Uma das personalidades mais marcantes que encontrei em minhas andanças quando parlamentar chamava-se (ou chama-se, pois creio que ainda vive) Lino Hernández Trigueros, da Nicarágua. Antes de apresentá-lo, conto em que circunstâncias o conheci. O ditador nicaraguense Anastasio Somoza havia sido derrubado em 1979 por uma vasta frente de partidos, organizações e guerrilhas, onde estavam representados de todos os credos políticos do país. Não tardou, porém, que uma dessas organizações, a Frente Sandinista, assumisse o governo e afastasse as demais.

Os sandinistas eram radicais de esquerda, sustentados por Cuba, marxistas convictos que nutriam verdadeiro ódio pelos Estados Unidos. Uma de suas primeiras ações foi mandar executar Somoza, que havia se homiziado no Paraguai. Para tanto contrataram um grupo guerrilheiro, chefiado por Gorriarán Merlo, conhecido terrorista argentino que operava na América Latina. A operação, muito bem planejada com auxílio da KGB soviética, foi (do ponto de vista dos terroristas) um sucesso, e o ex-ditador foi abatido a tiros de fuzil e disparos de bazuca numa pacata rua de Assunção, em 1980.

Os sandinistas, apossando-se do poder, e “nomeando” um dos seus como presidente (o mais tarde tristemente famoso Daniel Ortega), seguiram de imediato a velha cartilha marxista: estatizaram bancos e indústrias, promoveram uma reforma agrária radical, censuraram a imprensa, encarceraram sem processo os discordantes.

A reação logo surgiu, com o apoio dos conservadores nicaraguenses, de uma tribo indígena (os altivos Misquitos que não aceitavam ver suas terras confiscadas) e dos EUA. E surgiu sob a forma de um grupo guerrilheiro que ficou conhecido como “Os Contras”. O agravamento do conflito armado e a piora da situação econômica foram levando os sandinistas a um beco sem saída.

O desabastecimento era a face mais visível da crise, que o governo tentou controlar pela força, seguindo os conselhos de Fidel Castro. O exército chegou a ter 120 mil homens, quase o tamanho do Exército brasileiro, embora a população fosse apenas de 3 milhões. Os prisioneiros políticos passavam de 4 mil, um enorme exagero.

A pressão externa e interna fez com que Tomás Borge, o radical e prepotente ministro do Interior, tivesse uma ideia que julgou brilhante: os sandinistas convocariam eleições, que, com a força do governo, venceriam facilmente, “reelegendo” Daniel Ortega. Assim legitimados, conseguiriam ajuda externa, liquidariam os “Contra” e seguiriam a vida, aboletados no poder.

Foi quando, designado pelo Senado como observador daquelas eleições, fui, por duas vezes, ao país. Os observadores internacionais haviam sido convidados pelos sandinistas, certíssimos de que venceriam as eleições.

Na minha primeira viagem à Nicarágua, três meses antes das eleições, em 1989, entrevistei 24 autoridades, entre as principais do país, incluindo a candidata de oposição, Violeta Chamorro, o presidente da Suprema Corte Eleitoral, Mariano Fiallos Oyangurén, o ministro do Interior, Tomás Borge, o arcebispo de Manágua, Miguel Obando y Bravo, e Lino Hernández, que agora posso apresentar ao leitor.

Lino Hernández: dedicado aos direitos humanos

Lino Hernández era advogado e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Nicarágua desde meados dos anos 1970. Tive longa conversa com ele, em seu acanhado escritório no centro de Manágua.

De saída, Lino transmitia uma impressão de humildade, ressaltada por suas roupas modestas e pelo local de trabalho. Mas impressionava pela maneira sóbria e segura com que falava, pelo encarar sem pestanejar o interlocutor, por narrar sem exageros os fatos presenciados ou vividos. Transmitia, sem preocupar em fazê-lo, uma sensação de altivez e confiança que se mostra presente nas figuras sem dissimulação, que falam sem pretensão de agradar ou desagradar o interlocutor, e apenas transmitem, fiel e seriamente, suas impressões ou testemunhos. Seu espanhol perfeito, sem erros de sintaxe, ajudava na boa impressão, que sua história de lutas ia consolidando ao longo de sua fala.

Lino dedicara-se aos Direitos Humanos desde sua formatura em Direito, o que transformara sua profissão, de saída, em sacerdócio. Noventa por cento de seus clientes não tinham como pagá-lo, e ele não tinha como cobrar.

Em pouco tempo, Lino fundou a Comissão de Direitos Humanos, a que passou a se dedicar em tempo integral. Ela sobrevivia de doações oriundas de uns poucos nicaraguenses prósperos ou de entidades internacionais. Ainda vivia a Nicarágua sob a ditadura de Somoza, o que significava violações, prisões sem o devido processo legal, espancamentos e mesmo mortes. Por outro lado, significava dificuldade na obtenção de recursos para a Comissão, e liberdade de seu trabalho.

Mais de uma vez, Lino Hernández, acusado de comunismo, foi preso pela polícia de Somoza e fez companhia nas prisões aos que defendia. Algumas vezes mesmo — relatou com evidente desconforto — essas prisões eram acompanhadas de castigos físicos. Foi quando passou a ser conhecido no exterior, o que lhe valeu certa proteção, embora ela nem sempre fosse respeitada pelos esbirros de Somoza. Foi quando, também, conheceu e prestou assistência àqueles que viriam a serem os chefes do futuro governo sandinista. Assistiu, escondeu e ajudou a saírem do país muitos jovens que seriam no futuro altas autoridades e até ministros do governo. Salvou-lhes a vida, em resumo.

A ditadura sandinista: fora da lei

Foi então que caiu Somoza e Lino respirou aliviado. Poderia agora exercer sua profissão de advogado. O alívio durou pouco. Durou até os sandinistas se apossarem do poder. Logo começaram as prisões dos integrantes do governo Somoza, principalmente dos amigos do ditador e de elementos de sua antiga polícia, sem o devido processo, o que ocasionava muitas injustiças. Recomeçaram também os maus-tratos e espancamentos de presos, e com o surgimento dos “Contras” a prisão de camponeses e pequenos sitiantes acusados sem provas de apoiá-los. Não raro, os presos eram mulheres, que sofriam violações dos carcereiros.

Recomeçaram também os assassinatos políticos. Lino retomou, agora redobrados, seus trabalhos de Direitos Humanos. Protegeu muitos policiais que havia conhecido e por cujas mãos havia passado quando preso e agredido na ditadura Somoza. Insistiu, junto aos sandinistas, para que agissem dentro da lei, formando processos, evitando violações, propiciando julgamentos justos, em vez de longas prisões, às vezes por anos, sem sequer uma denúncia escrita. Não lograva êxito, e, com o avanço dos “Contras”, as prisões aumentavam. Eram agora três ou quatro vezes maiores que no tempo de Somoza

As sevícias eram orientadas por experimentados e sádicos policiais cubanos, e Lino se desdobrava.

Suprema (trágica) ironia: Lino agora era tratado, pelos sandinistas que havia protegido de Somoza, alguns dos quais lhe deviam a vida, como “agente dos EUA” ou “lacaio do imperialismo”. Não tardou que voltasse a ser preso, e a sofrer os mesmos maus tratos que experimentara sob Somoza.

Quando o entrevistei em Manágua, havia deixado a prisão poucos dias antes. Fora preso quando dava assistência a manifestantes em um protesto de rua, que estavam sendo ferozmente espancados e presos pela polícia sandinista.

Contou-me que vivia um momento de grande agrura financeira, pois o governo impedia que recebesse doações externas.

Na minha volta à Nicarágua para as eleições, cuidei de levar a ele uma contribuição. Pelo menos era um alívio momentâneo. Era admirável ver como ele, altruísta, diante de tanta barbárie, injustiça e ingratidão, seguia sereno em seu verdadeiro sacerdócio e em sua inabalável fé na humanidade. Mantivemos contato durante algum tempo, via do embaixador brasileiro Sergio Queiroz Duarte, que ainda permaneceu por um período em Manágua.

Só com a vitória de Violeta Chamorro sobre Daniel Ortega (vitória essa que é assunto para outra história), encontrou a Nicarágua alguma democracia, e Lino teve alívio em sua luta pelos Direitos Humanos. Espero que hoje esteja entregue em paz à sua profissão de advogado.

Agora, em 2023, a Nicarágua vive uma ditadura sanguinária, com perseguições inclusive a figuras moderadas do clero católico. Os sandinistas — quer dizer, Daniel Ortega — estão no poder. Como disse um poeta russo, Stálin, no mausoléu, vive.