Simone de Beauvoir, a filósofa que “reinventou” a mulher e a “colocou” na história

19 julho 2020 às 00h00

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Biografia escrita por filósofa britânica reforça o papel da francesa como pensadora e explica a importância para as mulheres de todo o mundo do livro “O Segundo Sexo”
Candice Marques de Lima
Especial para o Jornal Opção
“A história de minha vida, em si, é meio problemática, e não tenho que dar soluções às pessoas, e as pessoas não têm o direito de esperar isso de mim. Foi nessa medida que, ocasionalmente, isso que vocês chamam de minha celebridade — enfim, a atenção das pessoas — me incomodou. Há certo caráter demandante que eu acho meio estúpido, porque me aprisiona, prendendo-me completamente em uma espécie de bloco de concreto feminista.” — Simone de Beauvoir, em relato ao filme “Simone de Beauvoir” realizado por Josée Dayan e Malka Ribowska (1978) e publicado como texto pela Gallimard em 1979.

Uma mulher amada e odiada, idolatrada e criticada, mesmo entre as feministas, é o que o nome de Simone de Beauvoir desperta, mesmo após 34 anos de sua morte, completados em 14 de abril de 2020. Simonne Lucie Ernestine Marie Bertrand de Beauvoir nasceu em uma família descendente da nobreza, o que a própria partícula “de” do seu sobrenome indica. Na França, ter “de” no sobrenome aponta a importância social de uma família. Apesar da nobreza da família paterna e do dote generoso por parte de sua mãe, seus pais não eram ricos e empobreceram ao longo da juventude de Simone.
A biografia escrita por Kate Kirkpatrick, professora de filosofia e cultura no King’s College e escritora, narra com cuidado, nas primeiras 160 páginas do livro “Simone de Beauvoir — Uma Vida” (Crítica, 416 páginas, tradução de Sandra Martha Dolinsky), a infância e a juventude de Simone, seus amores e a preparação intelectual que teve até começar a escrever profissionalmente. Se você, leitor/a, não quiser ler sobre esse período de formação, que também é recheado das histórias de amantes de Beauvoir, pode iniciar sua leitura a partir da página 162, que começa a cobrir a vida prolífica de suas publicações.

Simone e Sartre
Nessa primeira parte da biografia, fica-se sabendo como o grande romance do século 20 entre Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre na verdade não era propriamente um relacionamento amoroso ao estilo pequeno-burguês. Foi por meio da amizade e namoro com René Maheu (1905-1975) que Simone conheceu Sartre. Também foi Maheu quem deu a ela o apelido de Castor, como era conhecida na intimidade. Há uma homofonia entre Beauvoir e Beaver (castor em francês) e esse segundo nome colou em Simone, que passou a ser chamada assim por seus amigos.
Em princípio, Simone não gostou da aparência de Sartre, o homenzinho galanteador de 1,55m. No que seria o primeiro encontro entre ambos, Simone pediu à sua única irmã (caçula) Hélène que fosse em seu lugar e lhe dissesse que ela foi repentinamente para o campo. Mas, devido à insistência dele, acabaram se encontrando num grupo de estudos que Sartre tinha com Paul Nizan (1905-1940) e René Maheu. A dinâmica entre Simone e Sartre, que era baseada principalmente nas propriedades intelectuais de ambos, em que cada um sempre conversava e criticava as ideias do outro e liam seus escritos antes de serem publicados, teria a partir de 1929 uma relação íntima e contínua até a morte de Sartre, em 1980.
Esse relacionamento tão forte e íntimo teria como início um pacto que fizeram em uma segunda-feira, 14 de outubro de 1929, nos jardins de Luxemburgo, e que perduraria ao longo da vida. Combinaram que teriam entre si um amor essencial e com outras pessoas amores contingentes. Contariam tudo um ao outro e chamariam esse relacionamento de casamento morganático, que significava um casamento entre pessoas de posição social desigual, embora a biógrafa ressalte que não fica claro quem seria considerado da realeza e quem seria o plebeu.

Algumas curiosidades desse relacionamento é que durante toda a vida ambos se referiram um ao outro pelo pronome “vous”. Na língua francesa, esse pronome é utilizado em relações hierarquicamente desiguais e com pessoas desconhecidas. O único amante com quem Simone se referiu pelo pronome familiar “tu” foi o francês de origem judaica, criador e diretor do documentário “Shoah”, Claude Lanzmann, que também foi o único parceiro com quem ela morou junto durante sete anos.
Simone e Sartre nunca moraram juntos e pelo que escreveu a Nelson Algren (1909-1981), seu amor estadunidense, a vida sexual de ambos durou pouco. Ela contou que Sartre tinha uma animação muito grande por coisas da vida, menos para o sexo. Durante a vida de ambos, o público em geral não sabia sobre os amores contingentes que eles mantinham e nem da vida amorosa de Simone, que se relacionava afetiva e sexualmente com homens e mulheres, embora se dissesse heterossexual.
Vale notar que Simone e Sartre se relacionavam afetiva e sexualmente com esses amores contingentes e eram amigos de muitos deles, considerando alguns como “família”. Num determinado momento, Sartre e Simone tiveram Olga Kosakiewicz como amor contingente, embora a biógrafa esclareça que não a compartilharam sexualmente, e Simone foi amante de Jacques-Laurent Bost (1916-1990), que era também namorado de Olga, embora esta não o soubesse. Bost, assim como Lanzmann, permaneceu amigo de Simone durante toda sua vida.

A vida como escritora
Além da vida íntima agitada e pouco convencional para os padrões pequeno-burgueses, a vida intelectual de Simone foi fértil e produtiva. Ela escrevia movida pela curiosidade intelectual e também de maneira catártica. Quando sua mãe, Françoise, morreu, ela escreveu o livro “Uma Morte Muito Suave” e depois da morte de Sartre “A Cerimônia do Adeus”.
Kate Kirkpatrick anota que somente “suas cartas e autobiografias somariam mais de 1 milhão de palavras”, além dos “ensaios filosóficos, romances premiados, contos, uma peça de teatro, diários de viagem, ensaios políticos, jornalismo” e o livro que lhe rendeu tanto amor e ódio, considerado a bíblia feminista “O Segundo Sexo”. Por causa dele, Simone foi chamada de “mãe” da segunda onda do feminismo.
Seu primeiro livro, o romance “A Convidada”, foi aceito para publicação pela editora Gallimard em 7 de maio de 1940. Seus romances são considerados filosóficos, pois sempre afirmou que a filosofia em seus livros era uma maneira de ver o mundo. Embora fosse formada em filosofia, tivesse sido professora dessa disciplina e fosse uma estudiosa do assunto, Simone não se considerava filósofa, dizia que não era criadora de um sistema, e que esses sistemas pretendiam encontrar chaves universais para seus julgamentos duros e acrescentava que a condição feminina não predispõe a esse tipo de obstinação.
Para Beauvoir, sua decisão de escrever romances, esclarece sua biógrafa, foi pela capacidade da literatura de proporcionar “experiências imaginárias que são tão completas e perturbadoras quanto as que vivemos”, nas palavras de Simone. Para ela, as obras filosóficas teriam uma voz abstrata que visa a obrigar ou a convencer o leitor a adotar o ponto de vista do filósofo que a escreve, mas que não o convidam a observar perspectivas diferentes em situações singulares.
Parte de sua vida Simone morou em hotéis em Paris e escrevia em cafeterias, como a Les Deux Magots. Somente quando ganhou o Prix Goncourt, por seu romance “Os Mandarins”, comprou um flat, em 1955, na Rua Victor Schoelcher, perto do cemitério de Montparnasse, onde ela e Sartre estão enterrados lado a lado.
Simone também foi editora da revista “Les Temps Modernes”, que fundou junto com Sartre em 1945. O nome da revista refere-se ao filme de Charles Chaplin. Ela fazia questão de ler os textos, escolher os que seriam publicados e marcar as correções necessárias. Até o final da vida foi uma leitora cuidadosa e uma interlocutora generosa, e igualmente sincera.
Beauvoir e o feminismo
Sobre “O Segundo Sexo” é necessário ressaltar as ressonâncias desse livro desde sua publicação, enfatizando que até hoje é considerado como de grande importância para o feminismo. Ele fez parte da segunda onda feminista e foi publicado em 1949, quando Simone tinha 41 anos. O contexto do livro, nas palavras de sua biógrafa: “Ela havia visto a mãe sofrer devido a um relacionamento totalmente desigual com o pai. Quando criança, ela se recusara a ser tratada ‘como menina’, pois sabia que meninos e meninas eram iguais aos olhos de Deus. Desde o dia em que o atendente da livraria a assediara, ela sempre se sentira desconfortável na companhia de homens desconhecidos. Ela havia perdido Zaza¹, que morrera em consequência de discussões sobre o valor comparativo de dotes, propriedades e amor. Mantivera conversas com mulheres que ignoravam as funções e prazeres de seu próprio corpo. Visitara outros países, o que a fizera perceber que os costumes podem parecer necessidades só porque são comuns”.
Na década de 1940, as mulheres haviam conquistado o direito ao voto na França, mas ainda não podiam abrir contas bancárias em seus nomes, embora já estivessem plenamente no mercado de trabalho. Mesmo assim, a palavra feminismo era associada ao sufrágio e considerada dépassé tanto nos Estados Unidos quanto na França.

O título do livro remete à definição que Beauvoir aplica às mulheres dada pelos homens como Outro, por serem relegadas ao status de uma casta diferente, sendo consideradas como o segundo sexo. Kirkpatrick escreve: “Ao dizer que a mulher é o que o homem não é, Beauvoir se inspirou nas ideias de Hegel sobre o ‘Outro’. Como os seres humanos têm uma tendência profundamente arraigada a se opor ao que é o Outro para eles, os homens se colocam como ‘sujeitos’ livres e definem as mulheres por contraste – como objetos.”
O livro, de 972 páginas (na edição brasileira, da Editora Nova Fronteira, tem 936 páginas), foi publicado na França em dois volumes, em junho e novembro de 1949. Em 1963, Beauvoir escreveu que, após o lançamento do livro, tornou-se alvo de um sarcasmo que nunca tinha visto. O primeiro volume vendeu na primeira semana 22 mil cópias. Neste, ela afirma que a biologia não é o destino para as mulheres, muito menos o casamento ou a maternidade. Ela cita o caso da cientista Marie Curie (1867-1934), primeira mulher a receber o Prêmio Nobel por suas pesquisas a respeito da radioatividade, e única a ganhar o prêmio duas vezes, como prova de que não foi a “inferioridade das mulheres que determinou sua insignificância histórica: foi a insignificância histórica delas que as condenou à inferioridade”. Assim, a mulher não seria uma realidade fixa, mas um processo de tornar-se mulher. A famosa frase “não se nasce mulher, torna-se mulher” está no segundo volume da obra, mas a ideia já é apresentada no primeiro.

No primeiro volume, Simone analisa a mulher a partir da biologia, da psicanálise e da história. A respeito da psicanálise, critica Freud por basear seu conhecimento da sexualidade feminina a partir da sexualidade masculina e questiona como ele poderia fazer isso não tendo nenhuma experiência com a primeira.
No segundo volume, Beauvoir incluiu descrições de mulheres e de suas experiências e a famosa frase escrita acima sobre tornar-se mulher havia sido inspirada no filósofo francês Alfred Fouillée (1838-1912), para quem “não se nasce, mas torna-se livre”. Para ela, além da biologia, da psicologia e da economia, o que determinava a submissão das mulheres acima de tudo era a civilização.
O corpo feminino foi outro assunto abordado no livro. Para Simone, “a objetificação sexual do corpo das mulheres desempenha um papel importante na perpetuação de sua opressão”, assim, a mulher ideal era o objeto de desejo dos homens. A mulher sente uma alienação sobre seu próprio corpo ao reconhecer que “ele é reduzido a um objeto sexual por certo tipo de olhar masculino – um olhar que a vê como presa para ser caçada e possuída, e não uma pessoa em processo de devir”. A partir da combinação de vozes de várias mulheres que descreveram suas experiências de tornar-se mulher por meio da hegemonia dos mitos criados pelos homens, Beauvoir arremata que “tornar-se mulher é existir para os homens”.

Kirkipatrick acentua que, apesar da abordagem sobre a sexualidade feminina no livro ter sido considerada escandalosa, foram as ideias de Beauvoir a respeito da maternidade que sofreram ataques prolongados. Ela achava uma má-fé a contradição entre o desprezo pelas mulheres e o respeito às mães. Em suas palavras: “É um paradoxo criminoso negar às mulheres qualquer atividade pública, fechar para elas o acesso às carreiras masculinas, proclamá-las incapazes em todos os domínios, mas confiar-lhes o mais delicado e mais sério de todos os empreendimentos: a formação de um ser humano”.
Para Simone, as mulheres não deveriam ser reduzidas à função reprodutiva e queria mostrar que a gravidez, o parto e o maternidade em si eram vivenciados de maneira singular, dependendo da situação de cada mulher – que eram a revolta, a resignação, a satisfação ou o entusiasmo. Sua pretensão foi abordar dois equívocos, o de que ser mãe seria suficiente para satisfazer uma mulher e de que uma criança encontraria felicidade nos braços de sua mãe, pois era improvável que uma criança fosse feliz se sua mãe se sentisse frustrada e insatisfeita. E, a respeito do primeiro equívoco, muitas mulheres haviam lhe dito que não queriam que esse fosse seu único projeto de vida.

Por essas ideias, foi acusada de “traidora” de seu sexo e de sua nação, já que, no pós-guerra, a indústria francesa precisava de revitalização e de mais nascimentos. Muitos homens questionaram “como ela se atrevia a abordar esse assunto sagrado se não era mãe?”. Também foi chamada de insatisfeita, frígida, fálica, ninfomaníaca e lésbica. Os comunistas a chamavam de “petite bourgeoise”, pois diziam que sua análise não tinha a ver com as classes trabalhadoras. Também foi classificada como triste, neurótica e frustrada e o escritor Albert Camus, que era seu amigo, acusou-a de “fazer o homem francês parecer ridículo”. O Vaticano colocou “O Segundo Sexo” em sua lista de obras proibidas.
O livro foi traduzido para a língua inglesa e publicado em 1953. O tradutor da obra era um professor de zoologia chamado H.M.Parshley, que afirmou que não era um livro feminista nem doutrinário. Os editores do livro, Blanche e Alfred Knopf, achavam que a autora sofria de verborragia e então o tradutor disse que cortaria e condensaria passagens do livro e excluiu 15% do que Beauvoir havia dito. Kirkipatrick afirma que “ele também cortou seções e traduziu partes de uma maneira longe de ser inocente. A seção mais atingida foi a da história das mulheres, de onde ele excluiu 78 nomes de mulheres e quase todas as referências a formas socialistas de feminismo. Ele cortou referências à raiva e à opressão das mulheres, mas manteve as relativas aos sentimentos dos homens. E cortou a análise de Beauvoir sobre o trabalho doméstico”, em que ela mostrava a desigualdade das tarefas domésticas entre homens e mulheres. Beauvoir ficou insatisfeita com a tradução, solicitou que ele explicasse a respeito, mas, na apresentação da obra, o tradutor não foi fiel à sua solicitação. Uma nova tradução em inglês com as partes restauradas foi publicada somente em 2009 na Grã-Bretanha e em 2010 nos Estados Unidos.
Apesar de “O Segundo Sexo” ter encorajado várias feministas nas décadas de 1960 e 70, muitas delas a criticaram dizendo que “Simone era cega aos privilégios de sua classe, raça e educação”. Outras disseram que ela “se equivocara ao universalizar as experiências das mulheres”. Também a criticaram por ter excluído as mulheres negras e “que se apropriava do sofrimento delas como uma estratégia retórica no interesse do feminismo branco”.
Apesar de se considerar feminista, foi a partir de 1972 que Beauvoir adotou publicamente esse rótulo e passou a militar pelos direitos das mulheres. Nessa época, reconheceu que, em seus livros anteriores, havia ignorado as questões de classe, mas ressaltava que essa luta não emanciparia as mulheres, pois “elas não eram uma classe diferente, e sim uma casta diferente. As pessoas podem subir ou descer de classes, mas quando alguém nasce em uma casta, fica nela. Uma mulher não pode se tornar um homem”. E arrematou que as mulheres eram tratadas como uma casta inferior econômica, política e socialmente.
Simone teve papel importante na legalização do aborto na França em 1974, quando a ministra da Saúde, Simone Veil, mudou a legislação, o que facilitaria o acesso à contracepção e tornava o aborto legal, por meio da Lei Veil (que levaria seu nome). Beauvoir também criou a Liga dos Direitos das Mulheres, que tinha como objetivo criar uma legislação antissexista e foi por sua causa que a palavra sexismo passou a figurar no dicionário francês. E defendeu fortemente o divórcio, objetando que ele não poderia ser uma panaceia, mas que poderia libertar muitas mulheres para descobrirem suas próprias possibilidades.
Em 1980, surgiu na França o primeiro ministério das mulheres. Beauvoir manteve-se próxima à primeira ministra da mulher, Yvette Roudy. Simone esperava que o ambiente cultural mudasse e dizia que os homens eram violentos pois isso estava enraizado em sociedades sexistas e que toleravam a discriminação. Ela dizia que “não se nasce homem, torna-se homem”, no sentido de que o aprendizado do machismo e da misoginia eram transmitidos socialmente.
A guerra da Argélia e o encontro com Frantz Fanon
Beauvoir e Sartre também militaram a favor da independência da Argélia, quando em 1955 houve a guerra entre aquela e a França. Beauvoir se dizia enojada com as ações francesas, tinha dificuldade para dormir e sentia vergonha das torturas aos argelinos. A “Les Temps Modernes” apoiou a independência argelina desde o início, sendo acusada de trair sua nação e de ser antifrancesa.
Nesse mesmo ano, Beauvoir publicou três ensaios que denominou “Privilèges” (Privilégios), evocando a questão de “como os privilegiados podem pensar sobre sua situação?”. Ela examinou o Marquês de Sade a partir de seu argumento sobre as pessoas contestarem hierarquias injustas; também discorreu sobre como os conservadores justificam a desigualdade, em que confundem os interesses gerais com seus interesses particulares e também escreveu sobre a cultura e como alguns intelectuais são culpados juntamente com outras classes privilegiadas ao se esquecerem das pessoas menos afortunadas.

Em 1961, Sartre, Simone e Lanzmann foram passar as férias de verão, um hábito que tinham, na Itália. Sartre havia sido convidado para prefaciar um manuscrito do psiquiatra e escritor Frantz Fanon (1925-1961), “Os Condenados da Terra”, e, por isso, Fanon decidiu se encontrar com eles. Ele tinha sido expulso da Argélia em 1957, quando entrou para a Frente de Libertação Nacional da Argélia e, mesmo depois de ter sido diagnosticado com leucemia, continuou lutando em prol do país.
O biógrafo de Fanon, David Macey, relatou que ele falou de si mesmo na presença de Sartre e de Beauvoir com uma franqueza incomum. Nas palavras de Kirkpatrick: “Quando era jovem, na Martinica, achava que educação e mérito pessoal seriam suficientes para romper ‘a barreira da cor’. Ele queria ser francês, servira no exército francês e depois fizera medicina na França. Mas nem todo o mérito ou a qualidade da educação o impedira de ser ‘negro’ aos olhos dos franceses. Mesmo sendo médico, as pessoas o chamavam de ‘garoto’ – e coisa pior”.
O breve encontro com Fanon, deixou em Simone uma impressão muito forte. Ela disse que quando apertou sua mão “parecia estar tocando a própria paixão que o consumia”.
A biografia sobre Simone de Beauvoir de Kate Kirkpatrick dá uma dimensão do que foi essa mulher para o seu tempo e também para o nosso. É uma prosa escrita de maneira clara, objetiva e precisa e com inúmeras referências aos textos, livros, cartas e entrevistas nos quais se baseou, sendo 33 páginas somente de notas a respeito dessas referências.
Simone de Beauvoir amou e foi amada, viveu a vida com intensidade, tinha grandes crises de choro e sofria pelo que considerava injustiças. Viajou para vários países, vindo inclusive ao Brasil e não se deteve diante dos preconceitos e de muitas questões políticas e sociais.
Faleceu em 14 de abril de 1986, aos 78 anos, oito horas antes do aniversário da morte de Sartre (1905-1980), em decorrência de problemas ligados à diabetes e à cirrose hepática. Diferentemente dos obituários de Sartre, nos quais não foi citada em todos, em todos os seus obituários houve a citação do homem com quem compartilhou parte da vida e das ideias por 51 anos. Em seu enterro, a multidão entoou as palavras de Elisabeth Badinter: “Mulheres, vocês devem tudo a ela!”.
Candice Marques de Lima é professora na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutoranda na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É pesquisadora de psicanálise e educação.
Nota
¹ Elizabeth Lacoin foi a grande amiga de Simone na juventude. Também foi namorada do filósofo Maurice Merleau-Ponty e morreu prematuramente. Zaza e Merleau-Ponty pensaram em se casar, mas a família dela, que era rica e lhe daria um grande dote de casamento, contratou um detetive para investigá-lo e descobriu que era filho ilegítimo. Com medo de que sua situação fosse revelada e o casamento de sua irmã fosse prejudicado, Merleau-Ponty desistiu do relacionamento, o que teria acarretado na forte desilusão de Zaza e contribuído para sua morte.