Holodomor: 4 milhões de ucranianos morreram de fome devido à política de Stálin
06 fevereiro 2022 às 00h00
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Assim como Stálin, Putin teme que uma Ucrânia forte e bem-sucedida possa influenciar os russos, levando-os a se rebelarem contra a tirania do ex-KGB
A imprensa e alguns tradutores de livros às vezes tratam a União Soviética como se fosse unicamente a Rússia. Mas esta era “apenas” uma das várias repúblicas soviéticas. Era a mais influente, dado o poder central do país ter sido instalado em Moscou, sua capital. O Kremlin, símbolo do poder red, fica no país de Liev Tolstói.
Com o fim da União Soviética, as repúblicas se tornaram países. São o caso da Rússia, da Ucrânia, da Letônia, da Lituânia, da Estônia, da Geórgia, da Bielorrússia, entre outros. Na imprensa brasileira fala-se, dado o conflito recente, que Rússia e a Ucrânia de Nikolai Gógol e Liev Trotski são “nações-irmãs”. Por causa de um passado em comum, fica-se que com a impressão de que o “parentesco” é um fato. Porém, na verdade, a história é mais complexa.
A Ucrânia não tem amores pela Rússia e esta, por seu turno, não nutre nenhuma paixão por aquela. Em 2022, a Rússia do autocrata Vladimir Putin ameaça a Ucrânia do presidente Volodymyr Zelensky.
O que tanto teme a Rússia de Putin, um homem da velha guarda do KGB? Que a Ucrânia, amparada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte, se torne uma potência — sobretudo, uma potência democrática e econômica —, e contamine toda a região. As ex-repúblicas vivem, quase todas, com a espada de Dâmocles — quer dizer, da Rússia — sobre suas cabeças. Podem se desenvolver, mas sob o olhar tanto protetor quanto ameaçador da Rússia.
A Ucrânia, se estiver na esfera da Otan — dos Estados Unidos, da Alemanha e da Inglaterra —, tende a se tornar uma ameaça à autocracia criada e impulsionada por Putin. Se atacada pela Rússia, pode-se tornar a Polônia de setembro de 1939. Noutras palavras, se a Rússia invadir a área de um membro da Otan, pode ser o início da Terceira Guerra Mundial. Claro que a Rússia não quer a guerra — porque lhe é desfavorável (a China, por exemplo, poderia se omitir) —, mas luta para permanecer como potência hegemônica na “sua” região. O fato de ter energia nuclear é o que faz Estados Unidos, Alemanha e a Inglaterra tratarem Putin como “estadista”, e não um mero simulacro mignon de Ióssif Stálin. Embora “odiado”, Israel é temido no Oriente Médio porque tem energia nuclear. Se puder tê-la (ou se obtiver o apoio real de quem tem), com o apoio da Otan, a Ucrânia se tornaria um perigo para a Rússia. Assim como a Rússia (grande produtora de petróleo e de gás, do qual dependem os países europeus, como a Alemanha), de certo modo, é um perigo para a Europa.
Vladimir Putin “repete” Ióssif Stálin
A quizília da Rússia com a Ucrânia não é recente. Assim como Putin, Stálin tinha receio de que a Ucrânia ameaçasse o poder soviético. Porque o país tinha (e tem) um povo com forte identidade, língua e cultura próprias. O ditador totalitário temia o que chamava de “ucranização”, ou seja, que a Ucrânia, no lugar de se tornar ou continuar comunista, se tornasse um país à parte — devido ao seu forte nacionalismo —, e, possivelmente, inimigo dos bolcheviques.
Ante uma Ucrânia altiva, de espírito independente e ousado, Stálin decidiu usar o tacão de ferro contra seu povo. Na década de 1930 — e até um pouco antes —, Stálin e seus sequazes, como Lazar Kaganovich, Postyshev, Molovov, Nikita Kruschev e Voroshilov, impuseram um rígido controle sobre a Ucrânia.
Os comunistas do Kremlin — da Rússia (na verdade, a União Soviética), portanto — decidiram arrancar os alimentos da Ucrânia à força, criando uma fome artificial na República. Sim, a fome foi produzida pelo governo de Stálin. Havia dois objetivos, conectados. Primeiro, a União Soviética precisava de grãos para exportar. Segundo, a cúpula bolchevique queria — e conseguiu — destruir qualquer possível oposição (inclusive comunista) na Ucrânia. Resultou que cerca de 3,9 — quase 4 — milhões (a estatística ainda está em discussão; portanto, é possível que o número de mortes seja maior) de ucranianos morreram de fome (numa das regiões mais férteis do mundo) e cerca de 200 mil políticos e intelectuais foram fuzilados. Stálin, então, submeteu a Ucrânia; porém, para tanto, quase destruiu um povo. Ainda assim, com o fim do socialismo e da URSS, a Ucrânia renasceu. Assim como Stálin, um de seus “filhos”, Putin, quer submetê-la e, por isso, a mantém sob expectativa de invasão a qualquer momento.
A morte de 4 milhões de pessoas — por uma fome fabricada e gerenciada pelos comunistas de Stálin —, conhecida como Holodomor, é similar ao Holocausto. O governo bolchevique destruiu grande parte do povo ucraniano. Adolf Hitler, o nazista da Alemanha, comandou a matança de 6 milhões de judeus, em campos de extermínio localizados na Polônia, como Auschwitz-Birkenau, Treblinka e Sóbibor, mas pouco se fala da matança (quiçá “inspiradora”) dirigida por Stálin, um pouco antes, no início da década de 1930, na Ucrânia.
A palavra genocídio aplica-se ao caso da Ucrânia no tempo de Stálin. Aos poucos, o Holodomor se torna mais conhecido.
Há em português livros específicos sobre o assunto: “Holodomor — O Holocausto Esquecido” (Vide Editorial, 336 páginas, tradução de Rodrigo Jungmann), de Miron Dolot, e “Fome Vermelha — A Guerra de Stálin na Ucrânia” (Record, 559 páginas, tradução de Joubert de Oliveira Brízida), da historiadora Anne Applebaum, professora da London School of Economics e ganhadora de um prêmio Pulitzer.
No epílogo, Applebaum assinala: “Da mesma forma que, em 1932, Stálin disse a Kaganovith que a ‘perda’ da Ucrânia era sua principal preocupação, o governo russo de hoje [de Putin] também acredita que uma Ucrânia soberana, democrática e estável, ligada ao restante da Europa por laços culturais e comerciais, é uma ameaça aos interesses dos líderes russos. Afinal, se a Ucrânia se tornar europeia demais — se conseguir algo parecido com uma integração bem-sucedida com o Ocidente — talvez os russos se perguntem: por que não nós”.
A fome artificial criada pelos comunistas
A fome ucraniana foi um “ato de agressão do Estado”. Um “ataque coletivo” aos camponeses “e à sua cultura”. Applebaum frisa que “não foi o fracasso na safra, tampouco o clima ruim, que provocou a fome ucraniana. Apesar de o caos da coletivização ter ajudado a criar as condições que levaram à fome, o alto índice de mortes na Ucrânia entre 1932 e 1934, e especialmente no auge da primavera de 1933, também não foi provocado diretamente pela coletivização. A inanição foi o resultado, isso sim, da retirada à força dos alimentos das casas das pessoas; dos bloqueios nas estradas que impediram que os camponeses achassem emprego ou comida; das regras rígidas das listas negras, impostas aos fazendeiros e aos vilarejos; das restrições ao escambo e ao comércio; e da maldosa campanha de propaganda projetada para persuadir os ucranianos a observar, inertes, enquanto seus vizinhos morriam de fome”.
O fato é que Stálin, o czar vermelho, patrocinou um ataque “contra um grupo étnico ou não”. Applebaum nota que, “em sentido bastante literal, o conceito de ‘genocídio’ tem suas origens na Ucrânia, especificamente na polonesa-judia-ucraniana cidade de Lviv. Raphael Lemkin, acadêmico que inventou a palavra — combinando o grego ‘genos’, que significa raça ou nação, com o sufixo ‘cídio’, derivado do latim e relativo a matar —, estudou Direito na Universidade de Lviv, então chamada Lwów, na década de 1920. (…) Lemkin escreveu em sua autobiografia que foi inspirado a pensar sobre o genocídio pela história de sua região”.
Holodomor significa extermínio pela fome (“holod” é fome e “mor” é extermínio). Ucrânia significa “terra da fronteira”. Sobre o país, o filósofo francês Voltaire (1694-1778) escreveu: “A Ucrânia sempre aspirou à liberdade”.
O horror, o horror, o horror!
A partir de agora, o que se lerá é terrível. Leia apenas se quiser saber sobre a ação inominável dos comunistas liderados por Stálin na Ucrânia. Tenha em mente, ao tomar ciência dos horrores, que algumas pessoas comuns às vezes foram transformadas em “monstros” pela fome. Uma fome induzida pela cruel política dos comunistas soviéticos (e não necessariamente russos; Stálin, por exemplo, era de Gori, na Geórgia).
O capítulo mais duro de se ler do livro de Applebaum talvez seja “Fome: primavera e verão, 1933”.
A fome não começou em 1933, mas intensificou-se nesse ano. A sobrevivente Tetiana Pavlychka, da província de Kiev, disse sobre a irmã Tamara: “Tinha uma barriga grande e inchada, e seu pescoço era longo e fino como o de um pássaro. As pessoas não pareciam gente — assemelhavam-se mais a fantasmas famintos”.
Outro sobrevivente contou que sua mãe “parecia uma jarra cheia de água cristalina. Todas a partes de seu corpo à mostra (…) podiam ser perfuradas pelo olhar, como se fosse um saco plástico cheio de água”.
Um homem, igualmente sobrevivente, disse que seu irmão ficava deitado — “vivo, mas completamente inchado, com o corpo brilhante como se fosse de vidro”. As pessoas, de tanta fome, viviam zonzas.
Uma criança, balançando o corpo para a frente e para trás, entoava uma “canção”, à meia-voz: “Comer, comer, comer”. Um homem que a escutou nunca mais a esqueceu.
Convocado para colaborar no confisco de alimentos dos ucranianos, um comunista falou sobre as crianças que encontrou: “Todas iguais: cabeça como se fosse semente pesada, pescoço como o de cegonhas, cada movimento de osso era percebido através da pele de braços e pernas, a pele em si parecia gaze amarelada e enrolada em torno de seus esqueletos. O rosto delas era de gente idosa, exausta, como se já tivessem vivido na terra por uns setenta anos. E seus olhos, meu Deus!”
Muitos dos famintos tinham escorbuto. “Os acúmulos patológicos de líquidos — edemas — inchavam as pernas das vítimas e sua pele se tornava muito fina, até mesmo transparente. Nadia Malyshko” disse “que sua mãe ‘ficou toda inchada, enfraquecida, e parecia idosa, embora só tivesse 37 anos. Suas pernas brilhavam e a pele rachava’”.
“Os indivíduos com pernas muito gordas, cobertas de feridas, não podiam sentar: ‘Quando um deles sentava, a pele rachava e o líquido começava a escorrer pernas abaixo, o fedor era horroroso e as pessoas sentiam dores insuportáveis’.”
Applebaum anota que “a barriga das crianças inchava e a cabeça parecia pesada demais para ser sustentada pelo pescoço. Uma mulher recordou-se de ter visto uma menina tão emaciada que ‘era possível ver seu coração batendo por baixo da pele’”.
Trabalhando numa escola, a irmã de Volodymyr Slipchenko “testemunhou crianças morrendo durante as aulas — ‘a criança, sentada em sua carteira, de repente desmaiava e caía’ —, ou no recreio, enquanto brincava sobre a grama do pátio. Muitas morreram enquanto caminhavam, na tentativa de escapar”.
As margens das “estradas que levavam à Donbas ficaram repletas de cadáveres”. “Havia mais corpos que pessoas para recolhê-los”, rememora um sobrevivente.
Vários indivíduos morriam quando estavam comendo. Em 1933, segundo Hryhorii Simia, as pessoas iam para os campos para comer “espiguetas restantes da colheita” e, quando tentavam comê-las, morriam. “O mesmo aconteceu nas filas de pão das cidades: ‘Houve casos de pessoas que conseguiram um pedaço de pão, comeram-no e morreram no ato, exauridas demais pela fome’.”
Um sobrevivente levou beterrabas para a avó, que comeu duas cruas e cozinhou as demais. “Poucas horas depois, estava morta, pois seu corpo não aguentou a digestão.”
Havia a “psicose da fome”. “Em função da fome, as psiques dos indivíduos ficaram perturbadas”, disse Petro Boichuk. Pitirim Sorokin “recordou-se de que apenas com uma semana de privação de alimentos, ‘era muito difícil manter a concentração, nem sequer por um minuto, em qualquer coisa que não fosse a fome’”. As pessoas alucinavam.
A fome, que trazia a morte, superava até mesmo os sentimentos familiares. “Uma mulher, que sempre fora gentil e generosa, mudou quando os alimentos começaram a escassear. Ela expulsou a mãe de casa e mandou-a morar com outro parente. (…) ‘Deixe de ser um estorvo para meus filhos’.”
“Uma mulher afirmou aos vizinhos que, embora fosse sempre possível ter mais filhos, ela só tinha um marido, e queria mantê-lo vivo. Ela então confiscou os alimentos que os filhos pequenos haviam recebido na escola, e as crianças morreram”, narra Applebaum. “Um casal colocou os filhos em um poço fundo e lá os deixou, para não presenciar seus falecimentos. Vizinhos escutaram os gritos de crianças, e elas foram resgatadas e sobreviveram.”
A sobrevivente Uliana Lytvyn clamou: “Acredite em mim, a fome cria animais irracionais, a partir de seres humanos bons e honestos. O intelecto e a consideração desaparecem, assim como a piedade e a consciência também deixam de existir”. Ela contou que chorava até dormindo.
Miron Dolot declara que “o medo passou a ser nossa constante companhia: havia imenso terror de se ficar sozinho e desamparado diante do monstruoso poder do Estado. (…) Vizinhos foram obrigados a espionar vizinhos”. O Estado totalitário, com sua polícia secreta, a OGPU, estava em ação.
Por causa da fome, tudo mudou. “A sinceridade e a generosidade cultivadas por séculos não existiam mais; sumiram quando os estômagos ficaram vazios”, conta Iaryna Mytsyk. As pessoas, quando tinham alimentos — sempre poucos —, comiam escondidas. Temiam tanto o poder do Estado, que recolhia tudo e com violência, quanto roubos.
Como era preciso sobreviver, às vezes sacrificava-se valores. Em Mariupol, uma garota de 15 anos viu uma fila e pediu nacos de pão àqueles que estavam comprando. O dono da loja bateu na mão da jovem, chamando-a de preguiçosa. Ela caiu e foi chutada. “A menina gemeu, esticou-se toda e morreu. Alguns na fila começaram a chorar. O dono da loja, comunista, notou o choro e ameaçou: ‘Tem gente muito sentimental por aqui. É muito fácil identificar inimigos do povo’”, anotou um habitante do lugar.
Anastasiia Kh, uma criança, comprou “uma fatia de pão” e “correu para casa com o alimento”. No caminho, uma camponesa, com um bebê nos braços, pediu-lhe um pedaço do pão. A menina saiu correndo. “Tão logo virei as costas, a mulher se ajoelhou e faleceu. O medo tomou meu coração, porque parecia que os olhos abertos da mãe me acusavam de ter-lhe negado alimento. Chegaram pessoas e pegaram o bebê, que, mesmo morta, a mulher agarrava firmemente. A imagem daquela mulher estirada me aterrorizou por muito tempo”.
Ante a fome intensa e letal, postula Applebaum, “as regras comuns da moralidade não mais faziam sentido. Roubos de vizinhos, de primos, das fazendas coletivas, dos locais de trabalho tornaram-se corriqueiros”. Crucial era sobreviver