A escuta do sofrimento psíquico na Pandemia da Covid-19

27 março 2020 às 13h53

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Como lidar com o desamparo frente ao imprevisível? É fundamental a aceitação de que é uma doença grave, que mata e que a única solução inclui todos nós
Renata Wirthmann G. Ferreira, Janaína Cassiano Silva, Tatiana Machiavelli Carmo Souza e Carmem Lúcia Costa
Especial para o Jornal Opção
O mundo globalizado terminou o ano de 2019 sob completo desconhecimento de uma epidemia que nascia na China. Um novo vírus que surpreendeu a população daquele país, mas que, para o Brasil, era visto como algo de outro mundo — do Oriente, do outro lado do planeta, distante e, aparentemente, sem conexão com o nosso cotidiano. No entanto, logo no começo de 2020, descobrimos que em um mundo globalizado nada é de outro mundo e não tardou percebermos que a Covid-19 evidenciaria a força das redes mundiais, com suas conexões e fluxos de pessoas e mercadorias, um fluxo que aumentou muito nos últimos 20 anos, período em que a China se tornou responsável por 18% de todas as transações econômicas do mundo.
Diante de tamanho protagonismo na economia mundial e das conexões cada vez mais ágeis, não é de se estranhar a rápida circulação da Covid-19 pelo planeta, alcançando o lugar de pandemia em menos de quatro meses desde seu aparecimento na China. O que era uma doença desconhecida e distante, passou a ditar as normas do nosso cotidiano, impondo, por exemplo, restrições de circulação de pessoas em todo o mundo.
A Covid-19 está deixando impactos gigantescos. Os mais explícitos são as mortes, a crise econômica e o colapso do sistema de saúde. A medida em que a doença avança para todas as classes sociais, outros problemas se evidenciam: a aglomeração da população prisional, a falta de infraestrutura nas comunidades, a crescente população em situação de rua.
O número de mortos nos lembra da existência dos mais vulneráveis: os idosos, diabéticos e hipertensos. As prateleiras dos supermercados e farmácias vazias expõem o lado egoísta e irracional da população. O isolamento social, para os que têm casa, colocam em xeque as escolhas de vida de cada um, suas relações amorosas, a maternidade, a paternidade, a violência doméstica, a carga mental da casa sobre as mulheres, a educação dos filhos, a diminuta metragem dos apartamentos nos grandes centros, antes utilizados apenas para dormir, agora para passar semanas inteiras.

As decisões governamentais sobre o fechamentos do comércio, parte da indústria e a paralisação de serviços não essenciais evidenciam a fragilidade socioeconômica da população e dos negócios, a iminência do desemprego e das falências que levarão, num curto prazo, à impossibilidade de pagar a prestação da casa, a conta de água e de comprar os produtos de alimentação e higiene, necessários para se manter no isolamento social. Nessa sequência catastrófica, a população mais vulnerável terá de sair às ruas procurando ajuda e, inevitavelmente, comprometendo o plano, inquestionavelmente necessário, de isolamento social. Caso as políticas públicas gerem um ponto mínimo de equilíbrio dessas questões, para que a população consiga se manter em isolamento social e evite a contaminação abrupta e maciça da população, restará ainda uma importante questão: a do adoecimento mental durante e pós-pandemia.
Desde o primeiro caso, confirmado no Brasil, no dia 26 de fevereiro de 2020, percebemos que nós, assim como os chineses, italianos, espanhóis e norte-americanos, passaríamos pelos mesmos estágios em relação à pandemia e de que o fato de ela ter chegado aqui, somente após ter se instalado em tantos países, infelizmente, não modificou a sequência das etapas de reação.
A primeira delas, a negação (explicitada no discurso de alguns representantes e na postura das pessoas), que ocorre devido ao insuportável de não saber o que fazer com algo de tamanha magnitude e velocidade. Frente à impossibilidade de negar algo como uma pandemia, resta a insatisfação, a raiva e o ressentimento. Essa reação é tão perigosa quanto a anterior, pois, enquanto a primeira leva à demora em tomar providências essenciais, a segunda leva ao desvio do foco no verdadeiro problema para uma perigosa cortina de fumaça: a xenofobia, por exemplo.

Após todo esse desperdício de tempo e libido, negando e acusando, resta caminhar para a barganha. Infelizmente, essa etapa pode ser tão perigosa quanto as outras duas anteriores, pois trata-se de um terreno muito conhecido e confortável para os curandeiros, religiosos oportunistas e fake news. Muitos vão adoecer e até morrer nessas barganhas, como os que beberam álcool anticongelante tóxico na Turquia (que supostamente preveniria a contaminação), ou se contagiaram nas aglomerações das igrejas, que prometiam proteger seus fiéis do vírus por meio de orações.
Os que sobreviverem a essas três etapas terão, ainda, que lidar com a quarta: o desamparo frente ao imprevisível. Embora para cada um de nós essa pareça ser, emocionalmente, a pior, coletivamente ela é extremamente necessária, pois sem ela não nos recolheríamos a nossas casas, sem ela continuaríamos ingenuamente acreditando em charlatães e fake news e, fundamentalmente, sem ela não chegaríamos ao único ponto possível frente a uma pandemia: a aceitação de que é uma doença grave, que mata e que a única solução inclui a todos nós.
Aceitação
É sobre a quinta e última etapa, a da aceitação, que inclui um difícil processo de retificação subjetiva, que gostaríamos de aprofundar, pois esta será, sem dúvida, muito mais longa do que se imagina e levará, não meses, mas anos. Nessa etapa, integramos o fato de que a grave pandemia da Covid-19 é um evento completamente inédito e, portanto, desconhecido. Com a psicanálise, sabemos que todo desconhecido dispara um estado de angústia no sujeito. Sabemos, ainda, que angústia é um afeto fundamental tanto para a capacidade de defesa quanto para abrir a possibilidade de retificação subjetiva, de modificação do sujeito. Inicialmente, a angústia provoca um enorme mal-estar que nos leva a uma importante questão: como enfrentar a pandemia sem adoecer mentalmente? Existem diferentes possibilidades de se responder tal questão. Apresentaremos algumas reflexões sobre o sujeito e o contexto social no qual está inserido, ou seja: desde a possibilidade de pensá-lo em sua singularidade até a compreensão deste como sujeito social.

Em termos de Saúde Mental coletiva, existem algumas recomendações preconizadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que nos auxiliam no enfrentamento dos efeitos da pandemia da Covid-19.
As Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os) nos serviços hospitalares do SUS destacam que esta atuação deverá ser disponibilizada aos pacientes hospitalizados, seus familiares e à equipe de saúde, com o objetivo de garantir um espaço para uma escuta qualificada, capaz de levar o sujeito a elaborar e lidar melhor com a situação da doença.
O trabalho do analista, neste contexto, oferece um cuidado diferenciado do saber médico que, para poder cuidar do corpo, inevitavelmente excluirá o sujeito. Esse é um acontecimento esperado em contextos hospitalares e terá uma acentuação expressiva com a superlotação dos hospitais durante a pandemia. Esse fenômeno ocorre devido à capacidade ensurdecedora de uma doença, sobretudo uma com o potencial da Covid-19. Toda a cena pandêmica é ensurdecedora: dos contagiados, dos suspeitos, dos mortos, dos isolados e dos sobrecarregados.
É fundamental darmos uma atenção especial a este último grupo, dos sobrecarregados, que são os profissionais dos serviços essenciais como de saúde e segurança que, inevitavelmente, ficam mais expostos à contaminação. Quanto maior a indefinição acerca da pandemia, maior a pressão e expectativa sobre esses profissionais e, consequentemente, maior o sentimento de impotência e desamparo que estes experimentarão. Esse impacto emocional pode levar a uma piora no quadro de ansiedade, insônia, irritabilidade e tensão que poderá, por sua vez, levar à automedicação, o consumo exagerado de álcool, cigarro e alimentos.
Tais profissionais experimentarão ainda um nível mais complexo de isolamento, pois seu contato físico e social poderá ser evitado por amigos e familiares por saberem que estes são vetores de contaminação. Essa combinação de fatores pode levar a uma angústia intensa, capaz de causar uma desarticulação da capacidade simbólica e consequente quebra do discurso, no qual o próprio sujeito está inscrito, como ocorreu com a enfermeira italiana que, frente ao medo de infectar seus pacientes, se suicidou ao se ver infectada pela Covid-19. O trabalho do psicanalista neste contexto seria o de possibilitar que, diante da angústia extrema, a enfermeira pudesse recuperar o encadeamento simbólico através da rearticulação dos significantes em que o imperativo — não contaminar — pudesse se articular a outro significante, no lugar de morrer — isolar, por exemplo.
Levando em consideração a impossibilidade de prever ou calcular a extensão e os consequentes danos da pandemia da Covid-19 no Brasil e no mundo, tanto em termos coletivos quanto pessoais, podemos inferir que o processo de aceitação levará anos e que o mundo não voltará sozinho para o lugar, mesmo porque não haverá um lugar para voltar e sim um lugar a ser reconstruído e reelaborado. O percurso de enfrentamento da pandemia será semelhante ao árduo trabalho de Sísifo forçado pelos deuses a empurrar a pedra como punição, um trabalho que muitas vezes parecerá inútil e sem esperança, mas, como Sísifo, todos nós empurraremos, com todo o esforço do mundo, essa imensa pedra pandêmica. Ao final desse esforço, o objetivo será atingido e veremos a pedra desabar. Neste momento, belo e angustiante, vamos nos deparar com nossa condição miserável e vitoriosa e perceberemos que a dor de empurrar a pedra estava apenas no começo e levaremos anos para nos reconstruir subjetivamente e coletivamente. Qualquer tentativa forçada de retorno imodificado carregará consigo o fantasma da iminência de uma nova pandemia.
Renata Wirthmann G. Ferreira (Psicologia/UFCAT), Janaína Cassiano Silva (Psicologia/PPGEDUC-UFCAT), Tatiana Machiavelli Carmo Souza (Psicologia-UFCAT) e Carmem Lúcia Costa (Geografia/PPGGEO – UFCAT/ PPGIDH- UFG) são professoras-doutoras.