Uma comparação rudimentar entre a diabetes e os mananciais para mostrar como o modelo de exploração está acabando com nossas águas

Flagrante do Rio do Peixe, na Bacia do Araguaia | Foto: André Monteiro

De maneira geral – ou bem específica – como é o caso dos cursos d’água do oeste da Bahia, sul do Piauí, noroeste do Tocantins e do Maranhão e também norte de Minas –, as águas do Cerrado padecem de um mal semelhante à diabetes escondida ou disfarçada, que quando se manifesta, dificilmente deixa seu portador escapar com vida.

No caso da diabetes, a doença vai minando paulatinamente alguns órgãos vitais, ocasionando, por fim, sua falência. A amputação de membros é apenas uma das manifestações, mas a doença também ataca rins, coração e sistema nervoso.

A diabetes pode ser considerada uma doença crônica, que tem como causa a falta de produção de insulina no organismo, que é um hormônio controlador da glicose nas correntes sanguíneas.

Numa comparação rudimentar entre a diabetes e os rios do Cerrado, a insulina que mantém o equilíbrio dos rios tem origem nos lençóis subterrâneos, que são fontes de águas armazenadas nas rochas porosas sedimentares, as quais, ao longo de milhões de anos, foram sendo depositadas na região. É o caso dos depósitos no arenito Urucuia, em Minas, oeste da Bahia e noroeste do Tocantins; o arenito Poty, do sul de Piauí e Maranhão; o arenito Botucatu, da bacia do Paraná; e tantas outras formações.

Quando a fonte de insulina é insuficiente, os cursos d’água superficiais entram em entropia, que se manifesta de diversas formas. Isso altera a dinâmica do rio, como se tivesse afetado o seu sistema nervoso, e aumenta a turbidez da água, como se seus rins deixassem de funcionar.

Mas vamos além: o veneno utilizado pela agricultura intensiva fica no solo e, quando carreado para o leito do rio, afeta seu sistema vital, fazendo desaparecer grande parte de sua fauna.

A ausência de água nos lençóis subterrâneos provoca a amputação de vários membros integrantes da bacia. Essa amputação se inicia com a migração das nascentes até o desaparecimento total de muitos cursos d’água. Esse é o início do fim, que se conclui com a morte do rio e de todo seu entorno, incluindo a desestruturação de comunidades humanas, através da desterritorialização.

Nunca compreendi a atitude de certos funcionários públicos, que, utilizando-se de imagens de satélite, argumentam que 40% ou 50% de Cerrado ainda estão preservados. A imagem de satélite, para tal finalidade, mostra apenas o dossel da vegetação arbórea restante.

Sim, porque a tecnologia não mostra a vegetação que constitui os estratos inferiores do Cerrado, incluindo a vegetação rasteira, constituída basicamente por gramíneas, com uma grande variedade de capins nativos e bambuzinhos, que na realidade exercem uma função ecológica vital para Cerrado, pois é o tipo de vegetação que retém as águas das chuvas, que lentamente vão abastecer os lençóis subterrâneos e formarem os aquíferos – a insulina dos rios.

Fico a indagar a quem interessa esse tipo de informação descalçada de uma visão sistêmica do Cerrado. Será que é utilizada para justificar mais ocupações intensivas, ou reflete simplesmente falta de conhecimentos?

Não entendo também, ou talvez não queira entender, a visão obtusa de certos profissionais liberais, funcionários públicos ou free-lancers, contratados para falarem que a vazão dos rios tem diminuído em função de mudanças climáticas.

Ora, todos nós, que estudamos o rol das ciências da evolução, incluindo estratigrafia, climatologia, sedimentologia etc., sabemos que mudanças climáticas não ocorrem bruscamente, demandam centenas, às vezes milhares de anos para um novo padrão se estabelecer.

O que pode acontecer é um período de estiagem mais prolongado, em decorrência de fatores naturais, tais como circulação marinha – que afeta a circulação atmosférica –, resfriamento ou aquecimento das águas oceânicas, ação dos ventos solares ou mesmo das correntes de convecção existentes no Manto da Terra.

Porém, são fatores isolados e isoladamente não estabelecem padrões, a não ser que pendurem por um longuíssimo tempo.

Estudos de estratigrafia e sedimentologia, apoiados em diversas datações radiométricas, têm demonstrado que o padrão climático, com uma estação seca e outra chuvosa, tem operado nos chapadões centrais da América do Sul, área ocupada por Cerrado, desde pelo menos 45 milhões de anos – do final do Pleistoceno e início do Holoceno, quando populações humanas já ocupavam as grutas e cavernas existentes no Cerrado.

A estratigrafia mostra de forma clara essa oscilação, sendo a estação chuvosa demonstrada por camadas claras e a estação seca explicitada por sedimentos escuros. Esse padrão é tão evidente que não deixa dúvidas quanto a sua existência pretérita.

Portanto o discurso da diminuição da vazão dos rios, associado às mudanças climáticas, não passa de uma falácia. Não é preciso ser especialista, para enxergar a devastação irreversível causada nas áreas do Cerrado pela ocupação desordenada: basta acessar uma imagem de satélite da região para constatar grandes quadrículas nos interflúvios, com monoculturas e grandes círculos demarcados pela irrigação de pivôs.

Os motores que fazem funcionar as máquinas da irrigação são tão possantes que são necessárias baterias de motores auxiliares para colocá-los em operação.

Quando esse complexo começa a funcionar, os rios sofrem impactos gigantescos. Alguns param de correr totalmente, do ponto de captação para baixo. Se fôssemos animais aquáticos, o que faríamos? E, se fôssemos população ribeirinha, vivendo da produção familiar, ou se vivêssemos em alguma cidade ou povoado abaixo desses sistemas, qual seria a nossa reação?

“Já escrevi centenas de artigos sobre o assunto, chamando a atenção para as consequências que virão em breve se o modelo predatório de relação com o território continuar. Quase nada teve ressonância”

Sobre os animais a resposta é mais simples, mas com relação aos humanos a resposta é difícil, pois agimos muitas vezes por interesses individuais. O homem, às vezes, tem conhecimento dos problemas, porém pode lhes faltar a consciência, elemento fundamental que o transforma em cidadão e o faz agir coletivamente, ou seja, em benefício da coletividade.

Muitos sentem medo de lutar contra os lobos – os donos do capital, mal sabendo que esses já lhes tiraram quase tudo: os ideais, o bem-estar, os amigos. Falta apenas lhes tirarem a alma, se é que isso já não tenha acontecido.

Seria bom, neste momento, questionar: em que aurora se escondem e como esperam o amanhecer? Já escrevi centenas de artigos sobre o assunto, falando sobre as consequências da retirada da cobertura vegetal nativa para os aquíferos e para o futuro das águas, chamando a atenção para as consequências que virão em breve se o modelo predatório de relação com o território continuar.

Quase nada teve ressonância. Um ou outro idealista ou grupo de idealistas empenha a bandeira da construção de um futuro melhor, mas diante de tanto poder, só encontram ao final da luta uma espécie de cadáver no calabouço.

E o entusiasmo que o impulsiona, qual uma luz de candeia, vai se apagando pouco a pouco. Nunca entendi a voracidade da ganância dos grandes empresários rurais, muitos dos quais nem conhecem a região que exploram, mas, com suas ações, aniquilam tudo. Não têm compromisso com o Estado nem com as futuras gerações.

Por isso, menos ainda entendo a ação dos políticos e de alguns advogados nacionais, que, com unhas e dentes, protegem esses exterminadores e provocadores de entropias ambientais e sociais. Serão cegos? Mal-intencionados? Onde foi que se escondeu a luz dos olhos deles?

Não tenho respostas. Também não sei onde mora a aurora daqueles que um dia despertaram para a esperança.

Só uma certeza eu tenho: no silêncio acelerado do tempo, nossos rios vão morrendo.