“O Leproso de Aosta” e “Koolau” são as metáforas do cidadão vulnerável cuja liberdade o governo ameaça

Duas estórias, duas fortes narrativas, ambas de conteúdo altamente dramático, para não dizer trágico, e envolvendo personagens atingidos pelo mesmo infortúnio, merecem um comentário para a apreciação dos leitores do Opção. Confira um resumo das estórias.

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“Koolau, o Leproso” — de Jack London

“Koolau, o Leproso” é uma novela de Jack London (1876-1916), escrita e passada nos primeiros anos do século XX. No Havaí, então território dos EUA (viria a se tornar estado norte-americano em 1957), uma das ilhas, Kauaí, abriga uma colônia de nativos leprosos, segregados pelos americanos para evitar a contaminação nas demais ilhas. Foram os infelizes contagiados por trabalhadores chineses, levados pelos americanos para trabalhar nas plantações havaianas de cana. Seu líder é Koolau, um exímio caçador e atirador, que ainda não sofreu profundas sequelas da doença.

Sua pequena tribo, vítima da maldição, sobrevive razoavelmente na ilha, dos frutos e da caça às cabras selvagens, até que recebe o aviso de que serão deslocados para outra ilha, Molokai, para dar lugar a novas plantações, no local onde residem. Koolau se insurge, e resiste sozinho à mudança forçada. Não aceita ser deslocado da terra de seus antepassados, onde sempre viveu. Usando sua prevalência como atirador e o conhecimento do terreno, abate os policiais e soldados que querem prendê-lo, mas outros acabam forçando o restante da tribo a se revoltar contra ele e a aceitar a mudança.

Jack London: escritor americano | Foto: Reprodução

Mas Koolau não se rende, e abrigado nas densas florestas e penhascos abruptos que tão bem conhece, vale por um batalhão. Resiste sozinho, por dois anos, aos caçadores de recompensa que são enviados à sua caça, e cujas incursões só servem para fazer crescer o número de vítimas de sua pontaria e abastecê-lo da munição que precisa. Até que morre abraçado a seu fuzil, não vitimado por seus perseguidores, mas pela lepra, e sozinho como um animal selvagem. Morre livre, em meio a seu ambiente de nascença e vida. Segundo se conta, a história é verídica, e foi colhida por Jack London em sua viagem feita às ilhas do Havaí em 1907, tanto que a novela foi publicada em 1909.

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O Leproso da Cidade de Aosta — de Xavier de Maistre

“O Leproso da Cidade de Aosta” é um conto de Xavier de Maistre (1764-1852), escrito e passado no início do século XIX.

Nos arredores de Aosta, cidade italiana fronteiriça à Suíça, um militar de volta para casa, encontra um leproso em uma pequena propriedade, onde vive só e isolado, o qual lhe conta sua história, e de quem ele se condói.

A autoridade local, quando foi percebido o contágio dele e de sua irmã, os isolou nessa pequena propriedade, onde ele cultiva suas flores e frutas. A irmã faleceu, pelo avanço da doença. Um cãozinho, sua única companhia desde então, foi morto em sua frente, a pedradas, pela população, com a cobertura da polícia do lugar, temerosa de que ele levasse o mal à cidade, se fugisse da propriedade.

Xavier de Maistre: escritor francês | Foto: Reprodução

O Leproso (cujo nome não aparece na história) conta como vive ali sua triste existência, entre a jardinagem, as orações e as lembranças, onde não existe a presença da menor alegria, de um sorriso, de uma qualquer companhia. Recebe alimento que lhe envia o hospital da cidade e sobrevive em total aceitação à sua sorte. É um conformado, um determinista, que relata ao militar todo seu infortúnio sem revolta, e agradece o estrangeiro por sua solidariedade e simpatia, mas recusa qualquer contato, mesmo as cartas que ele promete enviar, se aceitas. E despede-se do militar que se vai: “Estrangeiro, quando a aflição ou o desânimo se aproximarem de sua alma, pense no solitário de Aosta”. Balzac afirma que o conto é verídico, e que o militar da história é o próprio autor, Xavier de Maistre, que foi soldado. De Maistre, diga-se, é um dos escritores que inspiraram Machado de Assis.

Embora as duas estórias guardem um século de diferença em suas épocas, seu conjunto permite extrair lições, o que fazemos com os leitores. Essas lições dizem do permanente confronto entre o Estado e o Indivíduo, entre o Coletivo e o Pessoal. O Estado, que detém a força, e tanto mais forte é quanto é mais extenso, sempre imporá seu desejo. O Indivíduo, na sua fraqueza, não pode aspirar mais que a opção entre a aceitação passiva do Leproso de Aosta ou a digna rebeldia de Koolau. Assim foi nos séculos passados, como mostram as estórias aqui resumidas. Como mostraram as ditaduras nazista e comunista, que dizimaram milhões. Assim é hoje, se não limitamos o poder do Estado e se não evitamos o surgimento de ditadores. O Estado, no extremo, será uma tirania, que nada deterá, a não ser a própria história. Tudo fará, por mais cruel e sanguinário que seja, para impor sua vontade e para tanto tem que suprimir liberdades. Não existe sensibilidade ou altruísmo nas cúpulas das tiranias, e até mesmo pouco existe nas elites da maioria dos governos democráticos, principalmente onde a educação é deficiente. O Estado deve ser limitado, pois só assim se ameniza o inevitável. De Maistre abre seu conto com os versos do poeta escocês James Thomson (1700-1748):

“Ah! Pouco pensam os soberbos alegres e dissolutos,

Senhores do poder, do gozo e da opulência …

Ah! Pouco pensam eles, enquanto vão dançando …

Quantos suspiram! … quantos bebem a taça

Do triste sofrimento! … quantos se contorcem

Em meio às mais ferozes torturas da alma!”

E Jack London começa sua novela com um discurso de Koolau à sua pequena tribo de leprosos quando são avisados que terão que se mudar de sua ilha:

“Porque somos doentes tiram nossa liberdade. Respeitamos a lei, não cometemos nenhum crime, e mesmo assim querem nos enviar à prisão. Sim, porque aquela outra ilha é uma espécie de prisão…”.

“O Leproso de Aosta” e “Koolau” são as metáforas do cidadão vulnerável cuja liberdade o governo ameaça. São a representação literária do cidadão normal, de nós mesmos, do leitor e minha. A lepra é a própria metáfora da vulnerabilidade, da fraqueza perante o privilégio da força, que a insensibilidade de quem está no topo pode levar ao mais intenso sofrimento. À ameaça da liberdade, duas atitudes se podem adotar: a de inteira aceitação, como fez o Leproso de Aosta ou a de rejeição e confronto, com todas as suas consequências, como fez Koolau. Responda o leitor: quem tem razão?