Hélio Oiticica e o acerto de Gustavo Gayer ao denunciar professora de Aparecida de Goiânia

21 maio 2023 às 00h00

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Tive um privilégio que o leitor, infelizmente, não terá. Conheci um Rio de Janeiro que tinha — e merecia — o título de Cidade Maravilhosa. Isso foi na segunda metade dos anos 1950 e início dos anos 1960, quando fazia ali meu curso universitário.
O Rio, ainda Capital da República até 1960, numa época de política mais séria e responsável, era uma cidade paradisíaca, com belíssimas praias de ofuscante areia branca, mar azul sem poluição, vistosa paisagem de montanhas circundantes, habitada por um povo ao mesmo tempo laborioso e alegre. A vida cultural era fervilhante.
Quem gostasse de apresentações clássicas poderia frequentar o belo Theatro Municipal, onde se revezavam os espetáculos de música erudita, ballet e teatro. A Bossa Nova explodia, com Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Johnny Alf. Boates apresentavam os melhores artistas ao vivo (Elizeth Cardoso, Lucio Alves, Dick Farney, Miltinho) e eram bem frequentadas.
O trânsito era ordenado, e nós, estudantes “prontos”, andávamos nos bondes, pontuais e baratos. Drogas praticamente não existiam e não havia o amontoado de favelas que hoje marca a cidade.
A segurança era total. Muito diferente de hoje, quando o leitor pode ser assaltado e mesmo morto nas partes tidas como mais “nobres” do Rio de Janeiro (D. Orani Tempesta, arcebispo do Rio, foi assaltado à mão armada — pela terceira vez — na semana passada, no centro da cidade).
À época, podíamos transitar a qualquer hora, voltar a pé para casa após um baile estudantil, em completo sossego. Bons tempos. A principal marginalidade era uma contravenção largamente difundida: o jogo do bicho, que era a loteria dos pobres.
Valorizados eram os policiais e não os bandidos. E ai do bandido que buscasse a fama. Iria parar no tradicional presídio da Ilha Grande ou teria destino pior, se bancasse o valente com a polícia. Por eficientes e destemidos, ficaram famosos alguns policiais (na época chamavam-se, cinematograficamente, detetives), como Milton LeCocq e Perpétuo de Freitas.

LeCocq era primo do histórico brigadeiro Eduardo Gomes e servira na guarda pessoal de Getúlio Vargas. Perpétuo era temido pela bandidagem, mas era ao mesmo tempo respeitado por ela. Não era adepto do “bandido bom é morto”, embora não tolerasse bandido solto. Prendia, mas dava garantia de vida ao bandido que se entregasse, o que fazia dele o preferido pelos que se rendiam. Ambos morreriam em um episódio que é o motivo dessa crônica e que relatarei a seguir.
Começou a crescer na marginalidade carioca um bandido que extorquia banqueiros do bicho e morava numa das raras favelas da cidade, a Favela do Esqueleto. Chamava-se Manoel Moreira, e tinha o apelido de Cara de Cavalo. Lá pelas tantas, adquiriu fama de valente, ficou violento, temido entre os marginais e desafiava a polícia.
Certo dia, em 1964, resistindo a uma tentativa de prisão que LeCocq comandava, disparou contra o famoso detetive e o matou, fugindo em seguida. A polícia toda se mobilizou e cada qual desejava prender — ou nessa altura matar, pois não seria fácil prendê-lo — o Cara de Cavalo, que abatera o mais famoso policial carioca.
Nessa busca, Perpétuo se desentendeu com um outro policial, Jorge Galante Gomes, e foi morto por ele. Cara de Cavalo foi cercado e morto alguns dias depois.
Hélio Oiticica, artista plástico, e a professora
Já nessa altura, existiam os artistas que se encantavam com marginais e os cortejavam, como acontece até hoje. E um artista plástico famoso no Rio de Janeiro de então, era Hélio Oiticica. Pintor, escultor, cenógrafo da escola de samba mais famosa da cidade, a Estação Primeira da Mangueira, Oiticica ficara amigo de Cara de Cavalo, quando este crescera dentro da criminalidade carioca.

Autoproclamado anarquista, Oiticica se encantava com as proezas do bandido, que para ele, “reagia à opressão social burguesa”, e enfrentava a polícia, tida como “instrumento dos ricos”. Quando Cara de Cavalo foi morto, Oiticica fez em sua homenagem algumas esculturas e uma serigrafia: uma bandeira exaltando a marginalidade, com os dizeres: “Seja Marginal, Seja Herói”. Incitação ao crime, pura e simples, com homenagem expressa a um bandido que roubava, extorquia, assaltava e matava. E isso nos traz a Goiás e aos dias de hoje.
Dias atrás, uma professora de História da Arte, de uma escola de Aparecida de Goiânia, mestre cujo nome a imprensa teve o cuidado de esconder, envergou, em plena sala de aula, uma camiseta com a serigrafia de Oiticica: um cadáver (o de Cara de Cavalo, evidentemente) e os dizeres: “Seja Marginal, Seja Herói”.
Um claro chamamento de jovens alunos, sob sua responsabilidade docente, ao crime, e exaltação de um bandido famoso, mas nem por isso menos bandido.
Como alguns pais reclamassem e o deputado federal Gustavo Gayer, do PL, buscasse explicações perante a direção da escola, a professora foi demitida. Foi pouco.
Deveria pelo menos responder um processo criminal, pois incorreu claramente no Código Penal, que em seu Artigo 286, prevê o delito de incentivo ou estímulo ao crime, punível com pena de detenção de 3 a 6 meses e multa.
A professora não fazia outra coisa, e há o agravante dos incentivados serem jovens em formação e sob sua responsabilidade. Mas o que aconteceu foi diferente.
Os deputados petistas de Goiás denunciaram o deputado Gustavo Gayer no Conselho de Ética da Câmara, no Ministério Público Federal e não sei mais onde, por “ofensas” nas redes sociais à professora.
Alguns órgãos classistas que sempre atuam como linha auxiliar do petismo, e cujos dirigentes, é de se presumir, não conhecem história e pouco ou nada leem, também fizeram coro à representação dos deputados.
A própria professora estaria processando o deputado Gustavo Gayer. Todos tentando mudar o fato de criminal para político.
Até o ex-presidente Jair Bolsonaro foi chamado à colação. Não é de se estranhar, diante de tanta idiotice e inversão de valores que contemplamos hoje.
E diante do ensino brasileiro, classificado como um dos piores do mundo em todas as avaliações internacionais sérias que são feitas.
Não cabe sequer o benefício da dúvida para essa professora, a menos que ela seja uma completa incapaz, o que não é de se desprezar. Se ela leciona História da Arte, se conhece a trajetória de Hélio Oiticica, como alega, só pode saber de sua amizade com um dos bandidos mais conhecidos do Rio de Janeiro de meados do século passado e de sua homenagem ao crime estampada em sua camiseta. Nunca poderia conduzir jovens alunos, inexperientes e em formação, por caminhos em que sequer haja dúvidas quanto à proximidade do crime.
A professora, sim, deveria responder perante a lei, e ainda é tempo de o deputado denunciá-la junto ao Ministério Público. Este, o cerne da questão.