Vocês por certo não ouviram falar de amizade de duas gerações. Explico: tive uma amizade fraterna como Aryanna Guimarães Filho, e tenho o mesmo nome que meu pai, tanto que sou Junior. Pois bem: meu pai e Aryanna (pai) também eram como irmãos. Amizade de duas gerações é isso — dois amigos, que herdaram o prenome dos pais, que também eram amigos. Um adendo: nossas mães também eram amigas e professoras. E nossos pais, ambos policiais, além de pioneiros de Goiânia. Explicado? Vamos a uma história. Ela me foi contada por meu pai e Aryanna Filho.

Nossos pais foram policiais nas décadas de 1940 e 1950, principalmente. Não existiam as drogas e nem as facções criminosas que hoje sacodem o país com seu poderio econômico e sua violência. Mas nem por isso ser policial era fácil ou seguro.

Os policiais ganhavam pouco, tanto que nossas mães lecionavam, em grupos escolares, para complementar a renda familiar e criar os filhos. As ações policiais, numa época de contingentes baixos, deficiência de meios de comunicação e transporte, pobreza de armamento e equipamentos, exigiam muitas vezes que o policial se deslocasse apenas com um agente como acompanhante, ou mesmo sozinho, pelos ermos do Estado, para uma diligência ou uma prisão. E se não existiam traficantes com seus fuzis, existiam outros tipos de meliantes, até mais perigosos, como os pistoleiros, que cometiam seus crimes no vizinho Mato Grosso e se homiziavam aqui. Não andavam em bandos, como os bandidos de hoje, mas na sua solidão residia seu perigo. Nada tinham a perder, tinham pouquíssimo apego à vida, exibiam sua destreza e se orgulhavam de ter coragem de enfrentar a polícia.

Ser policial em Goiás, em meados do século passado, e cumprir sua tarefa nas lonjuras interioranas, como nas margens despovoadas do Araguaia, era como ser xerife no velho oeste americano. Requeria resistência, discernimento e coragem. Até o transporte, muitas vezes, era uma montaria.

Nossas mães, até por isso, eram exímias rezadeiras, e desfiavam suas orações, quando os maridos partiam para alguma missão de segurança em locais remotos e sem comunicação, ou mesmo na Capital, mas de perigo evidente.

Garotos, acompanhávamos as preocupações maternas, embora só mais tarde soubéssemos avaliar os riscos que corriam nossos pais. Um exemplo ficou gravado em minha memória, mais pelo desespero de minha mãe do que pela minha compreensão do que estava acontecendo.

Foi lá pelos meados de 1945, ainda no rescaldo do pós-guerra, quando meu pai era diretor da Penitenciária Estadual. Houve uma rebelião dos presos, que desarmaram e prenderam os vigilantes, depredaram as instalações e prometiam matar os reféns se não lhes fosse dado um veículo para a fuga dos chefes do movimento — justamente os detentos mais perigosos.

Com a penitenciária cercada pela Polícia Militar, os presos exaltados no interior, lá se foi meu pai para o local, onde hoje é a Avenida Independência, próximo ao Mutirama.

Não existia televisão nessa época, mas a rádio, que era o meio de divulgação de então, lá estava, transmitindo o correr da confusão. Foi quando chegou meu pai, entregou sua arma para o oficial da PM encarregado do cerco, e mandou abrir o portão, para que ele entrasse e dialogasse com os amotinados. Antes, que anunciassem aos rebelados, pelos alto-falantes, que ele entraria só e desarmado — ordenou.

Foi um espanto, e os policiais presentes tentaram demovê-lo e fazer com que aceitasse, e comandasse, uma invasão do presídio. Afinal, ele seria mais um refém, diziam, e correria sério risco de vida. Os autores de crimes mais cruéis estavam lá dentro, e portavam as armas tomadas dos guardas penitenciários. Mas não houve como demovê-lo. Uma invasão seria uma mortandade — alegou —, inclusive dos reféns. E entrou para dialogar, enquanto as rádios tudo transmitiam e minha mãe, que ouvia em casa, se ajoelhava em orações. Ao final do diálogo, os presos se desmobilizaram, entregaram armas e reféns, e acabou a rebelião com algumas promessas, depois rigorosamente cumpridas, de melhoria na comida e afastamento de alguns guardas mais, digamos assim, rigorosos.

Andira Guimarães | Foto: Arquivo da família Guimarães

Mas eram, não só meu pai e Aryanna, mas muitos agentes e delegados colegas, distendidos e alegres, fora do trabalho. Gostavam de uma boa conversa, boas piadas, brincadeiras uns com os outros. E de um bom aperitivo, fosse um uísque ou, mais apreciada ainda, uma cachaça italiana, uma “grappa” perfumada com anis, chamada Sambuca, então muito popular por aqui, e ideal para acompanhar um joguinho de pôquer no Jóquei Clube, onde se reuniam. Sabiam enfrentar os riscos e outras agruras da profissão, sem renunciar a seu lazer simples e honesto.

Nas décadas de 1950 e 1960 as enfermidades mais fatais eram o câncer e as doenças do coração. Nem de longe existiam os recursos que hoje socorrem os doentes desses males. Quem deles padecesse, conviveria com paliativos, até que mais jeito não houvesse. Aryanna pai se foi, de câncer, nos inícios dos anos 1960, e nem 50 anos de vida completos, se bem me lembro, e Aryanna filho morreu do coração, nos anos 1990. Sobrevivi aos amigos, mas meu pai também se foi, do coração, aos 70 anos de idade, em 1982, bem depois de seu amigo Aryanna. Mas vamos à história que me foi contada por Aryanna Filho e meu pai.

Diagnosticado o mal de Aryanna (pai), pelo médico Francisco da Cunha Bastos, o então famoso Dr. Chiquinho, ele chamou ao consultório o seu paciente e a mulher, Andira. Anunciou sem meias palavras o câncer de Aryanna, que não se abalou, pois tinha coragem de sobra para enfrentar a indesejada. Sua coragem, aliás, era lendária. Iria conservá-la até o fim, como conservaria também a verve, como veremos depois. Dr. Chiquinho prescreveu alguns medicamentos e uma rigorosa dieta. Seguiria o curso da doença, prescreveria conforme sua evolução outras medicações, de modo a contemporizar e até — quem sabe — ocorrer uma cura milagrosa. E lá foram o doente e esposa em busca do Dr. Saulo, um conhecido farmacêutico de Goiânia, para “aviar” a receita médica, pois nessa época boa parte dos medicamentos era manipulada e não industrializada. E deram sequência, sob a rigorosa fiscalização de Andira, ao tratamento e à dieta, onde estava claramente expresso: nada de álcool.

Passado algum tempo, um ano talvez, e Aryanna, já um tanto debilitado, chega em casa com uma garrafa, cheia de um líquido leitoso, onde se via um rótulo de farmácia com os dizeres: tomar um cálice quatro vezes por dia, de quatro em quatro horas. Que entregou, com ar enojado a uma preocupada Andira, explicando:

— Mais um remédio do Dr. Chiquinho. Já ando enjoado dessas drogas que não fazem efeito. E dessa tisana não estou aguentando nem o cheiro. O melhor é você jogar isso no ralo e não falar nada para o Chiquinho.

— De jeito nenhum! — retrucou Andira. Você vai tomar direitinho e eu vou cuidar disso. Quem sabe esse é o remédio que vai lhe curar.  

 Mesmo no ambiente machista daqueles anos, em casa mandava a mulher, e Aryanna não teimou. Tomava a bebida que Andira lhe levava às 6 da manhã, às 10 horas, às 14 horas e às 18, não sem fazer cara de nojo, antes de ingerir, de um só gole, a dita tisana. Que algumas vezes até ensaiava recusar, mas sempre engolia, diante da insistência de Andira. A primeira e a última dose do dia eram mais fáceis para Andira. Eram horas em que ela estava em casa. Mas as doses das 10 horas e das 14, a obrigavam a uma ginástica: lecionando num grupo escolar, ainda que próximo de sua casa, corria, no intervalo entre duas aulas, a obrigar o doente recalcitrante engolir o remédio, antes de voltar, também às pressas, às tarefas docentes. Temia que não estando presente, o rebelde não administrasse a si mesmo o rejeitado medicamento. Até que um dia …

Andira viu, com preocupação, que a garrafa estava no final. Apesar do progresso da doença, pensava ver em Aryanna um certo bem-estar quando lhe administrava a tal beberagem. Sem nada dizer ao doente, correu à farmácia do Dr. Saulo, para que lhe renovasse o garrafão. Mas o boticário não se lembrava daquela mistura e afirmou a Andira apenas ter confeccionado algumas cápsulas, receitadas pelo Dr. Chiquinho.

— Mas tem o rótulo de sua farmácia! — teimou Andira. E as instruções escritas nele. É uma garrafa grande, um líquido esbranquiçado.

Saulo, a mão no queixo, tentava se lembrar. E se lembrou:

— Não fui eu quem aviou essa receita. Foi o próprio Dr. Chiquinho. O Aryanna passou por aqui com essa garrafa e me pediu um rótulo, para anotar as instruções, pois temia esquecer as dosagens e os horários.

Andira respirou, aliviada, agradeceu e foi em busca do doutor, no seu consultório. Aguardou enquanto este atendia um paciente, e recebida pelo médico e amigo da família, contou o caso e pediu a renovação da receita. O médico fez cara de interrogação:

— Que receita, Andira? Não me lembro.

— Estava numa garrafa grande, um líquido esbranquiçado, de tomar um cálice quatro vezes ao dia. Parece fazer bem a Aryanna, mas está no fim.

Mas Chiquinho não atinava. Não costumava aviar receitas ele mesmo, e estranhava aquela dosagem: 1 cálice, quatro vezes ao dia? Estranho, muito estranho.

— Andira, me traga essa garrafa. Vamos esclarecer isso.

— Agora mesmo, doutor. Vou em casa buscar.

— Não deixe o Aryanna ver que você está trazendo, disse o médico, desconfiado.

Andira achou estranha a recomendação, mas nada disse. Com médicos não se discute.

Meia hora depois, ali estava Andira, esbaforida, com a garrafa quase vazia debaixo do braço, que estendeu a Chiquinho. Este a examinou, olhou o rótulo, desarrolhou, cheirou.

— Andira, foi o Saulo quem preparou isso?

— Não. O Aryanna passou lá já com a garrafa e pediu um rótulo. Disse que levou daqui.

Chiquinho desfranziu a testa e deu uma risada.

— Andira, Aryanna está troçando de todos nós. Do Saulo, de mim, de você. E da própria fatalidade. Sabe o que tem aqui dentro? Sabe o que você está ministrando a ele, por todo esse tempo?

— Não — respondeu ela, olhos arregalados.

É pinga Sambuca, Andira!