Bronzes e Cristais foi um belo samba-canção que compuseram os craques Alcyr Pires Vermelho e Nazareno de Brito, e que se tornou sucesso na voz de Maysa, uma das melhores cantoras populares de todos os tempos, no Brasil. Maysa era também uma bela mulher e uma figura polêmica, que abandonou o marido, uma das grandes fortunas da aristocracia paulista, para seguir uma carreira incerta como cantora.

Os compositores (Alcyr era também pianista e tocava na noite), na letra da música, passam uma mensagem sobre a dicotomia das casas noturnas de então. As boates eram o ponto de encontro dos brasileiros endinheirados que ali iam ouvir ao vivo os sucessos da música popular brasileira que estouravam nas paradas. Esses locais apresentavam o melhor dos compositores nacionais e os cantores que até hoje não são superados.

Os dois talentosos autores conseguiram musicar um soneto e passar a mensagem de que nas noites brilhantes das boates – principalmente as cariocas – existiam os que, na tranquilidade de suas posses, ali estavam, à frente de suas taças de cristal com as mais caras bebidas, se deleitando com a música. Entre risos alegres e despreocupados, se demoravam no viver essas noites.

O tempo era alegre, mas havia o outro lado: os serviçais e, principalmente, os músicos, que faziam vibrar seus bronzes para festejar toda aquela alegria da qual não partilhavam. Sua presença era trabalho no duro turno noturno, e não festa. Se os que se divertiam pediam que a noite não acabasse, por outro lado, os que trabalhavam imploravam o nascer da aurora, prenúncio de seu descanso. Uma bela música – quem não conhece, ouça – e uma expressiva mensagem. Mas se havia então os que se divertiam e os que trabalhavam duro para prover essa diversão, essa dicotomia não era, como é hoje, de uma crueldade e injustiça intoleráveis.

Os ricos que corriam às boates cariocas (como a Vogue, a Fred´s, a Arpége e outras) em meados do século passado, eram fazendeiros mineiros ou descendentes dos barões do café paulistas. Tinham também industriais de São Paulo ou empresários cariocas cujas famílias haviam formado sua fortuna pelo trabalho honesto. E os músicos e serviçais, bem como os operários de uma maneira geral, tinham cidadania e dignidade reconhecidas e valorizadas. As drogas praticamente inexistiam. Saúde, Educação e Segurança eram infinitamente melhores do que são hoje.

A dicotomia, hoje agravada – e muito – não mais se percebe nas boates, praticamente fora de moda, como também não é mais visível só no Rio de Janeiro. Hoje os cristais da alegria se concentram em Brasília, embora também possam estar em alguns estados do Nordeste e do Norte, onde o coronelismo político teima em sobreviver. Já os bronzes do esforço estão espalhados por todo o território nacional.

A cúpula do Judiciário, praticamente todo o Congresso e uma vasta “nomenklatura” do Executivo gozam de altos salários, vários penduricalhos que os fazem cada vez mais altos e mordomias inconcebíveis em um país com tantas carências como o Brasil. Exageradas viagens em jatinhos da Força Aérea Brasileira (FAB) sem nenhum interesse público; carros oficiais com tudo pago; segurança armada; auxílios moradia, vestimenta, biblioteca e alimentação (esta muitas vezes representada pelas mais finas iguarias e mais caras bebidas).

E não para por aí. Viagens para o exterior sem nenhum benefício para o país, mas com hospedagem nos mais luxuosos hotéis. Excelentes planos de saúde. Enquanto o dinheiro faz falta na Saúde, incapaz de um atendimento mínimo a quem outro recurso não tem senão o SUS; é escasso na Educação, que é hoje uma das piores do mundo em todas as avaliações internacionais; e minguado na Segurança de um país tomado pelo tráfico, onde se matam 40 mil pessoas por ano; por outro lado, verbas são desviadas com uma desfaçatez revoltante.

Ou vão para uma máquina inchada, com quase 40 ministérios, cada um mais incompetente que o outro, cabides de empregos para companheiros. Ou vão para emendas parlamentares vultosas cujo fim ninguém sabe, ninguém viu, com as poucas e honrosas exceções. Quando não vão para os “companheiros” do exterior, para satisfazer a vaidade ou a veleidade ideológica do Presidente, sempre em prejuízo da economia nacional, como agora, com a importação do leite argentino, financiada pelo BNDES.

Quanto mais alto na hierarquia, maior o abuso. Móveis caríssimos, hotéis superluxuosos uma vez por mês e até um avião novo, verdadeiro palácio aéreo! E o que dizer da corrupção pura e simples, que, depois do golpe que sofreu com a Operação Lava-Jato, parece estar voltando com força total e sede redobrada? Quantos privilegiados sem consciência estão esvaziando, com alegria e ganância, seus copos de cristal? Haja dinheiro público!

Já dizia a ex-primeira-ministra inglesa Margareth Thatcher, uma das políticas mais competentes que o Ocidente já viu: “Não existe essa história de dinheiro público. O que há é dinheiro de impostos, que os contribuintes recolhem”. No Brasil, são os humildes que formam a massa de impostos que fazem a alegria dos aproveitadores. Às vezes tirando essas verbas da mesa ou da educação dos filhos para encher os cristais da cúpula do Judiciário, dos deputados e senadores que só pensam na reeleição, da “nomenklatura” do Executivo tomado de assalto pelo “progressismo” mais atrasado.

É preciso que os que se esforçam façam, cada vez mais, vibrar os bronzes de seu trabalho, pois se trata de satisfazer insaciáveis. Quem trata deles: Geraldo, o rapaz que puxa, como se fora um animal de jugo,  seu pesado carrinho de frutas para vender na feira;  Mônica, a atendente da pizzaria, que nas folgas ainda faz faxina nas casas vizinhas para amealhar mais um dinheirinho que vai ajudar na vestimenta e na educação dos filhos; Rogério, que tem uma pequena chácara no Sudoeste do Estado, onde sozinho planta cana, mói e ferve para fazer a rapadura que vende nos restaurantes da cidade ou fermenta para fazer a cachacinha caprichada que os bares encomendam; Mirtes, a enfermeira do SUS, que estica sua jornada de trabalho com horas extras, pois o salário é pouco; Raimundo, o bancário que se desdobra para sobreviver com seu salário e pagar a faculdade; Antônio, o motorista de Uber, cujo único patrimônio é seu Fiat que lhe garante,- a ele e à família – o apertado sustento; Luís, o operador de colheitadeiras em Rio Verde, que também é motorista de caminhão, quando as máquinas agrícolas terminam sua tarefa, e até mecânico, se preciso for; Pedro, auxiliar de pedreiro, que desperta às 5h da manhã, trabalha até às 5h da tarde e ainda ajuda o cunhado que é feirante, nos fins de semana, para ganhar alguns trocados a mais para sustentar seus dois filhos, pois a mulher, Josina, que é auxiliar de cabeleireira, também ganha pouco,; Fábio, o policial carioca que arrisca a vida diariamente na luta contra os traficantes e nunca recebe uma palavra de estímulo ou reconhecimento; Márcia, a atendente de laboratório, que se levanta às 4h da manhã, pois o laboratório abre às 6h.

Geraldo, Mônica, Rogério, Mirtes, Raimundo, Antônio, Luís, Pedro, Josina, Fábio, Márcia e centenas de miríades de outros lutadores que, assim como eles, fazem diariamente seu trabalho duro e honesto, humilde e útil. Recolhem integralmente seus impostos para manter de pé este país. São representantes do Brasil que presta. Pena que tenham também que encher a taça de tantos inúteis por aí afora.

Bronzes e Cristais

(Música de Alcyr Pires Vermelho e Nazareno de Brito, interpretada pela cantora Maysa em 1958)

Se alguém contar pelos dedos

Quantas alegrias provou

Pensará que foram brinquedos

Que criança má, o tempo quebrou

Quem seguir a senda florida

Onde o bem se esquece do mal

Verá que há contrastes na vida

Feitos de bronze e cristal

Bronze é a tristeza

Que implora um novo dia

Um clarão da aurora

Cristal sorrisos, luz da certeza

Tormento e paz

São bronzes e cristais