Estive algumas vezes na Nicarágua, nas décadas de 1980 e 1990, em missão do Congresso Nacional. Acompanho desde então o que se passa ali, e que parte de nossa imprensa, simpática ao ditadorzinho de opereta que dirige o país, o “presidente” Daniel Ortega, pouco mostra. Resumo a seguir a história recente daquele país.

É o maior país da América Central, com seus 130 mil quilômetros quadrados e 6 milhões de habitantes, fronteiriço à Costa Rica e a Honduras. Livrou-se da colonização espanhola em 1821, esteve sob influência direta dos EUA até 1925, quando a chamada revolução sandinista (do chefe Cesar Augusto Sandino) alcançou o poder. Sandino, contudo, sofreu um golpe e o poder foi tomado por Anastasio Somoza Garcia, então chefe da Guarda Nacional, em 1936. Estabeleceu-se uma ditadura familiar, abusada como todas, que durou até 1978.

Nesse ano, uma frente política conseguiu derrubar a ditadura e o ditador da hora, Anastasio Somoza Debayle se asilou no Paraguai. A fração mais radical dessa frente, A FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), grupo marxista apoiado por Fidel Castro, acabou por fazer presidente o comunista Daniel Ortega, assessorado pelo também comunista Tomas Borge.  Mandou matar em Assunção, em 1980, o ex-ditador Somoza e implantou um duro regime socialista, nos moldes cubanos. Dissidentes centristas que haviam participado da frente que derrubou Somoza se rebelaram contra Ortega, começaram uma guerrilha denominada “contras”, apoiada por grupos indígenas e pelo governo americano. Em 1989, diante do clamor interno por paz, e do clamor externo contra o regime ditatorial de Ortega, os sandinistas resolveram se legitimar via de uma “eleição”. Tinham suporte de Fidel Castro, mas temiam uma vitória pelas armas dos “contra”, que se fortaleciam pelo apoio americano e interno. Corria o ano de 1989, as eleições seriam no ano seguinte, e os sandinistas, confiantes, convocaram observadores internacionais para elas. O Senado brasileiro resolveu enviar o seu, mesmo antes das eleições, e fui designado. Pude entrevistar as principais lideranças sandinistas, religiosos (inclusive Dom Obando Bravo, arcebispo de Manágua), autoridades de direitos humanos e vários membros da oposição, inclusive a candidata principal (havia outros candidatos, mas sem chances) contra Ortega, Violeta Chamorro, e assisti a alguns comícios dela. Voltei ao Brasil crente na vitória de Ortega. Os métodos sandinistas não eram nada democráticos. Violeta Chamorro se fazia ouvir apenas pela voz natural. Não podia usar energia elétrica da rede pública para um megafone, pois Ortega proibira qualquer ligação; ela importara um aparelho portátil de som, mas Ortega mandara retê-lo na alfândega; tinha apenas três minutos diários na TV; seus comícios eram perturbados por milícias do governo, as chamadas “turbas divinas”, que dispersavam os presentes na pancada. Até seu telefone residencial fora desligado a mando do governo. Já Ortega, na presidência, usava o dia todo o único canal de TV e várias estações de rádio, convocava os funcionários e escolas para seus comícios e doutrinava o exército (os militares votavam), que correspondia a 10% dos eleitores. Os soldados, aliás, compareceriam às secções de votação, levados por um oficial e com suas cédulas de votação prontas com os votos sandinistas. No meu relatório, registrei tudo isso, e a previsão de uma vitória de Ortega. No dia 25 de fevereiro de 1980, eu estava de volta em Manágua, para assistir à eleição e à apuração. Ali estavam cerca de 4.000 observadores internacionais, inclusive o ex-presidente americano Jimmy Carter. Os sandinistas estavam certos de que iriam legalizar seu regime perante o Mundo, através de uma eleição. No Centro de Convenções Olaf Palme, de Manágua, onde se reuniam os observadores, circulavam sorridentes as autoridades do governo, inclusive uma senhora um tanto bizarra, em trajes hippies, uma microssaia minúscula e pesada maquiagem, que chamava a atenção. O embaixador brasileiro, Sérgio Queiroz Duarte, me esclareceu: era a primeira-dama, Rosário Murillo, casada em segundas núpcias com Ortega. Parênteses: tinha três filhos do primeiro casamento e a filha mais velha, pouco depois, acusaria Ortega de tê-la estuprado, o que seria um escândalo internacional, logo abafado pela imprensa e pela omissão da mãe. Rosário, hoje, é vice-presidente (ou vice ditadora) da Nicarágua. Prosseguindo: Abertas as urnas, a surpresa: Violeta Chamorro seria vitoriosa, apesar de todas as pressões sandinistas. Tomás Borge, o ministro do Interior, queria anular a eleição, mas como fazê-lo com tantos observadores internacionais ali? Os sandinistas passaram a noite discutindo, mas reconheceram o resultado, e aproveitaram os dias que lhes restava no poder para alguns abusos, referendados pela justiça e pela Assembleia Nacional, que controlavam. Doaram, desavergonhadamente, entre outras coisas, aos ministros sandinistas (isto é, a si mesmos), as casas do governo que habitavam, e que haviam sido desapropriadas da família Somoza e estatizadas. Eram dezenas de moradias de alto luxo. Os observadores passamos a noite no Centro Olaf Palme, enquanto o Tribunal Eleitoral local, controlado pelos sandinistas, esperava a ordem para liberar (ou não) os resultados. Foram liberados, finalmente, e Violeta cumpriria seu mandato. Finalizado este, foram eleitos mais dois presidentes de seu partido, em 1996 e 2001. Mas era o fim da breve democracia local.

Francisco: o papa tem criticado o autoritarismo na Nicarágua | Foto: Reprodução

E começa outra história:

Desde a vitória de Violeta Chamorro, os sandinistas passaram a uma oposição ferrenha. Ortega e companheiros tudo faziam para uma volta ao poder, apoiados por Fidel Castro e Hugo Chávez. Até que, nas conturbadas eleições de 2006, em que a abstenção foi superior a 80%, e embora tivesse apenas 38% dos votos, beneficiado pela ausência de segundo turno, Daniel Ortega voltou à presidência. Tinha sido eleito com menos de 8% do eleitorado, mas só precisava disso. Aprendera sua lição básica de ditador quando perdera as eleições para Violeta Chamorro, e isso não voltaria a acontecer. Usando todos os meios possíveis, inclusive a prisão ou o simples desaparecimento de qualquer indivíduo inconveniente, Ortega subjugou o Judiciário e o Legislativo, modificou a Constituição, que passou a admitir eleições sucessivas. E nunca mais desceu da cadeira de presidente. Como? – perguntará o leitor. Reelegeu-se em 2011, 2016 e 2021, é a resposta. E vai se reeleger em 2026. Nenhum candidato de oposição lhe fez mais frente, desde 2006. Qualquer candidato mais forte vai parar na cadeia, ou coisa pior. Nas últimas eleições, Cristiana, filha de Violeta Chamorro, resolveu se candidatar contra Ortega. Foi presa. Qualquer manifestação popular oposicionista é dissolvida à pancada ou à bala (na última, em 2018, morreram 328 manifestantes, alvejados pela polícia e pelas “turbas divinas” de Ortega). As cadeias estão cheias de presos políticos. Televisão e rádios são controlados pelo governo. As rádios independentes católicas (o povo nicaraguense é muito religioso), que ensaiaram críticas a Ortega foram sumariamente fechadas e padres presos. As duas universidades católicas foram suspensas. As irmãs da ordem de Madre Tereza de Calcutá que administravam creches foram expulsas a pé do país. O bispo de Matagalpa, Dom Rolando Álvarez foi condenado a 26 anos de prisão, por ter criticado Ortega. Também o Núncio Apostólico foi expulso, e as relações diplomáticas com o Vaticano suspensas. Ditadura comunista. E os brasileiros com isso?

Em 1989, já existia em Manágua, uma delegação permanente do PT brasileiro. Porque e para quê, só os petistas sabem. Mas é fato a proximidade de Lula e do PT desde priscas eras com Daniel Ortega. São irmãos políticos, como o próprio Ortega apregoa. Em 2021 o PT apoiou, quando o mundo todo condenava, a eleição fraudada de Ortega. E já agora, neste ano, o Brasil se recusou a assinar uma resolução da ONU, de 55 países, condenando os excessos sandinistas.  O governo Lula apoia Ortega, mesmo quando os comunistas presidentes do Chile e Colômbia e o próprio Papa, apesar de “progressista”, já condenam seus desvarios. Propôs um “diálogo construtivo” com Ortega no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Esse, o alerta: um domínio da cúpula do Judiciário e um cooptação do Legislativo são um belo começo para um regime ditatorial de esquerda. Confessem ou não os cúmplices nas três esferas de poder, esse é o sonho de Lula. Que nesta semana, também se confraternizou com Maduro, via de seu menino de recados, o assessor Celso Amorim.