Agustina Bessa-Luís realça grandeza mas sem excluir crueldade do Marquês de Pombal

28 abril 2019 às 00h00

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O Marquês de Pombal foi grande ao administrar desastres e implantar medidas efetivas na economia, na educação e na administração. Mas não economizou nos desmandos
O jornal português “Diário de Notícias”, de 4 de janeiro, apresentava artigo com o título: “A biografia da escritora que casou por anúncio e outras que tais”. A reportagem era sobre reunião na Biblioteca Nacional de Lisboa, com a presença da ministra da Cultura, Graça Fonseca, em que a Editora Contraponto anunciava a publicação próxima de seis biografias de personagens da cultura portuguesa. Os biografados são a escritora Agustina Bessa-Luís (única viva entre os seis, aos 96 anos), a cantora Amália Rodrigues, o poeta Herberto Helder, o escritor José Cardoso Pires, o cineasta Manoel de Oliveira e a escritora e poetisa Natália Corrêa.
Já em fins de fevereiro encontrava-se nas livrarias portuguesas a primeira biografia da série: “O Poço e a Estrada”, de Isabel Rio Novo, retratando existência e trabalho de Agustina Bessa-Luís. Quem leu o comentário de Euler de França Belém no Jornal Opção de 17 de março passado teve uma visão perfeita não só do livro, mas também da vida e da produção de Agustina Bessa-Luís. E vai acabar por ler — se não leu — “Sibila”, romance que marcou Agustina Bessa-Luís, tal o apelo ao talento da escritora que o artigo desperta.
A literatura portuguesa já era forte cinco séculos atrás. Antes do século 20, Gil Vicente, Camões, Padre Antônio Vieira, Bocage, Almeida Garret, Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Eça de Queiroz e outros abriam sorrisos na alma de quem os lia. No século passado e neste, há tanta gente a lembrar, que fatalmente nos esqueceremos de alguém muito bom: poetas como Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, José Régio, Florbela Espanca, Antônio Gedeão. Escritores ou dramaturgos como Vitorino Nemésio, Henrique Lopes de Mendonça, Júlio Dantas, Miguel Torga, Antônio Lobo Antunes, José Saramago e, claro, Agustina Bessa-Luís. É um tanto intrigante para muitos, e até irônico, que, entre tantos beletristas lusos talentosos, o único Prêmio Nobel de Literatura atribuído a um português tenha ido às mãos de José Saramago, mais conhecido por seu ativismo político e sua rebeldia e inovação sintáticas do que propriamente pela qualidade de seus escritos. Qualidade que existe, é verdade, mas longe daquela exibida por um Fernando Pessoa e mesmo, pelo que muito ouço, da que ostenta Agustina Bessa-Luís.

Dela li apenas uma biografia do Marquês de Pombal, “Sebastião José”, livro editado em Portugal pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em 1981. Acostumado às biografias eminentemente narrativas, surpreendi-me com a qualidade interpretativa do texto da autora. Agustina Bessa-Luís não narra o Marquês numa sequência cronológica de seu viver. Ela o interpreta, desde as origens; pinta sua circunstância — tão importante quanto o próprio biografado — nas várias passagens de sua existência; mostra a evolução da pessoa de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), desde os primórdios humildes até o poderio despótico, traduzido quer na energia para reconstruir uma Lisboa devastada pelos terremotos de 1755, quer na crueldade com que levou a cabo o processo dos Távora, acusados de tentativa de regicídio, e que culminou com o suplício público da família. E sem esquecer o feito de expulsar de Portugal os jesuítas, alvo permanente de sua antipatia e ira.
Agustina Bessa-Luís examina com acuidade as figuras influentes que o Marquês tomava como modelos na sua existência. E, já no fim da vida, afastado do poder que tanto exerceu, e, até pode-se dizer, humilhado, como procedia. É um livro que se começa curioso e mais curioso fica em seu percurso. Mas que, ao fim, faz-nos sentir que convivemos com o Marquês, interpretamo-lo junto com Agustina Bessa-Luís, o conhecemos em suas reações, paixões, ambições. Familiarizamo-nos com ele. Terminada a leitura, quase podemos vê-lo à nossa frente.
Grandeza e crueldade

“Os grandes homens, porque em geral nascem de gente obscura mais do que principal, deixam lacunas várias no que se refere aos lugares onde passaram os primeiros anos de vida. Como Colbert, o Marquês de Pombal, que lhe havia de seguir o conselho financeiro, deixa grandes dúvidas quanto ao sítio de seu nascimento e, possivelmente, quanto à data exata também. De família muito elevada não era.” Assim começa a autora seu relato biográfico de uma das figuras mais importantes e, ao mesmo tempo, mais enigmáticas da história portuguesa.
Afirma Agustina Bessa-Luís que o Marquês nasceu em Casconho, próximo a Soure, na região de Coimbra (e não em Lisboa, como afirma a maioria dos historiadores), na primavera de 1699. Teve uma rápida passagem pelo exército, interrompida por um fato pouco comum: raptou uma viúva, D. Teresa de Noronha Almada, dez anos mais velha, com quem se casou. Para fugir à irritação da família da mulher, viveu em Soure alguns anos, quando Sebastião José, por influência de D. Tereza, nobre que era, ocupa cargo de embaixador em Londres, e depois, quando lhe morre a esposa, desempenha outro cargo diplomático em Viena.
Casa-se em Viena com Eleonora Ernestine von Daun, que lhe dá cinco filhos. Mas a história do Marquês começa mesmo em 1750, com a morte de D. João V, que não o tinha em alta conta e a ocupação do trono por D. José I, que o nomeou ministro dos Negócios Estrangeiros, ponto de partida para um assenhoramento gradual dos negócios do Reino.

Em 1755, Sebastião José era secretário de Estado de Negócios Interiores, o que equivalia a primeiro-ministro. Foi o ano do famoso terremoto que destruiu Lisboa e instalou o caos no Reino.
Veja-se o que diz Agustina Bessa-Luís: “Alguém disse, de uma maneira insidiosa e bela, que ter talento não é o suficiente: é preciso também ter licença para isso. A licença para o talento de Sebastião José foi-lhe outorgada pelo terremoto”. É fato.
O terremoto foi a catapulta para a projeção de Pombal na história portuguesa. “A vontade de superar um fato é a vontade de produzir novos fatos”, diz ainda Agustina Bessa-Luís sobre a catástrofe lisboeta e a reação de Pombal. “Uma calamidade pública, de ordinário, reúne os corações e os espíritos”, disse em 1755 Sebastião José.
A reconstrução de Lisboa e a imposição da ordem tinham sido entregues a ele. Ainda em 1755 (dezembro) um edital proibia a reconstrução de qualquer edificação em Lisboa fora dos planos e da vistoria governamental, enfeixados pelo Marquês. E foi ele, incansável, que organizou a reconstrução, proveu o abastecimento, deu segurança ao povo vítima de saqueadores. Dominou o caos.
Se o terremoto conferiu estatura a Sebastião José, o processo dos Távora não deixaria de apequená-lo. Em 3 de setembro de 1758, um bem urdido atentado quase põe fim à vida do rei D. José, que, ferido, teve que se afastar do poder deixando o Marquês livre para a repressão. Repressão exercida com toda a extensão da pior tirania: um milhar de presos, na maioria torturados para que confessassem participação no atentado.
Ao fim, condenações à pior das mortes para o Duque de Aveiro e para os nobres da família Távora, inclusive a matriarca da família, D. Leonor, que assistiu ao suplício dos filhos e do marido em praça pública, antes de ser decapitada.
O atentado serviu mais ao Marquês: já antes implicado por razões econômicas e de prestígio com os jesuítas, não titubeou em envolvê-los no crime, terminando por expulsá-los de Portugal em 1759.
Até hoje se indaga do que houve de verdade na culpabilidade dos massacrados. Mas não se discute que, após o massacre, o Marquês de Pombal tornou-se a figura em Portugal a impor temor e respeito.
Teria ele criado aqueles inimigos na nobreza e no clero? Ou apenas ampliado suas culpas? É Agustina Bessa-Luís quem insinua: “Toda a tirania se abastece na proporção do inimigo que ela cria. Porque a tirania é um processo de representação a que não bastam as condições reais da existência para se exprimir integralmente; a sua relação profunda é com o imaginário, e disso tira o poder de atração e a força emotiva que aflora o real, mas para o deformar, ou esconder”.
O poderio de Sebastião José esvaiu-se com a morte de D. José, em 1777, e a subida ao trono da filha deste, D. Maria I, que o detestava, pela crueldade exercida sobre os Távora. Praticamente confinado em Pombal, o Marquês morreu ali em 1782, “fosse de pedra biliar, fosse de edema dos pulmões, ou da simples nostalgia em que a corrupção física se baseia”, no dizer de Agustina.
O Marquês de Pombal Foi grande? Quem tem muito poder e capacidade para exercê-lo costuma ser grande, e Sebastião José o foi na medida em que administrou desastres e implantou medidas efetivas na economia, na educação e na administração portuguesas. Mas também não economizou nos desmandos e na crueldade. Para si não quis riquezas, mas nunca abriu mão do poder.
De qualquer forma, é lembrado com respeito e até veneração. Ao pé de sua enorme estátua num dos extremos da Avenida da Liberdade, em Lisboa, os portugueses mais velhos e tradicionais, ao verem os jesuítas novamente se movimentarem com desenvoltura nas terras lusas, costumam bradar para sua figura lá no alto: “Vem abaixo, ó Marquês, que eles cá estão outra vez”.