O papel da imprensa, numa democracia, é o de informar a sociedade sobre o que acontece, com clareza, precisão e isenção. Qualquer ação, fora disso, não é notícia, é desinformação, ferramenta de regimes autoritários.

Cabe a uma parte da imprensa, a imprensa investigativa, informar sobre os fatos que, por alguma razão, em geral inconfessável, permanecem invisíveis, embora sejam de interesse social. É uma parcela da imprensa que hoje está em baixa, apesar de sua inegável utilidade e de seu papel histórico em várias ocasiões e em muitos lugares.

A esmagadora maioria dos jornalistas de hoje, ao menos no Brasil, dá preferência a uma cômoda divulgação daquilo que interessa ao governo de plantão ou que coincide com seus interesses ideológicos, seja notícia ou desinformação. E, claro, levar para casa, ao fim do mês, um bom salário.

A imprensa investigativa, no mundo todo, concorreu com as forças policiais e desvendou mistérios que intrigavam a sociedade. Exemplos marcantes constam da história, local ou mundial.

Um bom repórter investigativo pode mudar o rumo da história, e um exemplo está no escândalo Watergate, quando dois repórteres do “Washington Post”, Bob Woodward e Carl Bernstein, levantaram os fatos de uma escuta clandestina nos escritórios do Partido Democrata, em 1972. Essa investigação provocou até a queda de um presidente dos EUA, o republicano Richard Nixon, em 1974.

Roberto Cabrini e Tim Lopes

Hoje, numa imprensa acomodada, praticamente não se tem repórteres investigativos, como tivemos até há pouco tempo. Um exemplo é o profissional Francisco Roberto Cabrini, que, entre outras façanhas, descobriu em Londres, em 1993, o foragido Paulo César Farias, o PC, tesoureiro da campanha presidencial de Fernando Collor, que a polícia não conseguia encontrar, e que seria mais tarde assassinado.

Como o repórter investigativo, por buscar fatos ocultos, tem muitas vezes que atuar no submundo social, os perigos da profissão são evidentes. Temos um exemplo caseiro: o jornalista Tim Lopes, repórter de uma grande empresa de comunicação, prêmio Esso de reportagem, já fizera vários trabalhos arriscados, quando resolveu investigar um reduto do narcotráfico, na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, em 2002. Atendia a uma denúncia de que traficantes locais promoviam bailes funk, nos quais drogas e armas conviviam com a prostituição infantil. Seu disfarce foi descoberto, e ele acabou torturado e morto a mando do chefe do tráfico local, Elias Maluco.

Tim Lopes, repórter investigativo morto no exercício da função em 2002, aos 51 anos | Foto: Reprodução

Gareth Jones: repórter investigativo

E se o leitor nunca ouviu falar do repórter investigativo galês Gareth Jones, faço aqui as apresentações.

Gareth Richard Jones (1905-1935) foi um jovem brilhante em seus estudos linguísticos, na Universidade de Wales, na Universidade de Estrasburgo e no Trinity College de Cambridge. Foi professor em Cambridge e assessor do primeiro-ministro britânico Lloyd George (que nunca lhe poupou elogios), em 1930.

Em seguida, resolveu tornar-se repórter freelance. Foi um dos primeiros jornalistas estrangeiros a entrevistar Adolf Hitler, logo após sua nomeação como chanceler da Alemanha, em 1933.

Mas a façanha que o imortalizou, como repórter investigativo, Gareth Jones a praticou na União Soviética, mais particularmente na Ucrânia.

Gareth Jones sentia particular atração por esse país do Leste Europeu, famoso por seus monumentos históricos, sua bela capital Kiev e suas terras fertilíssimas.

Gareth Jones: um repórter “múltiplo” que não temia as ditaduras e foi assassinado aos 29 anos | Foto: Reprodução

Sua mãe havia sido, na Ucrânia, tutora dos netos do industrial galês John Hughes, que tinha negócios ali, e havia fundado a cidade ucraniana hoje chamada Donetsk. Por tudo isso, Jones tinha especial interesse na Ucrânia, que agora, na década de 1930, vivia sob o tacão comunista de Stálin.

Gareth Jones havia feito duas viagens à União Soviética, em 1930 e 1932, e voltara curioso com o fato da URSS, que era pouco industrializada, dispor de divisas para pagar suas importações. Verificou que essas divisas eram geradas com exportações de grãos, de que a Ucrânia sempre fora grande produtora.

Inteligente e curioso, Gareth Jones quis saber como teriam sido gerados excedentes agrícolas, que não existiam anos antes. Ele havia constatado em suas viagens: a coletivização forçada das fazendas ucranianas, aliada à migração interna de ucranianos, também forçada, não fora de molde a melhorar a produção agrícola, muito pelo contrário.

O repórter conseguiu visto para nova viagem para a Ucrânia, em 1933, e quando soube da proibição de visitar certas áreas do interior, como seu combustível pessoal era uma mistura de altruísmo e coragem, desceu às escondidas do trem, fez uma peregrinação clandestina pelo país, e constatou, horrorizado, que Stálin estava confiscando a produção agrícola, até os últimos grãos, para conseguir divisas. E que essa medida estava levando os camponeses à morte pela fome, não aos milhares, mas aos milhões, num dos mais cruéis genocídios da história.

Gareth Jones testemunhou, horrorizado, casos de canibalismo. Estava descoberto o “Holodomor” (a palavra, em ucraniano, significa “matar pela fome”), que poderia ter ficado encoberto por décadas, ou talvez para sempre, não fossem seu faro e coragem investigativos.

Ao chegar em Berlim, de volta da URSS, Gareth Jones denunciou publicamente o fato, que teve grande repercussão. Os soviéticos o negaram, contando para isso com jornalistas americanos venais, residentes em Moscou e cooptados por Stálin.

A compra de agentes de desinformação já era realidade então, cerca de um século atrás, tal como é hoje.

Gareth Jones foi proibido de voltar à URSS, por ordem de Stálin, e continuou sua carreira de repórter investigativo.

Em 1935, foi até o Manchukuo, na Mongólia, pois queria fazer uma reportagem sobre a ocupação japonesa. Numa operação obscura, foi ali sequestrado e morto a tiros, um dia antes de completar 30 anos.

Já à época, ninguém teve dúvidas de que foi eliminado a mando do regime comunista de Stalin, que ele havia atingido a fundo, revelando o “Holodomor”. Gareth Jones foi, em 2008, condecorado postumamente pelo governo ucraniano. Ficou na história como exemplo de determinação, de coragem e de excelência jornalística.

Como dizia Lloyd George: “Ele tinha o dom quase infalível de chegar às coisas importantes”. Um dom que revelou ao mundo a frieza comunista num dos maiores genocídios já praticados e um dom que falta à grande maioria dos obliterados jornalistas da atualidade.

(Há um filme sobre a história de Gareth Jones. Trata-se de “Mr. Jones”, da diretora de cinema polonesa Agnieszka Holland.)

Leia sobre o Holodomor em livro de Anne Applebaum