A melhor maneira de saber se mereceu a láurea é conhecendo sua poesia. Seis poemas são uma pequena mostra, mas provam uma poesia de alta qualidade

Louise Glück: poeta americana | Foto: Reprodução
1
“Porque em nosso mundo/alguma coisa sempre escondida,/pequena e branca,/pequena e o que chamas/pura, não lamentamos/como lamentas, caro/mestre sofredor; tu/não está mais perdido/do que nós, sob/o pilriteiro, o pilriteiro que sustenta/harmônicas bandejas de pérolas: o que/te trouxe entre nós/que te ensinaríamos, embora/ajoelhes e chores,/juntando tuas grandes mãos,/em toda a tua grandeza nada/sabendo da natureza da alma,/que nunca há de morrer: pobre deus triste,/ou nunca tiveste uma/ou nunca perdeste uma.” O poema é da americana Louise Glück, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2020, e está inserto no livro “Antologia de Poesia Norte-Americana Contemporânea”, de 1997, Editora da UFSC, organizado por José Roberto O’Shea e com tradução de Maria Lúcia Milléo Martins.
Maria Lúcia Milléo Martins traduziu cinco poemas de Louise Glück — por sinal, com precisão: “Violetas”, “Flores Silvestres”, “A papoula vermelha”, “A rosa branca”, “O lírio prateado”. Pedro Gonzaga traduziu poesias da americana para o jornal “Estadão”, entre 2017 e 2018.

Este livro contém a tradução de cinco poemas de Louise Glück | Foto: Jornal Opção
Louise Glück, de 77 anos, é poeta, crítica de poesia (ensaísta) e professora de Yale, uma das mais respeitadas universidade dos Estados Unidos.
A Academia Sueca afirma que Louise Glück ganhou o Nobel “por sua voz poética inconfundível que, com beleza austera, faz universal a existência individual”. Parece uma avaliação que cabe como uma luva para várias poetas. Mas, pelo pouco que li de Louise Glück, parece precisa.
“Mesmo se Glück nunca negasse a importância do contexto autobiográfico, ela não deveria ser encarada como uma poeta confessional. Glück busca o universal, e nisso ela se inspira em mitos e motifs clássicos, presentes na maior parte do seu trabalho. As vozes de Dido, Perséfone e Eurídice — a abandonada, a punida, a traída — são máscaras para um eu lírico em transformação, tão pessoal quanto válido de maneira universal”, afirma a Academia Sueca.
2
Poema “A rosa branca”, de Louise Glück, na tradução de Maria Lúcia Milléo Martins: “Isto é a terra? Então/não sou daqui//Quem és tu na janela acesa,/agora à sombra das folhas trêmulas/do viburno?/ Podes sobreviver onde não vou durar/ Além do próximo verão?//A noite inteira os galhos esguios da árvore/movem-se e sussurram à janela iluminada./Explica a minha vida, tu que não fazes sinal algum,//embora eu chame por ti na noite://não sou como tu, tenho apenas/meu corpo como voz; não posso/desaparecer no silêncio —//E na manhã fria/sobre a superfície escura da terra/vagueiam ecos da minha voz,/brancura que firme se consome em escuridão//como se finalmente fizesses um sinal/para me convencer de que também não pudeste sobreviver aqui/ou para me mostrar que não és a luz que chamei/mas o breu atrás dela.” (Viburno: “planta flexível como o vime e que se enrosca às árvores”.)

Louise Glück: nenhum de seus livros de poesia ou de crítica literária foi traduzido para o português | Foto: Reprodução
Louise Glück, segundo o “Estadão”, lançou “12 coleções de poesia” — presumo que são 12 livros — e obras de ensaios sobre poesia.
A Academia Sueca sugere que sua poesia “busca a clareza”. Todos os escritores buscam, por certo. Alguns menos, outros mais. Talvez, pela poesia lida por mim, busca mais a luz, rever a vida pela poesia, do que a clareza. Porque não é fácil tornar “claro” — preciso — aquilo que é enviesado e ambíguo.
O poeta, professor e tradutor Pedro Gonzaga assinala, no “Estadão”: “Filha de uma família de imigrantes húngaros de origem judaica, Glück é conhecida por uma obra marcada pela precisão e pela economia a fazer contraste com seu tom confessional, criando um estranho distanciamento subjetivo”. Uma interpretação um tiquinho mais luminosa do que a da Academia Sueca, que às vezes comenta as obras de maneira genérica, protocolar — o que não significa, no geral, equivocada. “Outro aspecto importante é um retorno aos temas clássicos, seja pelo culto ao mundo natural, assunto dominante em seu premiado ‘Wild Iris’ (1992), seja pela retomada criativa de figuras que povoam a mente de poetas e leitores filiados à tradição ocidental”, registra Pedro Gonzaga. O apontamento da retomada dos “temas clássicos” é correta, mas, se o crítico substituísse “temas clássicos” por temas universais, estaria igualmente justo.
Poetas quase sempre são excelentes comentaristas de poesia. Parece ser o caso, segundo Pedro Gonzaga. “A economia e a clareza de suas avaliações, seja na análise de suas memórias, seja sobre os desafios da lírica, em muito lembram essas mesmas qualidades admiráveis em seus poemas. Numa era de politização total dos temas e de guetificação da experiência humana, numa arte que mais parece propaganda de meia dúzia de lemas gastos, suas palavras são água cristalina e fresca no mais desolador dos verões”, pontua o professor.
3
O poema “O dilema de Telêmaco”, de Louise Glück, na tradução de Pedro Gonzaga: “Nunca consigo decidir/o que escrever/nas lápides de meus pais. Sei/o que ele quer: ele quer/amado, o que por certo/vai direto ao ponto, particularmente/se contarmos todas/as mulheres. Mas/isso deixa minha mãe/a descoberto. Ela me diz/que isto não lhe importa/para nada; ela prefere/ser representada por/suas próprias conquistas. Parece/pura falta de tato lembrar aos dois/que alguém não/honra aos mortos perpetuando/suas vaidades, suas/projeções sobre si mesmos./Meu próprio gosto dita/precisão sem/tagarelice; eles são/meus pais, consequentemente/eu os vejo juntos,/às vezes inclinado a/marido e mulher, outras a/forças opostas.”
Os Estados Unidos são uma nação de grandes poetas, como Emily Dickinson, Marianne Moore, Edna St. Vincent Millay, Elizabeth Bishop, Anne Sexton e Sylvia Plath. Louise Glück merece figurar na lista, não pelo Nobel em si — e já havia sido laureada com o Pulitzer —, e sim pela beleza de sua poesia.

Edição em espanhol de um livro de Louise Glück | Foto: Reprodução
A melhor maneira de saber se Louise Glück mereceu o Nobel de Literatura é avaliando sua poesia. Seis poemas não permitem uma avaliação ampla. Mas provam a qualidade de sua poesia. O poema “Flores silvestres”, tão bem traduzido, merece um adjetivo que não sai de moda: é lindo.
4
Parábola da fera
Louise Glück
O gato anda em círculos na cozinha
com o passarinho morto,
sua nova possessão.
Alguém deveria discutir
ética com o gato enquanto ele
perscruta o débil passarinho:
nesta casa
nós não exercemos
a força deste jeito.
Diga isso ao animal,
seus dentes já
fundos na carne de outro animal.
(Tradução de Pedro Gonzaga)
5
Flores silvestres
Louise Glück
O que estão dizendo? Que querem
vida eterna? Seus pensamentos são mesmo
tão arrebatadores assim? Com certeza
não olham para nós, não nos ouvem,
em sua pele
mancha de sol, pó
de botões-de-ouro: estou falando
com vocês, vocês que olham fixamente por entre
os talos de grama alta agitando
o pequeno guizo — Ó
alma! alma! Basta
olhar para dentro? Desdém
pela humanidade é uma coisa, mas por que
desprezar o vasto
campo, seu olhar elevando-se acima das nítidas cabeças
dos botões-de-ouro silvestres em direção a quê? Sua pobre
ideia de céu: ausência
de mudança. Melhor que a terra? Como
saberiam, se não estão nem
aqui nem lá, eretas entre nós?
(Tradução de Maria Lúcia Milléo Martins)
6
O lírio prateado
Louise Glück
As noites ficaram frias de novo, como as noites
de começo de primavera, e quietas de novo. Será
que a conversa te incomoda? Estamos
sozinhos agora; não temos razão para silêncio.
Vês, sobre o jardim — a lua cheia nasce.
Não verei a próxima lua cheia.
Na primavera, quando a lua nascia, significava
que o tempo era infinito. Anêmonas
abriam e fechavam, as sementes
em cachos caíam dos bordos em pálidas lufadas.
Branco sobre branco, a lua nascia sobre o vidoeiro.
E no arco em que a árvore se divide,
folhas dos primeiros narcisos, ao luar
prata-verde-claras.
Juntos, chegamos perto demais do fim para agora
temermos o fim. Nessas noites, não estou nem mesmo certa
de que sei o que significa o fim. E tu, que estiveste
com um homem —
depois dos primeiros gritos,
não faz a alegria, como o medo, barulho algum?
(Tradução de Maria Lúcia Milléo Martins)
Olá, Euler,
Por acaso, encontrei essa matéria sobre Louise Gluck, com minhas traduções. Muito obrigada pela surpresa e pelo elogio.
Maria Lúcia, as traduções são bem-feitas, rigorosas. Não são versões de ocasião. Li todo o livro, deliciado, com as versões de outros poetas.
Excelente matéria.