Um debate crucial: a (má) formação dos médicos recém-formados no Brasil
16 abril 2023 às 00h16
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Já comentamos, mais de uma vez, sobre o mais urgente problema brasileiro, aquele que pede para já uma solução que é sempre adiada: o da Educação. Apesar dos gastos com ela, equiparados aos dos países ricos, a educação brasileira surge com uma das piores do mundo em todas as avaliações internacionais sérias, e nos três níveis de ensino. Até a década de 1980 não era assim.
No ensino superior, por exemplo, a deterioração começa aí, no governo Sarney, quando os reitores das universidades, que eram apontados pelos Conselhos Universitários entre os mais capazes, passaram a ser eleitos pelos corpos discentes, docentes e funcionais, numa “democratização” malfazeja. Os resultados foram catastróficos: os mais capazes passaram a dar lugar aos mais populares, aqueles que menos exigiam de alunos professores e funcionários. Passaram a mandar nas universidades os “boas praças” no lugar dos competentes.
Não demorou muito — bastou que entrassem os governos FHC, Lula da Silva e Dilma Rousseff — para que piorasse, e essas universidades se transformassem em feudos políticos dos partidos de esquerda, com a consequente queda de qualidade no ensino, uma mesclagem de aprendizado e doutrinação e mais a corrupção.
Queremos submeter aos leitores o acontecido em São Paulo, mais precisamente no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), que ilustra bem o nível de aprendizado em Medicina que hoje temos no País.
Em 2005, o Cremesp resolveu instituir um exame para os médicos recém-formados, como faz a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com os bacharéis em Direito.
Diferentemente da OAB, cujo exame é estabelecido por lei, obrigatório para o exercício profissional e tem alcance nacional, o exame da Crenesp era apenas paulista, optativo e tinha como metas (muito nobres, por sinal) orientar as faculdades para o aprimoramento universitário e dotar os médicos aprovados de um valor a mais no curriculum.
Os médicos recém-formados respondiam uma série de perguntas sobre aspectos básicos da medicina — 120, no total — e deveriam acertar 72 delas (ou seja, 60%) para serem aprovados. Uma pesquisa feita pelo Cremesp mostrou que parte expressiva da população (94%) reconhecia a utilidade do exame para a sociedade. Façamos uma apreciação dos resultados desse exame, específico nas áreas básicas do conhecimento médico e de como se saíram os bacharéis em Medicina de 2005 até agora.
Em 2005 e 2006, ainda em sua fase experimental, o exame mostrou aprovações de 75,7% e 74,6%, respectivamente. Foram resultados razoáveis, embora devessem ser melhores, dado o fato de serem profissionais que tratariam doravante com saúde e vidas humanas. Os índices de reprovação foram, no correr dos anos:
Ano Reprovação
2005 – 32%
2006 – 38%
2007 – 56%
2008 – 61%
2009 – 56%
2010 – 43%
2011 – 46%
2012 – 54%
2013 – 59%
2015 – 48%
2016 – 56%
2017 – 35%
2018 – 38%
Como se vê, não foi brilhante o resultado dos exames. Os médicos paulistas (imaginem os dos demais Estados da Federação) saem das faculdades reprovados em grande porcentagem, nos mais elementares quesitos de sua profissão, como no identificar os sintomas de uma enfermidade comum, a tuberculose, por exemplo.
Alguns sequer sabiam como medir a pressão arterial de um paciente. Em alguns anos a reprovação atingiu a maioria deles, e chegou a quase dois terços em 2008, no governo Lula.
Os examinadores chamaram a atenção para o índice maior de reprovação nas escolas particulares, ao contrário do que seria de se prever. Por exemplo, em 2015, em que a média geral de reprovação foi de 48%, ela era cerca de 59% nas faculdades privadas, e ficou em apenas 26% nas faculdades públicas. É que em 2012, quando o Cremesp resolveu exigir o exame para o registro profissional, o governo federal já fazia, apressadamente, a multiplicação das escolas de Medicina, sob a alegação de que o aumento de oferta levaria os médicos ao interior, onde faltam.
Faltou também a inteligência, para prever o que acabou acontecendo: a qualidade do ensino médico caiu ainda mais, aumentou a concentração de médicos nos grandes centros e o interior continuou desassistido.
O sucesso dos exames do Cremesp foi grande, em que pesem os maus resultados, ou mesmo por causa deles. Os profissionais que se saíram bem nos testes passaram a ser valorizados nas contratações, e mesmo nos concursos públicos.
Os Conselhos Regionais de outros Estados (como Goiás e Rondônia) pensaram em também aplicá-los. E os próprios formandos avaliados declararam na maioria (63%) que as faculdades que haviam cursado não eram exigentes (algo impensável antes de 1980). As deficiências constatadas nos exames eram transmitidas às respectivas faculdades, para que procurassem corrigi-las. Essa deterioração do ensino clínico também seria constatável pelo número anual de processos judiciais por erro médico informado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). De 2005 a 2017, o aumento foi de 1600%. Nesse ano (2017) os processos dessa natureza somavam 26.000 em todo o Brasil, segundo o site especializado Amplimed.
A despeito da clara utilidade do exame do Cremesp para o aperfeiçoamento do ensino médico, para a confiança no profissional que o paciente irá buscar, e até para a Saúde Pública, no tentar elidir erros médicos, e apesar de sua aceitação pela população, a entidade que congrega os estabelecimentos privados, o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior de São Paulo (Semesp ) conseguiu na Justiça, em 2019, fazer dele uma ferramenta ineficaz.
De acordo com a 6ª Vara Federal do Estado, o Cremesp não pode exigir o exame para expedição do registro profissional do médico, nem tornar públicos quaisquer dados dos profissionais ou das faculdades que cursaram. Perdeu o paciente, antes de todos. Não tem um parâmetro para avaliar o profissional que vai examiná-lo, a seu filho ou seu parente, mormente se é um recém-formado.
A deficiência do ensino médico, se não está diretamente ligada à mortalidade por erro médico aqui no Brasil, terá uma correlação com ela. A revista “Veja” em 2016 publicou uma reportagem com a manchete: “Erro médico mata mais que câncer no Brasil”.
A reportagem que começava afirmando que a cada três minutos morriam dois pacientes nos hospitais brasileiros devido a procedimentos equivocados que poderiam ser evitados. Essa estatística coincide com a do Instituto Simutec, uma empresa de consultoria médica de São Paulo, que estima em 148 o número diário de mortes por erro médico no Brasil, e equivale aos números do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS): 54.076 as mortes em 2017 por essa causa. O número é próximo daquele dos assassinatos anuais no Brasil.
O exame do Cremesp seria uma medida a se opor à deterioração do ensino médico. Deveria ter a mesma finalidade e abrangência do exame da OAB. Um projeto de lei nesse sentido chegou a ser apresentado na Câmara dos Deputados pelo deputado alagoano Joaquim Beltrão, em março de 2007. Mas acabou esquecido e foi arquivado em 2015. Esperemos que um dia algo semelhante seja aprovado.