Indistinção do porte de drogas para uso e para tráfico encarcera milhares no país
31 julho 2023 às 09h16
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*Artigo publicado originalmente em 21 de junho de 2023
A falta de critérios objetivos para aplicação da lei penal de drogas no Brasil acelerou o processo de encarceramento, sobretudo de jovens negros e/ou periféricos, no país a partir de 2006. O Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar o julgamento sobre o porte de drogas para o uso pessoal nesta quarta-feira, 2, e pode alterar o entendimento da legislação e os rumos daqueles que foram condenados o e/ou sentenciado por crimes de tráfico de drogas previstos no Capítulo II da Lei 11.343/2006.
O assunto chegou a ser colocado na lista de votações em maio e junho deste ano, mas nas duas ocasiões foi adiado. A ação sobre o tema tramita no Supremo desde 2015. Ainda naquele ano, o julgamento foi suspenso por pedido de vista do então ministro Teori Zavaski, que morreria em 2017.
Até o momento, três ministros se mostraram favoráveis à descriminalização. O relator do caso, Gilmar Mendes, depositou seu voto antes mesmo dessa interrupção, e entendeu que a criminalização é inconstitucional, já que isso não interfere em direitos de outras pessoas
Um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) buscou analisar a natureza e a quantidade de drogas apreendidas registradas nos processos legais, os impactos da adoção de critérios objetivos de quantidade de drogas para distinção entre usuários e traficantes e a precisão das informações contidas nos processos julgados.
Em 2019, houve 48.532 sentenças por tráfico de drogas. No cenário 1, a posse de 25 g de maconha seria o critério objetivo para diferenciar uso de tráfico. Nesse caso, 31% dos casos envolvendo cannabis mudariam de tráfico para uso. O mesmo aconteceria com 34% dos casos de cocaína, se o critério fosse 10 g.
Países que adotam critérios levam em consideração a quantidade e a origem para distinguir usuários, pequenos, médios e grandes traficantes. Outro fator fundamental na discussão é quanto a violência. Hoje, com as facções tendo formado seu próprio poder dentro das prisões, cada vez mais o crime organizado ganha novos adeptos. As situações carcerárias vividas por indivíduos que cometeram crimes podem encaminhá-lo para a permanência na vida do crime e abala a tentativa do Estado em ressocializar essas pessoas.
85 gramas em média
De acordo com o levantamento, a quantidade média portada que respondem processos é de 85 gramas sendo carregadas, em 18% dos casos, em uma única porção. Já a média de apreensão de cocaína no país é de 24 gramas.
Goiás tem um percentual baixo de processo que menciona o auto de apreensão de substâncias, aponta o levantamento. Em média, os usuários de maconha são encontrados com 79 gramas no estado.
Para quem não está familiarizado com a quantidade, um baseado tem cerca de 5 gramas. Com essa média de 85 gramas por apreensão, são, em média, 170 cigarros que podem ser fabricados com a porção. A quantidade utilizada pode variar de usuário para usuário, mas uma pessoa com 85 gramas de maconha pode passar até meses apenas com esse “corre”.
Para o relator do caso no Supremo, ministro Gilmar Mendes, a conduta do usuário de drogas não é crime. Por seu voto, proferido há cerca de oito anos, o consumo de qualquer substância é uma decisão privada, e eventual dano causado recai sobretudo sobre a saúde do próprio usuário. “Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”, escreveu ele.
Em outros países
Em alguns desses países – como na Argentina, Colômbia e Polônia, entre outros – a flexibilização para o porte e o consumo de drogas foi uma decisão da Justiça. Em outros – como em estados dos EUA, em Portugal e no Uruguai – foi o Parlamento que aprovou leis para legalizar e regular o porte e o uso de drogas proibidas.
Países como República Tcheca e Suíça têm regras específicas para maconha, enquanto outros, como a Estônia, permitem o porte de qualquer substância.
Há também países como a Holanda, em que a solução foi informal, sendo uma política oficial da polícia não reprimir o consumo de pequenas quantidades de drogas. Em outros, como na Alemanha e no México, foram os órgãos responsáveis pela acusação, equivalentes ao Ministério Público brasileiro, que decidiram não mais iniciar processos criminais relacionados ao consumo de pequenas quantidades.
Há lugares – como em alguns estados da Austrália e na Itália – em que ser pego com a droga, apesar de não ser crime, acarreta em sanções administrativas, como multas e apreensão do material. Em outros, como Bolívia e Paraguai, não há sanções previstas.
Como se pode ver, as origens da liberação, assim como os detalhes legais, variam muito pelo mundo. O estado atual da descriminalização é atualizado periodicamente pelo projeto Talking Drugs, mantido pela organização não-governamental britânica Release em parceria com a International Drug Policy Consortium, consórcio internacional formado por 194 entidades, em 75 países, dedicado ao tema das drogas.