Nos sertões de Goyaz há uma dolente saudade que se prende, desde a nossa formação, nos idos dos setecentos, à lembrança de outras paragens que os aventureiros deixaram nas voltas dos caminhos, atrás de rios e serras; de amores talvez perdidos e recordações perenais. A saudade no coração dos que partiram, sempre foi uma constante.

Era assim a sina dos que deixaram suas terras, famílias, sentimentos e adentraram na terra estranha do coração do Brasil, na busca de melhores dias, de fortunas concebidas no pensamento; tantas vezes enganosas. Essa saudade, por certo, aflorou no nosso cancioneiro, por meio de melodiosas modinhas que se firmaram em nosso cenário cultural.

Sertão! Essa palavra já vinha por si só marcada de conotação saudosa. Ser muito, ser demais, ser ausente, ser, talvez para sempre, esquecido! Era o mistério insondável de longes terras, tão diferente do mar tenebroso que os antepassados dos bandeirantes tinham dominado.

O mar era menos horrendo, por certo, que o inferno verde, a floresta escura e solene, que guardava em seu seio profundo, surpresas e perigos, dúvidas e pavores, como os animais ferozes, répteis venenosos, insetos esquisitos, febres das mais variadas; além de dificuldades na travessia de caudalosos rios e serras íngremes, além ainda, das tribos de índios que os mesmos julgavam ferozes e imbatíveis, canibais e violentos, mas que foram massacradas em grande maioria.

Mas, pelas patas dos animais e pelo cansaço dos pés a trilhar incertos caminhos, o homem “civilizado” adentrou o grande sertão com as dúvidas e os temores daquele que se via num nevoeiro de árvores, cipós, despenhadeiros, buracos, valas, rios, córregos, atoleiros, formigueiros, onças, cobras, vales, morros, serras, chapadões, campinas; um mar verde que se cortava com dificuldade, muito mais que as ondas bravias ou o mar cambiante.

O que acalentava o coração desses homens? Que canção carregava o mesmo no peito e no pensamento que poderia, um dia, transbordar-se em sentimento de pertencimento a um chão de dificuldades? O que cantava o índio ensimesmado entre as matas escuras, isolado de uma maneira geral, num misto de ritual e magia? O que cantava o cativo, o escravo sofrido, que vinha a terras distantes, com a lembrança de seus avoengos em terras de África, para sempre perdidas?

Nesse cadinho, na Geografia das incompreensões de um mundo embrutecido pela sede de dinheiro e poder, de riquezas e sucessos, de exploração e violência, nasceu o sentimento musical goiano, que mais tarde, no século seguinte, brotaria entre os becos e vielas de cidades históricas como Vila Boa, Meia Ponte, Santa Cruz, Jaraguá, Corumbá, Santa Luzia, Trahyras e Bonfim. 

Música que era misto de um viver entristecido pelo abandono do sertão, mas, ao mesmo tempo, um canto de louvor ao exílio vegetal, em terras abraçadas pelo verde dos morros e pelo faiscar das pedras brutas que restaram após a escassez do ouro. Também na concepção da saudosa pianista Belkiss Spenciére Carneiro de Mendonça em seu trabalho A música em Goiás, as primeiras manifestações da música sacra passaram a ocorrer em Vila Boa desde 1757, pelo trabalho do Padre Manuel de Andrade Verneck e em Meia Ponte, pelo vigário José Joaquim Pereira da Veiga, este já mais ao final dos idos dos setecentos.

Mas eram apenas isoladas manifestações, já que o meio era ainda marcado pela busca do ouro e não fixação na terra. Só no século XIX é que as primeiras corporações musicais, os primeiros professores, as primeiras aulas de música se efetivaram na Província de Goyaz, a partir do governo de Tristão da Cunha Menezes, que foi de 1783 a 1800. Em 1799 havia uma aula de música em Santa Cruz de Goyaz, conforme documento de recibo de pagamento de professor, enviado ao Governo Colonial.

Assim, a partir do século XIX, a modinha, estilo notadamente romântico, dorido, cismarento e marcado de queixumes, adentra o sertão de Goyaz, na Geografia das melodias, mescladas entre o paulista ausente de sua terra, o índio deslocado e perseguido e o negro cativo e sofredor. Nos salões, em suas tocatas ou nas ruas, em dolentes serenatas, clássica ou popular, a modinha marcou os lugares e os territórios do sertão de Goyaz!

Na Geografia dos estilos musicais goianos desde os idos dos setecentos, é possível mapear as influências sofridas por nosso primeiro estilo musical, que se tornou marcante em comunidades primevas como os arraiais perdidos no imenso sertão. 

Capa do magistral trabalho A modinha em Vila Boa de Goiás, publicado há exatos 30 anos pela ilustre pesquisadora Maria Augusta Calado de Saloma Rodrigues, inserido na famosa “Coleção Documentos Goianos”, da UFG. A professora aparece, em outra fotografia, ao lado do saudoso maestro Braz Wilson Pompêo de Pina Filho, que há quase 30 anos faleceu. A ele também nossa saudade e reconhecimento.

Mesmo com atraso em relação às outras províncias por um determinismo geográfico e histórico, nossa modinha se identificou com as raízes goianas, com o sentimento goiano e com as paixões da gente que, primeiro, pisou o cansaço desse chão.

O que se cantou, antes, porém, em torno das fogueiras nas longas noites do desbravamento em busca do inesperado? O que se cantava nas aldeias perdidas, num rito desconhecido, de um povo longe das influências de outros povos? O que se cantava nas primeiras senzalas das cidades como Vila Boa, Meia Ponte, Santa Luzia e Santa Cruz, e que se derramava pelas vielas e becos, até alcançar o infinito?

Há que se mapear os sons vindos de camadas diferentes de uma sociedade mesclada e confusa, na tentativa de afirmação. Onde os primeiros acordes das vilas do ouro, dos salões, das ruas calçadas de pedras iluminadas pelo luar, nas tocatas familiares, nos terreiros e nas fazendas? Onde se colocar a alma goiana derramada em significados e essências dos primeiros dias de nosso chão?

Haverá, por certo, uma Geografia derramada em dolentes sentimentos de homenagem às raças, diversas e sofridas, que alicerçaram o ser goiano, ser (tão) inflamado em alma e sentimento, nascido da terra, no calor do sertão.

Nessas notas, a homenagem sincera e evocativa ao trabalho magistral de Maria Augusta Calado de Saloma Rodrigues, intitulado A modinha em Vila Boa de Goiás, publicado há exatos 30 anos (e que bem merece uma nova edição), à pesquisa da inesquecível Belkiss Spenciére Carneiro de Mendonça, inigualável pianista e ao legado do extraordinário maestro e criatura humana que foi Braz Wilson Pompêo de Pina Filho que, também, há 18 anos foi chamado pelo Criador.

Há para todos eles um espaço de honra e dignidade na Geografia dos feitos culturais da terra de Goyaz!