Cultura do estupro no Brasil continua em alta, apesar dos avanços sociais
02 agosto 2023 às 15h41
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De ontem para hoje duas histórias chocantes: uma jovem de 22 anos de Belo Horizonte que foi estuprada depois de ter sido deixada desacordada na calçada de casa por um motorista de aplicativo e uma menina de nove anos que foi devolver um gato que havia fugido para o vizinho e acabou sendo estuprada. Nas redes sociais, sobre o caso da jovem de BH, dizem: quem mandou ela beber tanto? O pior é que a pergunta por vezes vem acompanhada da justificativa: o homem a estuprou pela oportunidade.
Tanto a pergunta quanto a justificativa funcionam como variação do clássico: mas ela vestia essa roupa? Só que a realidade não é bem essa, ou vão dizer: quem mandou a menina ir devolver o gato? Ela deu oportunidade para o vizinho. O fato é que a sociedade patriarcal e misógina brasileira não apenas culpabiliza a vítima, como demorou anos para acabar com a história de “defesa da honra” masculina que servia para diminuir as penas em casos de feminicídio.
Aliás, ao longo da história, a legislação brasileira previu normas que chancelaram a violência contra a mulher. Entre 1605 e 1830, foi permitido ao homem que tivesse sua “honra lesada” por adultério agir com violência contra a mulher. Nos anos seguintes, entre 1830 e 1890, normas penais da época deixaram de permitir o assassinato, mas mantiveram o adultério como crime. Somente no Código Penal de 1940, a absolvição de acusados que cometeram crime sob a influência de emoção ou paixão deixou de existir. Contudo, a tese continuava a ser usada pela defesa de acusados para defender a inocência. Finalmente, ontem, 1º, o STF decidiu colocar fim a essa justificativa.
Quando um estupro acontece, a primeira coisa que se passa pela cabeça das pessoas é questionar se a vítima está falando mesmo a verdade.Certamente não é isso o que ocorre com outros crimes, a não ser que você duvide toda vez que alguém afirma ter sido vítima de um assalto ou roubo. E, por que isso ocorre? A resposta é simples: por conta da cultura do estupro, que é muito enraizada na nossa sociedade. Ao disseminar termos que difamam as mulheres, permitem a objetificação do corpos delas e glamurizam a violência sexual, a cultura do estupro passa adiante a mensagem de que a mulher não é um ser humano, e sim uma coisa. A cada quatro horas uma mulher é vítima de violência no Brasil. Em 2022, foram mais de 2.400 casos registrados, sendo que quase 500 foram feminicídios, ou seja, a cada dia ao menos uma mulher morreu apenas por ser mulher. Os dados são da Rede de Observatórios da Segurança.
O silenciamento e a culpabilização das vítimas são alguns dos principais artifícios da cultura do estupro. Quando o agressor não consegue silenciar a vítima totalmente, ele tenta se certificar de que ninguém lhe dê ouvidos. “Isso jamais aconteceu; a vítima mente; a vítima exagera; a vítima que provocou isso”. A sociedade patriarcal considera que nós mulheres somos ou sujeitos de segunda categoria, ou em alguns casos, que não somos sujeitos e podemos ser utilizadas ou destruídas. O estupro tem menos a ver com sexo e mais a ver com violência que qualquer outra coisa. É a agressão bárbara que invade o corpo de outra pessoa.
Houve unanimidade entre os 10 juízes que participaram do julgamento pelo fim da tese da “defesa da honra”. Um dos votos mais contundentes foi o da ministra Cármen Lúcia. “Não há espaço no contexto de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária (…) para a restauração de costumes medievais e desumanos, pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso por causa de uma ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina”, afirmou. “Nós estamos falando de dignidade humana, de uma sociedade que ainda é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser o que elas são, mulheres, donas de suas vidas”, sintetizou Cármen Lúcia. A decisão do STF é um avanço enorme, mas ainda há muito que se percorrer no caminho da igualdade entre os gêneros.