parecem fábulas. A obra ganhou, merecidamente, o National Book Award de 2014. (Uma falha da edição patropi é a ausência de fotografias.)
A China é uma ditadura, portanto combate todo aquele que propõe a democracia. A população de 1,4 bilhão de habitantes é vigiada e censurada. Até determinadas palavras são proibidas na internet. De repente, uma reportagem não positiva sobre o regime sai do ar, sem nenhum aviso. É o governo em ação. Determinadas pessoas, dissidentes ou não, têm os nomes vetados na imprensa. Evan Osnos relata os fatos de maneira leve, como se estivesse escrevendo um conto e não descrevendo a mais crua realidade. Mas é exatamente por não gritar, ao apresentar as histórias, é que seu livro se torna mais valioso. Há uma empatia que aproxima para compreender e distancia para avaliar.
São excelentes as histórias da jornalista Hu Shuli, do economista Li Yifu, do blogueiro Han Han, do Nobel da Paz Liu Xiaobo (que não pôde receber o prêmio, pois estava preso), do artista plástico e arquiteto Ai Weiwei, do advogado cego Chen Guangcheng (sua história é extraordinária). Há outras igualmente interessantes. Por meio delas, além da observação direta da vida na China, país onde viveu durante oito anos, Evan Osnos explica o que é o país. Há a ditadura, claro, e, apesar disso, há vida que corre, mais colorida talvez do que quer o governo do presidente Xi Jinping, que, como o pai, foi perseguido por Mao Tsé-tung.
Conta-se, a seguir, a luta de Hu Shuli para fazer jornalismo de qualidade, tentando romper os limites de uma ditadura, que humilha, prende e tortura opositores ou mesmo quem apenas reclama do que há de errado no governo, como a corrupção sistêmica.
Em 2008, quando ocorreu um forte terremoto na província de Sichuan, a imprensa oficial, no lugar de expor os fatos verdadeiros, como o número de mortos, informou que “o tremor tinha ‘tocado fundo o Partido Comunista Chinês’”. A cobertura da revista “Caijing” destoou.
A “Caijing” (“o nome significa ‘finanças e economia’”) exibiu estimativas “sobre o número de mortos e feridos” e informou que “muitas vítimas do desastre” não haviam recebido suprimentos de emergência. A cobertura era distinta, nada oficialesca. Havia jornalismo na parada. Evan Osnos, oriundo de um país no qual o jornalismo se recusa a ser o sorriso do poder e a cárie dos leitores, quis saber a razão de a “Caijing” ser “diferente”.

A diferença era Hu Shuli, uma chinesa de 1,60m, “que ganhara fama testando os limites da livre expressão na China”.
Ao chegar à redação da revista, para conhecê-la, Evan Osnos falou primeiro com o editor Qian Gang, que o advertiu que Hu Shuli “trabalhava de forma ‘brusca e impetuosa como uma rajada de vento’”.
Hu Shuli fala muito e rápido. “Outro colega comparou a experiência de conversar com ela a estar na frente de uma metralhadora disparando.” O principal controlador da revista, Wang Boming, disse a Evan Osnos, “meio brincando, meio a sério: ‘Tenho medo dela’”. Chegou a ser descrita como “a mulher mais perigosa da China”.
Escândalos envolvendo altas figuras do meio empresarial e político eram implacavelmente reportados pela equipe de Hu Shuli. Era a James Bond do jornalismo da China? Não é bem assim. A editora cultivou excelentes fontes nos meios oficiais, o que, de alguma maneira, servia como uma rede de proteção. A jornalista dizia, segundo Evan Osnos, “que era apenas ‘um pica-pau’, a martelar interminavelmente numa árvore, tentando não derrubá-la, mas fazê-la crescer mais reta”. O que mostra todo o seu realismo jornalístico e político.
“Caijing” vendia 200 mil exemplares — o que não é um número superlativo, por se tratar de China — e era (e ainda é) lida pelos altos escalões do governo e do mundo empresarial. “Havia ainda dois sites da ‘Caijing’, um em chinês, outro em inglês, que juntos atraíam cerca de 3,2 milhões de visitantes individuais por mês.” A coluna de Hu Shuli era uma espécie de “parada” obrigatória. A jornalista “dava”, anualmente, “uma palestra que atraía a cúpula econômica do Partido Comunista”.

Na China, há dezenas de repórteres presos (28 em 2008), não por mentirem, mas por dizerem a verdade, o que é um incômodo permanente para uma ditadura. A verdade, na terra de Mao Tsé-tung, o fantasma que assombra a nação, é inimiga do poder. “Quando a organização Repórteres Sem Fronteiras classificou os países por liberdade de expressão em 2008, o ano do terremoto, a China ficou em 167º lugar entre 173 países — atrás do Irã e à frente do Vietnã”, registra Evan Osnos.
Ao verificar como “Caijing” cobria os fatos e a orientação editorial de Hu Shuli, o correspondente americano diz ter percebido que se tratava da “primeira publicação chinesa a ter a ambição de tornar-se uma das melhores empresas jornalísticas do mundo”. O economista Andy Xie corroborou: “É diferente de tudo que se vê na China. Sua existência, de certa forma, é um milagre”.
Na época de Mao Tsé-tung, o todo-poderoso que operou o assassinato de 70 milhões de chineses, Hu Shuli “se tornou Guarda Vermelha”. Familiares mais próximos eram figuras proeminentes do Partido Comunista. Como muitas pessoas, foi trabalhar no campo, e descobriu que “os agricultores não tinham motivo para trabalhar”. Em 1989, quando trabalhava para o jornal “Diário dos Trabalhadores”, explodiu o movimento da Praça Tiananmen. A jornalista aderiu às manifestações e disse aos colegas: “Devíamos cobrir isto”. Mas havia uma ordem: “Não era para publicarmos uma só palavra a respeito”. Ela acabou suspensa por 18 meses, mas não foi presa.

Mais tarde, Hu Shuli se tornou editora internacional do “‘China Business Times, um dos primeiros jornais do país dedicados a cobrir as fronteiras recém-ampliadas da economia”. Era um avanço, mas a jornalista queria mais.
Filho de um ex-embaixador e vice-ministro do Exterior, Wang Boming havia estudado finanças em Columbia e trabalhado como economista no departamento de pesquisas da Bolsa de Valores de Nova York. De volta à China, uniu-se a Wang Qishan (membro do Comitê Permanente do Politburo) e Zhou Xiaochuan (diretor do Banco Central da China), “estrelas ascendentes do” Partido Comunista. Outro “aliado”, Gao Xiquing, foi guindado ao posto de chefe do fundo soberano da China. O grupo dava informações privilegiadas a Hu Shuli, que furava, de maneira espetacular, a concorrência.
Wand Boming decidiu lançar uma revista, em 1998, e Hu Shuli aceitou dirigi-la. A editora “impôs duas condições. Wang não usaria as páginas dela para promover seus outros negócios, e lhe daria um orçamento de 250 mil dólares para pagar salários altos o suficiente para impedir que repórteres aceitassem suborno”.
Na primeira edição da “Caijing”, Hu Shuli, exibindo seu imenso talento, revelou que “pequenos investidores tinham perdido milhões quando uma empresa imobiliária chamada Qiong Min Yun faliu, apesar de pessoas que dispunham de informações privilegiadas terem sido avisadas”. O Departamento de Propaganda não apreciou. A corrupção grassa na China, mas o governo comunista não quer que o país seja apresentado como “corrupto” nem interna nem externamente. Os investidores, em nome da revista, tiveram de pedir desculpas. A verdade não podia ser perdoada.
Em 2003, a repórter Cao Haili, da “Caijing”, alertou a redação sobre o vírus SARS em Hong-Kong. “A imprensa chinesa vinha informando que as autoridades de saúde tinham contido a propagação” do “novo e misterioso vírus”. Era falso. “A verdade era que a epidemia se alastrava.” A revista fez uma cobertura ampla, bem informada, e inclusive apontando os erros do governo chinês. De repente, o Departamento Central de Propaganda proibiu a publicação de novas reportagens.
Um professor americano aconselhou Hu Shuli: “Se permanecer na China como jornalista, jamais fará parte da grande imprensa internacional”. A editora decidiu ficar e fazer um jornalismo da melhor maneira possível, apesar de todas as restrições do Grande Irmão Asiático.
O Departamento de Propaganda advertiu que, se fosse notificada com três cartões amarelos, a “Caijing” poderia ser fechada. O governo avisou que a censura deveria ser feita pela editora, Hu Shuli. Era, no dizer do sinólogo Perry Link, como “viver debaixo de uma ‘anaconda enrolada no lustre do teto’”.
Acossada, Hu Shuli às vezes dizia aos editores e repórteres: “Não devemos dizer isto. Talvez a gente não deva ir tão longe”. Mas sempre que possível, de maneira inteligente, a jornalista enfrentou o poder e publicou informações cruciais e de interesse público.
Em 2007, a revista publicou uma reportagem com o título de “De quem é Luneng?”. Investidores haviam adquirido 92% de um conglomerado, que valia 10 bilhões de dólares, por uma ninharia. Os ativos do grupo iam de usinas de energia elétrica a um clube de futebol. O governo agiu rápido e impediu que a revista circulasse. “A equipe de Hu foi obrigada a rasgar à mão os exemplares já impressos.” Um editor disse: “Todos se sentiram humilhados”. O poder comunista mostrara, mais uma vez, que estava vivo e atentíssimo — mais forte do que nunca. Os comunistas chineses dizem com frequência: “Não somos como Gorbachev”.
Um “método” para driblar — ou ao menos tentar — o controle do governo é fazer um jornalismo de alto rigor técnico, sem emocionalismo. “Nunca afirmamos nada de forma emotiva e pessoal, como ‘fulano mentiu’. Tentamos analisar o sistema e dizer por que uma boa ideia ou intenção não pode se tornar realidade”, ensina Hu Shuli.
Cheng Yizong, ex-chefe de redação do “Diário Metropolitano do Sul”, que ficou cinco meses na cadeia — porque “irritou” o governo comunista —, tem uma visão crítica do trabalho da equipe da revista: “Os tópicos de ‘Caijing’ não afetaram o sistema dominante fundamental, por isso é uma coisa relativamente segura. Não estou criticando Hu Shuili, mas, em certo sentido, ‘Caijing’ está apenas servindo a um grupo de interesse mais poderoso e relativamente melhor”. Há jornalistas que postulam, no registro de Evan Osnos, “que a maior habilidade de Hu era jogar os grupos de interesse uns contra os outros”.
O governo da China não aceita nenhuma reforma política que reduza o poder do Partido Comunista — até a Justiça é submetida. Hu Shuli, aponta Evan Hosnos, acredita que a reforma política pode tornar o país aberto e os governantes, mesmo assim, podem manter o poder. É uma realista, claro. Mas os comunistas temem o “fantasma” de Michail Gorbachev.
Hu Shuli mostra-se hábil no trato com a ditadura, por isso “via a censura como uma questão negociável; quando as autoridades da propaganda se enfureciam, ela tentava não discutir. Prometia melhorar, prestar mais atenção, evitar aquele erro no futuro”.
“Se não é absolutamente proibido, nós fazemos”, frisa Hu Shuli. A editora aproveita-se das brechas para fazer o melhor jornalismo possível, bem escrito e apurado. O governo pode até vetar, mas não tem como provar que está “errado”. “Precisamos de um sistema de controles recíprocos. Precisamos de transparência”, afirma a jornalista. Quer dizer, a China precisa de reformas que, obviamente, o Partido Comunista rejeita — optando por reformas exclusivas na economia.
Se controla os jornais e revistas impressos e digitais, com pulso de aço, o governo não consegue manietar, inteiramente, a internet. Derruba sites, blogs, mas sempre há chineses protestando e acossando o governo. O vice-diretor do Departamento de Propaganda, Liu Zhengrong, lamentou: “Nosso desafio é que a internet ainda está crescendo”. “Na internet”, assinala Evan Osnos, “não havia como saber quem escreveria alguma coisa perigosa até ela ser escrita”.
Ao perceber que o povo chinês queria informação de primeira linha, para se informar (e se formar) a respeito dos acontecimentos, Hu Shuli “triplicou o tamanho da redação, para mais de 200 repórteres. A revista contratou uma ex-banqueira de investimentos, Daphane Wu, como gerente administrativa, e ela triplicou as vendas, em dois anos”.
“Caijing” ia muito bem, como uma publicação respeitada pelo governo e pela sociedade, mas Hu Shuli e o patrão, Wang Boming, se atritaram. A editora queria uma publicação de padrão internacional. O empresário pensava numa publicação de qualidade, porém circunscrita à realidade da China (de que há uma longeva e forte ditadura em curso). Capitalista, não queria ser “mártir político”.
O governo chinês determinou que “Caijing” não colocasse jornalistas para investigar “a corrupção financeira dentro do sistema da TV estatal”, além de outros “temas altamente sensíveis. “Mas eles foram em frente assim mesmo”, lamenta Wang Boming.
O chefão da revista decidiu “enquadrar” Hu Shuli. As reportagens de capa deveriam ser submetidas ao proprietário e a revista deveria “dedicar-se a informações positivas sobre finanças e economia”. Era a decisão de Wang Boming, atendendo as ordens do governo.
Wang Boming e sua equipe começaram a vetar reportagens. A redação ficou constrangida. Para não perder jornalistas, Hu Shuli decidiu enfrentá-los, publicando uma reportagem vetada.
Evan Hosnos diz que “‘Caijing’ era a mais lucrativa das revistas de Wang”, e Hu Shuli “queria que uma parte maior ainda dos lucros fosse usada para ampliar a operação, temendo que, se não fizesse isso, ficaria para trás na nova era da internet”. Deu-se o paradoxo: a funcionária “tentando” melhorar e o patrão tentando “piorar” o produto.
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