Tive um privilégio que o leitor, infelizmente, não terá. Conheci um Rio de Janeiro que tinha — e merecia — o título de Cidade Maravilhosa. Isso foi na segunda metade dos anos 1950 e início dos anos 1960, quando fazia ali meu curso universitário.

O Rio, ainda Capital da República até 1960, numa época de política mais séria e responsável, era uma cidade paradisíaca, com belíssimas praias de ofuscante areia branca, mar azul sem poluição, vistosa paisagem de montanhas circundantes, habitada por um povo ao mesmo tempo laborioso e alegre. A vida cultural era fervilhante.

Quem gostasse de apresentações clássicas poderia frequentar o belo Theatro Municipal, onde se revezavam os espetáculos de música erudita, ballet e teatro. A Bossa Nova explodia, com Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Johnny Alf. Boates apresentavam os melhores artistas ao vivo (Elizeth Cardoso, Lucio Alves, Dick Farney, Miltinho) e eram bem frequentadas.

O trânsito era ordenado, e nós, estudantes “prontos”, andávamos nos bondes, pontuais e baratos. Drogas praticamente não existiam e não havia o amontoado de favelas que hoje marca a cidade.

A segurança era total. Muito diferente de hoje, quando o leitor pode ser assaltado e mesmo morto nas partes tidas como mais “nobres” do Rio de Janeiro (D. Orani Tempesta, arcebispo do Rio, foi assaltado à mão armada — pela terceira vez — na semana passada, no centro da cidade).

À época, podíamos transitar a qualquer hora, voltar a pé para casa após um baile estudantil, em completo sossego. Bons tempos. A principal marginalidade era uma contravenção largamente difundida: o jogo do bicho, que era a loteria dos pobres.

Valorizados eram os policiais e não os bandidos. E ai do bandido que buscasse a fama. Iria parar no tradicional presídio da Ilha Grande ou teria destino pior, se bancasse o valente com a polícia. Por eficientes e destemidos, ficaram famosos alguns policiais (na época chamavam-se, cinematograficamente, detetives), como Milton LeCocq e Perpétuo de Freitas.

Manoel Moreira, o Cara de Cavalo: criminoso glorificado por um artista plástico | Foto: Reprodução

LeCocq era primo do histórico brigadeiro Eduardo Gomes e servira na guarda pessoal de Getúlio Vargas. Perpétuo era temido pela bandidagem, mas era ao mesmo tempo respeitado por ela. Não era adepto do “bandido bom é morto”, embora não tolerasse bandido solto. Prendia, mas dava garantia de vida ao bandido que se entregasse, o que fazia dele o preferido pelos que se rendiam. Ambos morreriam em um episódio que é o motivo dessa crônica e que relatarei a seguir.

Começou a crescer na marginalidade carioca um bandido que extorquia banqueiros do bicho e morava numa das raras favelas da cidade, a Favela do Esqueleto. Chamava-se Manoel Moreira, e tinha o apelido de Cara de Cavalo. Lá pelas tantas, adquiriu fama de valente, ficou violento, temido entre os marginais e desafiava a polícia.

Certo dia, em 1964, resistindo a uma tentativa de prisão que LeCocq comandava, disparou contra o famoso detetive e o matou, fugindo em seguida. A polícia toda se mobilizou e cada qual desejava prender — ou nessa altura matar, pois não seria fácil prendê-lo — o Cara de Cavalo, que abatera o mais famoso policial carioca.

Nessa busca, Perpétuo se desentendeu com um outro policial, Jorge Galante Gomes, e foi morto por ele. Cara de Cavalo foi cercado e morto alguns dias depois.

Hélio Oiticica, artista plástico, e a professora

Já nessa altura, existiam os artistas que se encantavam com marginais e os cortejavam, como acontece até hoje. E um artista plástico famoso no Rio de Janeiro de então, era Hélio Oiticica. Pintor, escultor, cenógrafo da escola de samba mais famosa da cidade, a Estação Primeira da Mangueira, Oiticica ficara amigo de Cara de Cavalo, quando este crescera dentro da criminalidade carioca.

Gustavo Gayer, deputado federal pelo PL | Foto: Reprodução

Autoproclamado anarquista, Oiticica se encantava com as proezas do bandido, que para ele, “reagia à opressão social burguesa”, e enfrentava a polícia, tida como “instrumento dos ricos”. Quando Cara de Cavalo foi morto, Oiticica fez em sua homenagem algumas esculturas e uma serigrafia: uma bandeira exaltando a marginalidade, com os dizeres: “Seja Marginal, Seja Herói”. Incitação ao crime, pura e simples, com homenagem expressa a um bandido que roubava, extorquia, assaltava e matava. E isso nos traz a Goiás e aos dias de hoje. 

Dias atrás, uma professora de História da Arte, de uma escola de Aparecida de Goiânia, mestre cujo nome a imprensa teve o cuidado de esconder, envergou, em plena sala de aula, uma camiseta com a serigrafia de Oiticica: um cadáver (o de Cara de Cavalo, evidentemente) e os dizeres: “Seja Marginal, Seja Herói”.

Um claro chamamento de jovens alunos, sob sua responsabilidade docente, ao crime, e exaltação de um bandido famoso, mas nem por isso menos bandido.

Como alguns pais reclamassem e o deputado federal Gustavo Gayer, do PL, buscasse explicações perante a direção da escola, a professora foi demitida. Foi pouco.

Deveria pelo menos responder um processo criminal, pois incorreu claramente no Código Penal, que em seu Artigo 286, prevê o delito de incentivo ou estímulo ao crime, punível com pena de detenção de 3 a 6 meses e multa.

A professora não fazia outra coisa, e há o agravante dos incentivados serem jovens em formação e sob sua responsabilidade. Mas o que aconteceu foi diferente.

Os deputados petistas de Goiás denunciaram o deputado Gustavo Gayer no Conselho de Ética da Câmara, no Ministério Público Federal e não sei mais onde, por “ofensas” nas redes sociais à professora.

Alguns órgãos classistas que sempre atuam como linha auxiliar do petismo, e cujos dirigentes, é de se presumir, não conhecem história e pouco ou nada leem, também fizeram coro à representação dos deputados.

A própria professora estaria processando o deputado Gustavo Gayer. Todos tentando mudar o fato de criminal para político.

Até o ex-presidente Jair Bolsonaro foi chamado à colação. Não é de se estranhar, diante de tanta idiotice e inversão de valores que contemplamos hoje.

E diante do ensino brasileiro, classificado como um dos piores do mundo em todas as avaliações internacionais sérias que são feitas.

Não cabe sequer o benefício da dúvida para essa professora, a menos que ela seja uma completa incapaz, o que não é de se desprezar. Se ela leciona História da Arte, se conhece a trajetória de Hélio Oiticica, como alega, só pode saber de sua amizade com um dos bandidos mais conhecidos do Rio de Janeiro de meados do século passado e de sua homenagem ao crime estampada em sua camiseta. Nunca poderia conduzir jovens alunos, inexperientes e em formação, por caminhos em que sequer haja dúvidas quanto à proximidade do crime.

A professora, sim, deveria responder perante a lei, e ainda é tempo de o deputado denunciá-la junto ao Ministério Público. Este, o cerne da questão.