As tramas das novelas do comissário Brunetti são muito bem elaboradas. Há sempre uma dose de suspense, e o final costuma ser surpreendente

Donna Leon: escritora americana radicada na Itália | Foto: Reprodução

Mesmo entre os aficionados da literatura policial no Brasil, a escritora Donna Leon, de 77 anos, não é muito conhecida. Imerecida e inexplicavelmente, pois é uma autora de grande sucesso na Europa, inclusive nos países de maior cultura e de maior difusão literária, como a Alemanha, onde suas novelas policiais já renderam até uma série de filmes para TV.

Soube de Donna Leon e seus livros por Edgar Welzel, titular da coluna Carta da Europa, do Jornal Opção, e residente em Stuttgart, na Alemanha.

Norte-americana de nascimento, Donna Leon teve uma variada experiência de vida, o que parece ser valioso complemento para o talento de um escritor. Estudiosa de literatura, era professora no Irã, e fazia seu doutorado, quando teve que sair às pressas devido à revolução de 1978, que depôs o Xá Reza Pahlavi, e expulsou os americanos do país. Nessa saída apressada, perdeu todo a sua documentação relativa ao doutorado, deixado para trás. Uma mudança forçada também em seu rumo de vida.

A autora esteve por um tempo trabalhando em Nova York, até quando, no início dos anos 1980, resolveu visitar a Itália. Encantou-se com Veneza, para lá se mudou, e lá tem residência até hoje, embora divida seu tempo com uma casa que tem em Zurique, na Suíça. Lecionou em uma base militar americana próxima de Veneza por quase uma década, até resolver ser apenas escritora.

Quando falo que Donna Leon é pouco conhecida no Brasil, não quero dizer que não tenha sido traduzida e publicada. O Brasil é um dos 22 países onde tem livros editados (a Companhia das Letras publicou oito dos 30 policiais que escreveu). Ocorre que é ignorada pela crítica, até mais do que os outros autores de novelas policiais, sabe-se lá por quê.

O fato de a crítica literária não levar muito a sério o gênero policial explica apenas parte da questão. Donna Leon faz sucesso em toda a Europa, e faz ainda mais sucesso nos países de língua germânica, como ela mesma admite e as vendas comprovam.

Parte desse seu sucesso tem que ser creditada ao personagem detetivesco que criou e ao qual soube emprestar enorme personalidade. Quando imersos em um de seus livros, chegamos a imaginar esse personagem como se fora de carne e osso, e não de papel e tinta. O comissário Guido Brunetti é fascinante: culto, apreciador dos autores gregos e romanos, conhecedor da boa música (o que Donna Leon também é), dedicado, arguto, honestíssimo numa Itália onde a corrupção campeia (ao menos nos escritos da autora), da classe média veneziana, mas bem casado com uma devotada Paola oriunda da nobreza veneziana, cujos pais pertencem à aristocracia local, e além disso detentores de posses, o que às vezes entra em choque com os modestos ganhos de Brunetti.

O comissário é pai de um casal de adolescentes tão autossuficientes e mal-humorados quanto tantos que conhecemos ou mesmo pertencem à nossa família. Os outros personagens da “questura” (distrito policial) onde Brunetti é vice-chefe, são também bastante marcantes, como o chefe Giuseppe Patta, o avesso do subordinado: vaidoso, incompetente, bajulador dos poderosos, moralmente flexível. E a secretária Electra, que Donna desenha lembrando uma estrela dos filmes de Fellini ou Visconti. Bela, emotiva como só as latinas sabem ser, é uma Sophia Loren moderna, versada em informática, quase uma hacker. Consegue em tempo mínimo as informações de que Brunetti precisa em suas investigações, por mais escondidas que estejam nos arquivos da burocracia italiana.

Escritora “não” pode ser lida na Itália

As tramas das novelas de Brunetti são muito bem elaboradas. Há sempre uma dose de suspense, e o final costuma ser surpreendente, mas geralmente ao lado da lei. O apaixonado por essas histórias ao fim respira aliviado.

Muitas vezes há um toque de ambientalismo na narrativa. Donna Leon é quase uma militante, na vida real. E estão presentes em todas as novelas críticas bastante ácidas às elites da Itália, sejam elas políticas, empresariais ou remanescentes da nobreza. Há uma condenação à corrupção, que nos livros de Donna Leon aparece como uma prática costumeira, generalizada, cultural até, naquele país.

A valorização do ambiente de Veneza, que apaixonou a autora, permeia suas narrativas: paisagens, praças, pontes, castelos, canais, igrejas, dialeto, cozinha, costumes e tipos característicos estão sempre presentes. A literatura de Donna Leon é autenticamente veneziana, mas nem por isso é limitada; frequentemente a trama policial se ramifica para a Itália extra veneziana e até para o exterior.

As narrativas são por vezes complexas, e intrigantes, mas expressas com clareza e sempre verossímeis, prendendo a atenção do leitor. Uma particularidade curiosa: Donna Leon sempre autorizou as traduções de seus livros para as mais diversas línguas, e por isso mesmo eles se disseminaram pelo mundo, principalmente pela Europa. Mas, obstinadamente, nunca permitiu que se traduzissem esses livros para o italiano. Justamente para o italiano. Donna não pode ser lida pelos que habitam a cidade (e o país) onde vive há décadas, e onde os escreve. As especulações sobre as razões dessa recusa palpitavam entre os editores italianos que tentaram demovê-la e nunca conseguiram.

Sempre se pensou que as pesadas críticas aos governos e às classes superiores da sociedade italiana seriam as responsáveis pela posição de Donna Leon. Ela temeria que, estrangeira que é, fosse discriminada pela maneira severa com que tratava em suas obras a sociedade que a acolheu e a terra onde vive. Não há como descartar essa versão, embora, em uma entrevista dada ainda em maio de 2003 para um jornal inglês, a autora dê outra interpretação: não gosta da fama, e o fato de ser muito conhecida tiraria o sossego de que desfruta em Veneza, e de que não quer abrir mão. Verdade ou conveniente mentira? Só o comissário Brunetti pode descobrir.