Em Aveiro, as comemorações anuais aos dois santos padroeiros, Joana e Gonçalinho, refletem as raízes milenares da tradição religiosa de Portugal

Imagem de Santa Joana nas ruas de Aveiro | Foto: Google Street View

Toda a história portuguesa foi marcada por uma religiosidade extrema, e essas raízes milenares se refletem nos costumes populares. Nas festas comunitárias, então, muito fortemente. Cá em Aveiro, as duas maiores comemorações anuais homenageiam os dois “padroeiros” locais: Santa Joana e São Gonçalinho.

É interessante registrar que nenhum dos dois foi canonizado, não sendo santo Gonçalo de Amarante, nem Joana santa, mas feitos ambos beatos, ele em 1561, pelo papa Pio IV e ela em 1693, por Inocêncio XII. Mas isso não causa qualquer abalo nos fiéis e devotos, para quem ela é Santa Joana, padroeira de Aveiro e ele, carinhosamente, São Gonçalinho, protetor da mesma cidade. De Santa Joana, a Infanta que em vez de rainha se tornou freira e beata, e de seus festejos, falaremos noutro dia.

Vejamos a festa do “santo”. O dia festivo de São Gonçalinho é no presente mês: ocorre a 10 de janeiro, mas as comemorações duram três a quatro dias, abrangendo em geral um fim de semana. O “santo” é a um só tempo protetor dos pescadores, mitigador de doenças ósseas e solucionador de problemas conjugais, ai incluídos os de infertilidade. Dizem também aqui que é casamenteiro, atendendo as mais velhas, enquanto das novinhas cuida Santo Antônio.

O fiel ou a devota que obteve ou que deseja obter uma sua graça, deve munir-se de uma boa porção de “cavacas” e, nas horas aprazadas para tal, atirá-las, da torre da igreja do santo, situada no centro histórico de Aveiro, para a multidão aglomerada em baixo. E o que são “cavacas”: bolachas de bom tamanho, com cobertura de açúcar.

As barracas postadas à volta da igreja vendem-nas às centenas (ou aos milhares), nestes dias, aos pagadores de promessas. Um dos pontos altos dos festejos, talvez mesmo seu cume é esse lançamento. Como toda a programação é fartamente anunciada, no horário das cavacas uma multidão se junta em frente à igreja, na intenção de apanhar o maior número delas possível. Como são muitos os penitentes, a quantidade de cavacas arremessadas nos três dias de festa é enorme, e há mesmo os “profissionais” em arrecadá-las, que passam o dia nessa pescaria, em que utilizam guarda-chuvas abertos ao contrário ou puçás de redes de pesca de camarão. É uma grande diversão, que contamina todas as idades.

Capela de São Gonçalinho, construção do século 18 | Foto: Google Street View

Mas deve-se ter cuidado: como eu disse, as cavacas são de bom tamanho, chegam a pesar 100 gramas e às vezes mais. Uma cavaca na cabeça de quem está descuidado pode causar danos. Mas programação é variada, e o lançamento de cavacas é apenas parte. Há missas, procissão, palestras e shows musicais com artistas e bandas locais, devidamente transmitidos pela RTP (a estatal Rádio e Televisão Portuguesa).

As professoras de primeiro grau levam seus alunos em grupos à igreja, onde ensinam aos “miúdos” sobre o “santo”, sua história e as tradições ligadas. A multidão que comparece aos shows, geralmente numa das praças principais de Aveiro é muito comedida, não havendo tumultos ou grandes manifestações, mas apenas aplausos ao fim de cada número.

Nada de confusões, bebedeiras ou drogas, e não há notícia de roubos ou furtos no correr da festa, embora o uso de celulares (que aqui se chamam telemóveis) seja tão disseminado quanto aí em nossa terra. E todos os festejos têm hora não só de começar, como também de acabar. Muitíssimo raramente algum espetáculo vai além das onze da noite.

A igreja de São Gonçalinho é bem central em Aveiro. Pequena, a rigor uma capela, com suas paredes de pedra, mas muito bem conservada e cuidada, a despeito de ser bicentenária (foi entregue aos fiéis em 1714). Contempla-se, nestes dias uma alegria popular bastante saudável, com todas as idades participando, um cultivo da música, das tradições e do sentimento religioso com muita informação e ausência de excessos.

Muito diferente de um nosso carnaval, festa de adultos onde se cultiva apenas a tradição e onde a bebida está sempre presente, ou um Rock in Rio, famoso não só pela música, mas também pelos exageros de várias naturezas. Mas quem foi São Gonçalinho, qual sua história? Não falta aqui quem ensine: Nascido Gonçalo Pereira (1193-1259), de família nobre, fez-se padre. Peregrinou a Roma e Jerusalém (onde viveu por 14 anos), foi admitido na Ordem dos Dominicanos, quando de volta de sua peregrinação, em Amarante, município do distrito (estado) do Porto, no norte português. Desenvolveu intensa atividade religiosa e social, que responde por sua influência, a qual não se limita a Amarante, onde morreu, e a Aveiro, cidade que o tem como protetor, mas a todo Portugal. E que, como veremos, se estende ao Brasil.

Em Portugal, é patrono da cidade de Amarante, onde pregou, trabalhou e morreu. Os festejos em sua homenagem, também são ali bem expressivos, como os de Aveiro, mas em época diferente, na primeira semana de junho. A igreja de São Gonçalo é o monumento mais visitado da cidade, seja por fiéis, seja por turistas. No Brasil, três municípios levam seu nome: São Gonçalo, segundo maior município do estado do Rio de Janeiro, cuja sede foi fundada em 1579 por Gonçalo Gonçalves, um nobre português, donatário de uma sesmaria, e seu devoto; São Gonçalo do Amarante, no Maranhão e São Gonçalo do Amarante, no Ceará.

E há ainda no Brasil, a tradição nordestina da Dança de São Gonçalo, que dizem ser de origem lusitana, embora hoje não exista mais em terras portuguesas, ao que parece. Alegre com comedimento, festiva com tradicionalismo, respeitosa com a cultura, a religião e os costumes locais, é a festa de São Gonçalinho em Aveiro. Neste frio sem exagero do inverno português, é um espetáculo que merece ser visto.