Os grileiros chegaram de repente
10 julho 2022 às 00h00
COMPARTILHAR
Logo ao chegar, o notei meio diferente. Foi então que lhe indaguei: “O que aconteceu, seu Sizenando, estou notando o senhor entristecido”
Saindo mansamente de seu quintal, sombreado pelas mangueiras e banhado pelas águas de um rego, surgia o seu Sizenando dedilhando uma violinha tosca, feita por ele mesmo e cantando uma cantiga mais ou menos assim:
“Marimbondo amarelo me mordeu
Na pestana do olho e doeu
Nunca vi marimbondo como o teu
É o teu ai! é o teu, teu ai…”
Sizenando, um senhor octogenário, não sabia ler nem escrever, mas vivia feliz com a vida e com as sapiências que aprendeu com esta. Era carapina, pedreiro, artesão, fabricante de rapadura e açúcar mascavo. Pequeno agricultor, plantava cana, feijão, mandioca, abóbora e inhame e, nas horas vagas, sobrava tempo e se transformava em músico de rara sensibilidade.
Fazia seus próprios instrumentos: uma violinha, uma rabequinha, um reco-reco, um tamborzinho etc. Tudo feito com muito capricho e sabedoria, para alcançar a sonoridade ideal e desejada.
O tamborzinho, por exemplo, era feito de um galho grosso de tamboril, podado na lua nova, cuidadosamente ocado com formão e seco com a quantidade controlada de luminosidade solar. O couro, que o tampava nas duas extremidades, tinha de ser de uma fêmea erada de veado mateiro, curtido num soro especial feito da casca de barbatimão. Os amarrios deste no tronco oco eram feitos com embira do olho do buriti, retirada na lua minguante, para não interferir na sonoridade do instrumento e balanceada com colares de sementes do capim do brejo, habilmente perfuradas com pontas de osso.
Sizenando era um músico habilidoso. Elaborava suas próprias cantigas, com letras e melodias, as quais armazenava todas na memória. Outras músicas do seu vasto repertório dizia ter aprendido com Zé Caetano, um cego cantador que aos fins de semana pedia esmolas cantando e tocando rabeca nas feiras dos povoados e morava num ranchinho, bem na boca dos gerais, vizinho do seu Sizenando. Lá ele vivia com uma companheira e seu fiel ajudante, conhecido pelo apelido de Zizuíno.
Sizenando gostava de alegrar os visitantes com suas músicas e seu proseado recheado de saberes do local. Orgulhava-se de sua casa, a única das redondezas com paredes de adobe. Dizia orgulhoso que ele mesmo fizera os adobes e levantara as paredes. Como também era carapina, assentou as portas e os portais de madeira rústica. Só o telhado era coberto com palmas de buriti.
Casa de batente alto, abrigava, além do proprietário, a esposa, duas filhas e duas netas, que vez ou outra participavam de suas cantorias, principalmente quando executava um ritmo denominado por ele de rodada.
Sempre falava, apontando para um pequizeiro dentro de um cercado: “Tá vendo aquele pequizeiro? Pois é, quando eu morrer, quero ser enterrado debaixo da sua sombra, onde descansam minhas éguas e meus cavalos.”
Na última vez que o visitei, embora não fosse esta minha intenção, passei em sua casa para lhe dar um presente que era uma das coisas que o deixavam bastante feliz. Tratava-se de um garrafão de um vinho barato chamado Cantina da Serra, que sempre dizia ser uma das coisas de que mais gostava.
Logo ao chegar, o notei meio diferente, todo entristecido e encabulado. Foi então que lhe indaguei:
— O que aconteceu, seu Sizenando, estou notando o senhor entristecido. O que foi?
Ele então, se pôs a falar.
— Mês passado chegou por aqui, numa caminhonete, um homem alto com chapéu de grã-fino, trazendo quatro capangas, todos armados com espingardas. Desceu do carro e foi logo perguntando: “De quem são essas terras?” No que respondi, “são nossas”. Ele então retrucou. “Pois fique sabendo que essas terras me pertencem.” Abriu uma pasta e retirou de dentro uns papéis dizendo: “Tá aqui os documentos todos passados em cartório.”
E continuou:
— Foi então que lhe falei: “Mas seu moço, meu avô nasceu aqui, meu pai também e eu que estou com 85 anos, sempre morei aqui.” O senhor da caminhonete respondeu “não interessa, o que vale é este documento”. E, ainda disse: “Não quero conversa, da próxima vez que eu passar por aqui, não quero ver ninguém nas minhas terras, acelerou o carro e foi embora.”
Tentei consolar seu Sizenando, embora lá fundo eu soubesse o que estava acontecendo. Ele ainda comentou meio tristonho:
— Deve ser o tal do grileiro que o finado Zuza do Tatu de Cima falava.
Fiquei por ali mais um tempinho, me esforçando para esconder as lágrimas da minha revolta e impotência. A senhora me serviu um café, bebi e logo depois peguei o caminho de volta.
Fiquei sabendo que seu Sizenando morreu um mês depois, de tristeza. Dizem que sua cova foi feita debaixo do frondoso pequizeiro, mas passado cerca de um ano, mataram suas éguas e seus cavalos, derrubaram o pequizeiro e tudo que por lá existia foi posto ao chão. Os vizinhos mudaram para os povoados e cidades. Da esposa, das filhas e das netas, nunca mais ouvir falar.
Os boatos e notícias que me chegam através dos amigos, falam que aquela boca de gerais se transformou numa grande plantação de soja e que as informações sobre os antigos moradores, são raras e evasivas.
O tempo foi passando. Como as águas daquele rego que banhava o fundo do quintal da casa de Sizenando, nunca mais voltei à região.
Às vezes, acordo no meio da noite, com os olhos marejados, sonhando com aquele local e, em meio à confusão do sonho, ainda me aparece o som daquela cantiga, embalada pelas folhas do buriti …
“Marimbondo amarelo me mordeu…!”