Aveiro, Portugal — Uma das primeiras amizades que fiz em Aveiro, desde que comecei a passar minhas temporadas em terras portuguesas, foi com Joaquim Nogueira.

Vou apresentá-lo aos leitores: é dono de um empreendimento comercial de médio porte, bem no centro da cidade, que leva o nome da região de origem do proprietário, Trás-os-Montes, acrescido do pronome com função de sujeito.

Vale dizer que Trás-os-Montes, província ao norte de Portugal, e fronteiriça à Espanha (hoje Trás-os Montes e Alto Douro), situa-se na parte mais agreste do país, com vastas extensões de terras pedregosas, de difícil agricultura e clima inóspito, para os padrões portugueses. Quem nasce ali é um transmontano, ou trasmontano. Essas condições difíceis escreveram muitas histórias de luta e trabalho na sobrevivência dos trasmontanos, como se vê nas narrativas de escritores lusitanos ilustres, alguns nativos da própria região, como Guerra Junqueiro e Miguel Torga.

Essas duras condições também produziram uma intensa emigração, da qual o Brasil foi destino e testemunha. Muitos imigrantes portugueses no Brasil, principalmente do século passado, eram trasmontanos, como os pais do escritor mineiro Rubem Fonseca, aliás Prêmio Camões de Literatura, em 2003.

A loja Nós, Trás–os-Montes, em Aveiro | Foto: Irapuan Costa Junior
Fachada da loja Nós, Trás–os-Montes, na cidade de Aveiro, em Portugal | Foto: Irapuan Costa Junior

Digo isso, para que o leitor saiba que ser trasmontano é sinônimo de trabalhar duro e não se abater na luta pela vida.

Joaquim é um exemplo de trabalho, e isso me chamou a atenção desde o primeiro dia em que frequentei seu estabelecimento. Sua loja, como eu disse, não é pequena. De tamanho médio para os padrões de Aveiro, comporta meia dúzia de mesas em seu interior e uma dezena no exterior, na calçada que um toldo protege da chuva fina e frequente da região costeira, onde fica a cidade.

Antigamente, a loja Nós, Trás–os-Montes poderia ser classificada como uma “tasca”, no dizer lusitano, mais ou menos o equivalente à inglesa “taverna”, lugar onde se compravam mantimentos, se tomava uma caneca de vinho e se reuniam socialmente os do lugar.

Na realidade, é uma sortida loja onde pode-se comprar uma série de produtos tradicionais portugueses, como vinhos, cervejas, licores, azeites, queijos, embutidos artesanais e muita coisa mais. E onde se pode tomar uma taça de bom vinho ou uma refeição ligeira, a qualquer hora do dia, principalmente o café da manhã, ou pequeno almoço, como se diz por aqui.

O interior da sortida loja Nós, Trás–os-Montes | Foto: Irapuan Costa Junior

Joaquim às 8 horas da manhã já está em sua loja, onde fica até à noite, de terças aos domingos. Como me acostumei ao fim da manhã a passar por lá e tomar um cálice de vinho do Porto para espantar o frio do inverno local, algumas coisas me chamaram a atenção. A primeira delas, a consideração de Joaquim com cada cliente. Cada qual não recebia apenas o que comandava, fosse um copo de cerveja, um café ou um sanduíche. Tudo era acompanhado de algumas palavras de consideração e atenção do proprietário e era claro que muitos eram da região e assíduos do estabelecimento. Com estes a conversação por vezes ia longe. Mas mesmo os turistas que apareciam recebiam algumas palavras de atenção.

Joaquim Nogueira concorda discretamente quando digo que há em Portugal escritores melhores que Saramago, como Antônio Lobo Antunes e Miguel Torga. Mas torceu o nariz para o comentário de Joveny Cândido, que disse que ninguém iguala, na literatura portuguesa, a Camilo Castelo Branco

Logo percebi algo ainda mais inusitado: embora visse pelas janelas internas parte da cozinha, não percebia lá ninguém. Mas Joaquim recebia os pedidos e daí a pouco voltava com a refeição pedida impecavelmente arranjada em sua bandeja, os bules de chá ou café fumegantes, que apresentava ao freguês junto com algum comentário sobre o que servia, sua região de origem e suas qualidades gustativas. Também não ficava ninguém no caixa, e Joaquim para lá se dirigia quando alguém que pagava esperava o troco, que ele trazia na volta. Como Joaquim era receptivo — já tínhamos falado do Brasil algumas vezes — venci a discrição e perguntei, certo dia:

— Não vejo ninguém na cozinha, Joaquim. Tens outro cômodo, ao fundo?

— Não tenho outros cômodos. E não vês por que não há lá ninguém. Da cozinha cuido eu — respondeu.

— Então cuidas dos clientes, da cozinha e do caixa? E dás dois dedos de prosa com cada qual que aqui vem? — perguntei. (Sempre usando aqui o português de Portugal, sem o que não nos entendem muito bem e dizem que não estamos a falar português, mas brasileiro.)

— Sim — respondeu — e faço a faxina ao fim da jornada, quando fecho, antes de ir à casa. No verão quando há cá muitos turistas, e não posso com todos, contrato alguém que me ajude, mas só então.

Joveny Cândido: preferência por Camilo Castelo Branco | Foto: André Costa

Passei a observar lojas, bares e restaurantes daqui e vejo o quanto se trabalha neste Portugal.

Embora o caso de Joaquim, sozinho em uma loja onde, fosse no Brasil, estariam trabalhando ao menos três pessoas, seja extraordinário, o número de trabalhadores aqui, por estabelecimento, será a metade dos que se usam no Brasil.

Digo a Joaquim que ele é o homem dos sete instrumentos, ou homem-orquestra, com referência aos músicos, comuns nas décadas de 1920 e 1930, nos EUA, que traziam um bumbo às costas, discos entre os joelhos, gaita de sopro amarrada ao pescoço, guitarra nas mãos e nem sei que mais, e que manejavam sozinhos toda a parafernália musical que carregavam. Joaquim acha graça, e não vê nada de extraordinário na intensa atividade que desenvolve.

Miguel Torga: escritor português

Quando a casa está mais vazia, até faz um brinde e me acompanha num gole de vinho do Porto e discute literatura portuguesa. Concorda discretamente quando digo que há em Portugal escritores melhores que Saramago — que foi Prêmio Nobel — como Antônio Lobo Antunes e o conterrâneo Miguel Torga dele, Joaquim. Mas torceu o nariz para o comentário de meu amigo Joveny Candido, que estava em Aveiro e veio comigo ao Nós, Trás-os-Montes, quando este disse que ninguém iguala, na literatura portuguesa, a Camilo Castelo Branco.

Pergunto a Joaquim se não descansa, e responde divertido, que tira suas férias, anualmente, que faz coincidir com as da mulher, Fátima, conceituada enfermeira-chefe do Hospital Dom Pedro, de Aveiro, e com as das filhas, Catarina (que estuda Desenho Industrial) e Inês (que estuda História da Arte). “Então, de férias, todos juntos, vamos às ilhas, à Espanha ou outro sítio, onde nos divertimos e descansamos à larga”, diz. Parabéns, Joaquim, pelo denodo.